Uma déchirure - que supõe uma ruptura talvez insanável?

Ou estaremos antes perante um “crepúsculo”?

A resposta às questões colocadas exige, antes do mais, uma definição da figura do intelectual. Decididamente, a figura do intelectual total, profético, universalista, Do Grande Pensador, autor de grandes narrativas redentoras da humanidade como Bergson, Sartre, Aron, Camus, Foucault, Bourdieu está em vias de desaparecimento, pelo obstáculo inultrapassável que ele, o intelectual universalista, sente em expor a sua teoria em dois minutos de um qualquer talk-show, ou em twitá-la num máximo de 140 caracteres. “A mediatização, diz Edgar Morin, encoraja a simplificação e introduz, nos problemas mais importantes e sérios, a frivolidade, o impudor, a auto-suficiência.

 

É certo, porém, que a própria democracia, melhorando o acesso aos saberes, veio contrariar essas formas antigas de dominação intelectual. O gradual desaparecimento de uma instância reconhecida de produção da «verdade» confere, com efeito, ao pensamento, uma extraordinária oportunidade de libertação: o pensamento liberta-se dessa espécie de modelo feudal – o mestre e seus discípulos - que, por vezes, bloqueava audácias e tolhia o passo à inovação. 

Declina, por outro lado, a figura do intelectual específico, de cariz foucaultiano, arauto de um governo de sábios de que já nos falava Auguste Comte. Com efeito, a compartimentação do seu pensamento dificulta-lhe a captação e a produção de sentido relativamente ao conjunto de problemas que se colocam hoje, em toda a sua globalidade e complexidade.

O intelectual colectivo, aquele que exprime os projectos, os anseios de grupos mobilizados por objectivos bem determinados que Gilles Lipovetsky analisou em A era do vazio, esse intelectual colectivo luta com a dificuldade em fazer ouvir-se.

Porquê?

Pela tendência dos media em recusar espaço ou tempo a organizações, e seus representantes, que careçam de impacto público. É verdade que esta tendência, como todos o sabemos, se inscreve num círculo vicioso: as referidas organizações não sendo objecto de notícia, não ganham espessura pública. E, porque carecem de espessura pública, não justificam ser noticiadas…

As duas últimas décadas do século XX foram marcadas, no plano mediático, pela massificação do fenómeno televisivo.

A comunicação política deixou de ser um exclusivo dos jornalistas políticos. A seu lado, surgiram outros actores, com outros propósitos e outras linguagens. À “comunicação centrípeta”, assente no jornalista político, sucedeu a “comunicação centrífuga” caracterizada pela multiplicação de actores no processo comunicativo: apresentadores, animadores, moderadores, comentadores, analistas etc.

Assistiu-se a uma porosidade crescente entre informação e entretenimento, dando origem ao chamado infortainement. Todos os meios são mobilizados para satisfazer os gostos imediatos de um público que se assume como mero consumidor. As hard news, que convocam a reflexão, cedem lugar às soft news, ligeiras, coloridas, de recepção instantânea. A “informação episódica” sobrepõe-se à “informação temática”. Adopta-se uma retórica, mais fluida. Adopta-se um vocabulário auto-referencial em que prevalece o “eu”, o “meu”, o “eu sou”, em detrimento de referências colectivas. O registo discursivo rodeia-se de contornos mais personalizados. Mais familiares. Constroem-se os cenários mais convenientes:


E, neste contexto, sobressai a figura do intelectual mediático.

Aquele que melhor adaptou o seu discurso aos novos media, satisfazendo o imediatismo e a efemeridade, moldando-se à caricatura de uma informação que se pretende contínua e permanente.

Aquele que distribui as suas opiniões pelos Jornais, pelas estações de Rádio, pelos canais de Televisão beneficiando do “efeito de campo”, estudado por Pierre Bourdieu, que consiste na necessidade, para os media, de se posicionarem uns relativamente aos outros, de tratarem os mesmos assuntos e de escaparem, assim, ao risco da falha.


Aquele que se especializa na fórmula do “pronto-a-pensar”.

Aquele que se inscreve no chamado “espírito do tempo”. Afinal, um “espírito do tempo” que não é mais do que uma construção social.

Aquele que reproduz a lógica binária, tão privilegiada pelos media, de estar “por” ou “contra”.

Aquele que afirma a sua imagem de marca. E, ao afirmar a sua imagem de marca, se demarca dos restantes.

Aquele que, após conquistar os grandes media tradicionais, absorve a linguagem das novas tecnologias de informação e comunicação, compreende o seu alcance em termos de dispositivo essencial para a formatação do espaço público e invade as redes sociais.

Esta evolução da figura do intelectual mediático afectou, sobretudo, a esquerda política.

