Relatório do OberCom sobre o “Digital Services Act” europeu
O Observatório da Comunicação (OberCom) fez uma leitura exaustiva do Digital Services Act (DSA; Regulamento de Serviços Digitais), a mais recente legislação europeia para a regulação das plataformas digitais.
Para o OberCom, o DSA é um dos regulamentos europeus mais relevantes actualmente no que toca à comunicação social.
“Os objectivos deste regulamento passam por assegurar que o mundo online é mais justo e aberto, não só através da prevenção de actividades online que possam ser ilegais ou prejudiciais, como a divulgação de desinformação, mas também através da protecção dos direitos fundamentais dos consumidores e da sua segurança”, refere o OberCom.
Com o intuito de facilitar a compreensão do diploma, o Observatório publicou um relatório, Digital Services Act — Reflexões sobre impactos no ecossistema mediático português, em que identifica os principais direitos e deveres de cada parte envolvida nas comunicações digitais.
O documento “visa dar a conhecer a um público não-especializado em direito um corpo legal com profundas implicações na forma como comunicamos e na regulação dos ambientes digitais de que dependemos”, lê-se no anúncio de lançamento da publicação.
Aqui, fazemos uma síntese de algumas das principais ideias do relatório do OberCom, que pode ser consultado na íntegra online.
Contexto institucional
O DSA, por ser um regulamento, faz parte dos produtos legislativos da União Europeia (UE) que resultam de aprovação no Parlamento Europeu e no Conselho e que são “aplicados directamente nos Estados-Membros sem necessidade de transposição” — ao contrário das directivas, que precisam de ser adaptadas à legislação de cada país.
Foram necessários quase dois anos para que este diploma fosse aprovado e entrasse em vigor. O processo começou com a apresentação, por parte da Comissão Europeia (CE), do Pacote dos Serviços Digitais, um conjunto de peças legislativas direccionadas para a regulação dos mercados digitais, no qual se inclui o DSA.
O OberCom lembra que o DSA vem actualizar o “regime aplicável à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais”, que estava regulada por um diploma “obsoleto”, com mais de 20 anos.
Com efeito, “a responsabilidade dos prestadores de serviços digitais encontrava-se prevista nos artigos 12.º a 15.º da Directiva do Comércio Electrónico (2000/31/CE), que agora se encontram revogados”.
Descodificando terminologia
O DSA inclui regras para serviços online que são utilizados diariamente por milhões de cidadãos europeus. As obrigações dos diferentes operadores correspondem ao seu papel, dimensão e impacto no ecossistema digital, explica o site da Comissão Europeia dedicado ao DSA.
Os diferentes operadores abrangidos no regulamento são:
- Plataformas e motores de pesquisa online de muito grande dimensão. Estes operadores apresentam riscos específicos relacionados com a difusão de conteúdos ilegais. “Estão previstas regras específicas para as plataformas que são utilizadas por, pelo menos, 10% dos 450 milhões de consumidores europeus”, lê-se no site. Alguns exemplos destas plataformas e motores de busca são: YouTube, vários serviços da Google (Google Search, Google Play, Google Maps), Facebook, Instagram, Amazon Stores, LinkedIn, Wikipedia, TikTok, Pinterest, X, Booking.com, etc. A lista completa está disponível online.
- Plataformas online que reúnem vendedores e consumidores, tais como mercados online, app stores, plataformas de economia colaborativa e outras plataformas de redes sociais.
- Serviços de alojamento virtual (“hosting services”), tais como as infraestruturas de computação em nuvem e os serviços de alojamento virtual.
- Serviços intermediários, que oferecem infraestruturas de rede (fornecedores de acesso à Internet e agentes de registo de nomes de domínio, incluindo serviços de alojamento virtual).
Implicações para os meios de comunicação social
Embora o DSA se dirija em grande medida à regulação das plataformas digitais, a sua aplicação não deixa de ser relevante para o sector da comunicação social.
Num plano mais amplo, sempre que são regulados espaços de expressão de ideias, a liberdade de imprensa está implicada. Embora se queira assegurar o princípio fundamental da liberdade de imprensa, também é verdade que “as liberdades de imprensa e de expressão têm vindo a ser ameaçadas por um estranho paradoxo, uma vez que quanto maior é a liberdade de expressão, menor poderá ser o acesso a informação verdadeira”, refere o relatório do OberCom.
Do ponto de vista mais prático, as organizações de media deverão ter conhecimento das fronteiras entre as medidas do diploma que as abrangem e as que não lhes são aplicadas.
Por exemplo, o DSA refere que a secção de comentários de um jornal online pode ser considerada “acessória do serviço principal” prestado pela publicação, pelo que não deverá ser considerado um serviço de plataforma online — ao contrário dos comentários publicados numa rede social, como o Facebook, “uma vez que é evidente que [esta] não constitui uma funcionalidade menor do serviço oferecido, ainda que a actividade seja acessória em relação às publicações feitas pelos destinatários do serviço”.
Alguns aspectos operacionais do DSA
- O regulamento aplica-se “aos prestadores de determinados serviços da sociedade da informação, tal como definidos na Directiva (UE) 2015/1535, do Parlamento Europeu e do Conselho, isto é, qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via electrónica e mediante pedido individual de um destinatário.”
