O verdadeiro jornalismo tem os dias contados?
Houve tempo em que o jornalismo era exercido com espírito de missão. Podia errar por acidente, mas não errava para agradar aos donos circunstanciais do poder do dia, ou aos assessores e agências de comunicação que lhes gerem as crises e veiculam a propaganda.
O jornalista, mais devedor à tarimba do que aos títulos universitários, não tinha medo de procurar a verdade nem de exercer o contraditório, inquirindo o que achasse pertinente.
Hoje, no meio jornalístico, crescem os equívocos e os praticantes de favores, ou, pior, os que se submetem e dobram a cerviz à vontade de quem manda, seja para garantir o acesso à sala oval da Casa Branca, ou para agradar aos “aprendizes de feiticeiro”, que não veem a democracia com bons olhos e a querem minar por dentro.
Com o advento das redes sociais - as modernas cloacas que vieram para ficar -, e as redes de satélites que promoveram a instantaneidade da informação, o jornalismo desistiu, em larga medida, de ser exigente e perscrutador da realidade, trocando, por vezes, a imparcialidade por um “prato de lentilhas”.
Quando isso não acontece, emerge a indignação de políticos encartados nas televisões, que protestam por que o jornalista que os entrevista não se limita a perguntas circunstanciais - nem acolhe as perguntas do guião que os entrevistados trazem no bolso, para recitarem o estribilho das suas conveniências partidárias. Foi o que aconteceu, recentemente, com José Rodrigues dos Santos na RTP.
Temos, depois, a multiplicação de jornalistas-comentadores, que antes de abrirem a boca já se sabe de que lado estão, no desempenho de um papel subserviente, em nome das “cores” do seu “clubismo”.
A lógica da profissão sofre ainda maiores revezes, quando se avistam, por exemplo, ex-jornalistas - transferidos das redações para as agências de comunicação -, reaparecerem, sem pingo de vergonha, arvorados em “comentadores”, veiculando as posições que se presume interessarem aos seus clientes.
Escreveu Clara Ferreira Alves na sua coluna habitual da Revista do “Expresso”, bem a propósito, que “hoje a especulação reina e a hipótese manipulada vence a realidade. Parte do jornalismo ainda obedece aos antigos códigos, mas a realidade é sujeita a uma reavaliação constante, presa fácil de agências de comunicação e afins, de fontes instrumentais, de noticias falsas ou conspirativas, e da multiplicação da opinião como uma espécie de infecção geral que tudo contamina (…) Acossado também por razões puramente financeiras, num deslizamento para a irrelevância e a substituição, o jornalismo teve de mimetizar os inimigos, as redes sociais e as plataformas que vivem do sensacionalismo e do escândalo e o repetem ad nauseum até o tornarem irrelevante e diluído na espuma dos dias” (fim de citação).
A especulação e a manipulação em campanhas concertadas e orquestradas estão a arruinar a credibilidade do verdadeiro jornalismo, que sobrevive obcecado com as audiências e reinventa a verdade consoante as conveniências de momento.
Se o jornalismo não for intransigente com a realidade factual, se o seu testemunho não corresponder à verificação rigorosa do que aconteceu, com sentido de independência e respeito pela natureza das coisas, têm os dias contados.