O Columbia Journalism Review publicou um artigo que dá a conhecer a realidade vivida em Myanmar depois do sismo que atingiu o país. O terramoto foi a primeira grande catástrofe natural desde que a administração Trump começou a cortar fundos da USAID, servindo como um teste real dos efeitos destas políticas.  

No artigo, é referido que os efeitos já se faziam sentir em Myanmar, especialmente entre os meios de comunicação independentes que resistem no país, muitos dos quais a operar no exílio e a depender de donativos internacionais, cada vez menores. "De facto, este panorama dos meios de comunicação independentes foi recentemente atingido por um triplo golpe - os cortes da USAID, a eliminação dos organismos de radiodifusão norte-americanos no estrangeiro pela administração Trump e, agora, o terramoto - que exacerbou uma situação que já era extremamente difícil, no meio de uma guerra contra a liberdade de imprensa levada a cabo pela junta”. 

Jon Allsop, jornalista freelancer e autor do texto publicado no CJR, conta que um jornalista de Myanmar, que cobriu o rescaldo do ciclone Nargis em 2008 e que foi cofundador do site de notícias Myanmar Now, lhe disse que, “se olharmos para o primeiro ou segundo dia de cobertura, tudo era sobre o que aconteceu na Tailândia e não sobre o que aconteceu em Myanmar, apenas porque era muito mais difícil fazer chegar as notícias das áreas afectadas pelo terramoto neste último país”. 

“Os jornalistas dessas zonas já estavam a trabalhar num ambiente extremamente difícil. Agora também têm de andar por aí a tentar recolher notícias sem se darem a conhecer. E, claro, algumas redacções vêem-se de repente sem pessoal suficiente para cobrir a situação, porque tiveram de despedir pessoas devido aos cortes. É um problema que se junta ao outro", acrescentou o jornalista.   

Jon Allsop relata que tem investigado a paisagem mediática de Myanmar para o seu livro What Is Journalism For?. No livro, descreve a “rica história da liberdade de imprensa” em Myanmar, destacando que se acredita que o país foi o primeiro na região a consagrar o valor na lei sem ser imposto por estranhos, mesmo sob censura colonial britânica. Após a independência, a imprensa sofreu repressões severas dos regimes militares, mas os jornalistas “continuaram a cobrir os problemas quotidianos e os grandes acontecimentos”, muitas vezes de forma codificada ou no exílio. Já no início da década de 2010, “a paisagem mediática do país era ‘vibrante’, embora ‘significativamente restrita’, como referem os autores do livro Myanmar Media in Transition”.   

Enquanto o país fazia a transição para a democracia, a liberdade de imprensa em Myanmar sofreu um grande retrocesso com o golpe militar de 2021: “Os militares tomaram novamente o poder e esmagaram rapidamente os meios de comunicação independentes, levando muitos meios de comunicação para o exílio e prendendo muitos dos jornalistas que ficaram para trás. (Em Dezembro, Myanmar continuava a ser o terceiro pior país do mundo a prender jornalistas, segundo uma contagem). Após uma subida na década de 2010, os Repórteres Sem Fronteiras voltaram a classificar Myanmar como um dos dez piores locais do mundo em termos de liberdade de imprensa”. 

O jornalista explica que, frequentemente, as fontes têm receio de falar com os jornalistas por medo de serem punidas e que o contacto com as pessoas no interior do país é difícil “devido à falta generalizada de acesso à internet e à repressão oficial da web aberta”. Entretanto, o país enfrenta uma guerra civil entre a junta e os grupos rebeldes. 

Apesar da repressão, muitos meios de comunicação independentes de Myanmar continuaram a informar, recorrendo a estratégias. “Toe Zaw Latt disse-me que, enquanto eu fazia a reportagem do meu livro, o seu canal, Mizzima, tinha adoptado uma estratégia de «um pé dentro, um pé fora» desde o golpe de Estado, com repórteres dentro de Myanmar a enviarem informação para os colaboradores na Tailândia para produção”. Uma nova geração de jornalistas cidadãos também surgiu, motivada pela vontade de denunciar a situação do país sob a junta. No entanto, há preocupações sobre o profissionalismo e as condições de trabalho destes jornalistas.  

Os cortes da USAID no início do ano surpreenderam os meios de comunicação independentes de Myanmar, ainda que se previssem mudanças com a administração Trump: “As pessoas não eram ingénuas; sabiam que com a administração Trump poderia haver mudanças”, disse Thin Lei Win, mas os cortes foram repentinos e no final de um mês, afectando imediatamente a capacidade de muitas redacções pagarem aos seus colaboradores. A estes cortes juntou-se a redução de fundos do National Endowment for Democracy. 

Na Voz Democrática da Birmânia (DVB), por exemplo, o financiamento dos Estados Unidos representava 15 a 20% do orçamento da emissora, resultando em cortes de pessoal e programas. Ainda assim, sobrevive graças ao apoio de financiadores europeus. 

As emissoras internacionais dos EUA, como os serviços birmaneses da Voz da América e da Rádio Free Asia, foram uma “fonte crucial de notícias independentes durante o anterior período de regime militar em Myanmar, de tal forma que os seus governantes publicaram regularmente anúncios em jornais, e até livros, numa tentativa de destruir as suas reportagens”. 

No mês passado, a administração Trump reduziu significativamente a radiodifusão internacional. O serviço birmanês da VOA foi encerrado e a RFA passou a funcionar com programação e recursos limitados. Os ouvintes expressaram frustração com a perda de actualizações regulares de notícias. Por sua vez, a junta militar parece estar satisfeita, comemorando o fim de “anos de propaganda estrangeira divisa que alimentou a agitação e enfraqueceu a unidade nacional”. 

Phil Thornton, um jornalista veterano da região, relatou que jornalistas independentes exilados de Myanmar estavam a ajudar os colegas que perderam os empregos, enviando alimentos e apoio. “Lynn Zay, um jornalista que coordena as entregas de ajuda, disse a Thornton que esta é a pior altura para trabalhar nos meios de comunicação social que já viveu em dezanove anos de profissão”, destaca o autor. 

Ye Naing Moe afirmou que Myanmar carece de jornalistas experientes para cobrir todos os danos da repressão da junta, e os que desejam voltar arriscam prisão ou recrutamento militar. Meios internacionais, como a BBC, têm dificuldades em cobrir áreas remotas, especialmente perto do epicentro do terramoto, também por causa da falta de Internet e electricidade. O apoio das rádios de ondas curtas da VOA e da RFA foi destruído, deixando a população em completo isolamento, como disse Aye Chan Naing: "as pessoas estão a viver no escuro". 

Thin Lei Win observou que, embora o terramoto tenha posto os olhos do mundo em Myanmar, a atenção mediática foi, entretanto, direccionada para as tarifas de Trump. O autor questionou Thin Lei Win sobre um possível aumento das doações internacionais para os media de Myanmar após o sismo. Ela admitiu que é possível, mas que “o foco a médio e curto prazo vai ser a ajuda humanitária e só vamos realmente notar o que aconteceu com os meios de comunicação exilados quando deixarmos de receber notícias e percebermos que não sabemos o que está a acontecer em Myanmar”.  

Pelo menos no próprio país, as notícias sobre os efeitos do terramoto continuam a chegar. Algumas pessoas afectadas falam anonimamente por medo da junta, mas outras, como familiares de desaparecidos ou falecidos, têm falado abertamente, movidas pelo sofrimento e pela revolta. 

(Créditos da imagem: Athit Perawongmetha – Reuters)