- São abrangidos pelo diploma todos os prestadores de serviços que tenham um estabelecimento na UE ou que, não tendo estabelecimento, tenham um número “significativo” de destinatários num ou mais Estados-Membros, uma vez que, nesse caso, existe uma “ligação substancial à UE”.
- “As microempresas e as pequenas empresas terão obrigações proporcionais à sua capacidade e dimensão, mas continuarão a ser responsáveis”, no entanto “beneficiarão de uma isenção específica de um conjunto de obrigações durante um período transitório de 12 meses”, lê-se no site da Comissão Europeia.
- O DSA prevê que as decisões de moderação dos conteúdos possam ser contestadas, através de reclamações, “com recurso à resolução alternativa de litígios ou o recurso a um tribunal judicial”.
- Os consumidores podem “requerer uma indemnização caso existam actos ilícitos e danos resultantes da violação dos seus direitos fundamentais (artigo 54.º DSA)”.
- O controlo da publicidade a que os consumidores estão expostos através da utilização dos algoritmos assume um papel “muito relevante no DSA (vejam-se os artigos 26.º, 27º., 38.º e 39.º )”.
- Procura-se uma maior transparência relativamente às características dos anúncios e às entidades responsáveis por estes.
- Os fornecedores das plataformas online estão “sujeitos à obrigação de apresentar relatórios de transparência (artigo 24.º do DSA), especificando o número de litígios submetidos através do mecanismo de resolução extrajudicial de litígios”.
- Os fornecedores de plataformas online podem “suspender, temporariamente, as suas actividades em relação à pessoa que está a ter comportamentos abusivos, mas deverão emitir um aviso prévio antes de tomarem a decisão sobre a suspensão em que expliquem, de forma concreta, os motivos para essa suspensão”.
- As plataformas online deverão ter em conta os riscos sistémicos (considerando 80 e artigos 34.º e 35.º do DSA), que estão classificados em quatro categorias: 1) “riscos associados à difusão de conteúdos ilegais” (por exemplo, difusão de material pedopornográfico, discursos de incitação ao ódio, utilização dos serviços para cometer crimes, venda de produtos ou serviços proibidos); 2) riscos relativos aos direitos fundamentais previstos na Carta dos Direitos Fundamentais da UE; 3) riscos associados aos processos democráticos e os seus efeitos no discurso cívico e nos processos eleitorais, bem como na segurança pública”; e 4) riscos decorrentes da manipulação da informação, “com um efeito negativo real ou previsível na protecção da saúde pública e nos menores” que poderão originar problemas de saúde físicos e mentais.
- As plataformas online devem “assegurar bons sistemas de notificação e de reclamação” nos serviços direccionados ou utilizados por menores e “assegurar a protecção” dos menores “quanto aos conteúdos que os possam afectar”.
- Os fornecedores de plataformas online devem “ter sistemas internos de reclamação rápidos e eficazes, assegurando o direito dos consumidores a reclamar e contestar as decisões tomadas pelas plataformas em linha sobre a ilegalidade dos conteúdos ou a sua incompatibilidade com os termos e condições que os afectem negativamente”.
- Quando está em causa um crime, “os prestadores de serviços de alojamento virtual têm o dever de informar as autoridades competentes”.
- “Caberá ao coordenador dos serviços digitais publicar, de forma regular, nomeadamente no seu sítio Web, um relatório sobre as actividades realizadas ao abrigo do DSA”. De recordar que, em Portugal, o Decreto-Lei n.º 20-B/20246, publicado em Fevereiro deste ano, “veio delinear as funções das autoridades competentes e nomear o coordenador dos serviços digitais em Portugal, tendo distribuído as funções pela Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), e pela Inspeção-Geral das Atividades Culturais”.
- O Tribunal de Justiça da União Europeia tem “a função de averiguar a aplicação das sanções previstas no artigo 52.º do DSA, assim como das coimas e sanções pecuniárias compulsórias”.
- “Um aspecto bastante inovador, e essencial deste novo Regulamento, é a previsão dos direitos específicos para os investigadores habilitados filiados num organismo de investigação”.
- Os investigadores têm direito de acesso “aos dados de plataformas em linha de muito grande dimensão e de motores de pesquisa em linha de muito grande dimensão, o que pode incluir, para efeitos do presente regulamento, organizações da sociedade civil que realizam investigação científica com o objectivo principal de apoiar a sua missão de interesse público”.
- Este é um “aspecto fundamental no novo regulamento, que salvaguarda uma maior transparência e supervisão da forma como funcionam as grandes plataformas”, particularmente, “as redes e medias sociais”.
O relatório do OberCom conclui lembrando que, apesar de ainda se manter “alguma incerteza” quanto à aplicação e efeitos práticos do DSA, o regulamento tem um “carácter inovador”, uma vez que confere “importância à transparência e à supervisão dos conteúdos divulgados online, principalmente no que toca à protecção dos menores”, ao mesmo tempo que deixa “uma ampla margem de manobra relativamente à forma como cada Estado irá operar”.
(Créditos da imagem: página do pacote sobre os serviços digitais no site do Conselho Europeu)