É verdade que resta o “republicanismo” de Régis Debray. Resta a ideia de “revolução” em Alain Badiou. Restaa crítica social e o conceito de égaliberté,em Etienne Balibar. Resta a reflexão estética e política sobre a “partilha do possível”em Jacques Rancière.

Mas o foco da actualidade incide nos intelectuais mediáticos a que uns chamam os novos intelectuais e outros os “neoreaccionários”.

O discurso neo-reaccionário, de periférico que era, torna-se central e está mesmo em vias de adquirir o estatuto de ideologia dominante. Nomeadamente em França, onde se assiste a uma autêntica “revolução conservadora” com a massificação ou vulgarização de um discurso que cola, sobretudo, a uma juventude desesperada em busca de um futuro impossível e a uma população demograficamente envelhecida e atemorizada: é a obsessão da decadência civilizacional. É o regresso místico à pureza identitária. É a denúncia da democracia representativa. Em resumo: é a recusa da herança deixada pelo humanismo iluminista.

 “O anti politicamente correcto está na moda”, exclama Nicolas Truong, jornalista do Le Monde, já aqui citado.

Curiosamente, a maior parte destes intelectuais mediáticos, veio da esquerda e refez os seus quadros interpretativos radicalizando-se em posições diametralmente opostas.

É o caso de Marcel Gauchet que, de início, acompanhou de perto grandes nomes da inteligentsia de esquerda como Claude Lefort, Cornelius Castoriadis e Pierre Clastres, antes de repudiar as teses marxistas que perfilhava. Lança-se, então, num ataque feroz contra os seus antigos parceiros que acusa de estarem “coniventes com o universo mental do totalitarismo”. Contra Lévy-Strauss, cuja obra seria “um falhanço total”. Contra Foucault que alcunha de “ilusionista”. Contra Bourdieu “um desastre intelectual”, dono, afirma Marcel Gauchet, de um “pensamento mecanicista e determinista, envolto numa roupagem sofisticada, que não nos permite compreender o funcionamento de uma sociedade”.

É o caso de Alain Finkielkraut, expressão do anti-modernismo, do cepticismo quanto ao domínio da razão, quanto à ideia de progresso e quanto à validade da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

É o caso de Michel Onfray, antigo jornalista e fundador da Universidade Popular de Caen, iniciativa que lhe valera rasgados elogios dos meios de esquerda e que, agora, se proclama um “Capitalista Libertário”.

É o caso de Michel Ouellebecq que, em tom provocatório, relativiza o problema do terrorismo virando as suas energias contra o “Ocidente actual”.

É o caso de Éric Zemmour que investe na “desconstrução dos desconstructores” – habilidoso jogo de palavras, construído a partir do conceito de “desconstrucionismo”, aprofundado por filósofos de esquerda como Jacques Derrida.

Mas porquê esta preponderância, esta prevalência do discurso intelectual de direita no espaço público?

A sua capacidade de adaptação aos novos suportes de comunicação, a sua permeabilidade à espectacularização da política, de que nos falava, premonitoriamente, Guy Debord nos finais da década de sessenta do século passado, são insuficientes para explicar o fenómeno.

Explica-o, também, o estilhaçar de uma esquerda antitotalitária que se vê sem resposta aos problemas com que se confronta a sociedade no dealbar do século: em 1989, cai o muro de Berlim; em 1990, Vaclav Havel e Lech Walesa são eleitos, respectivamente, presidentes da Checoslováquia e da Polónia; em 1993, Israelitas e Palestinianos reconhecem o direito recíproco à independência; em1994, a África do Sul rejeita o regime do apartheid; em1999, a República Popular da China assina um acordo de cooperação bilateral com os Estados Unidos.

E depois.

E depois, nada.

À esperança, à expectativa, criada por estes acontecimentos que anunciavam um virar de página, sucede uma frustração generalizada.

O que estava mal, mal ficou. Acelera-se o processo de globalização com tudo aquilo que ele encerra em termos de acumulação de riquezas e consequente empobrecimento de sectores cada vez mais vastos da sociedade. Desencadeiam-se novos conflitos, na ex-Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Síria. Acentuam-se as clivagens no espaço europeu. Adensam-se os fluxos migratórios.

Desenvolvem-se as redes islamistas para as quais Foucault é um dos raros intelectuais a chamar a atenção:

“Trata-se talvez, diz ele, da primeira grande insurreição contra os sistemas planetários, a forma mais moderna de revolta, e a mais louca também”.

Mas a voz de Foucault ecoou no deserto e os atentados terroristas inscreveram-se no nosso quotidiano.

Nas colunas da revista Le Meilleur des Mondes, Elena Bonner, viúva de Sakharov, prevê um século XXI de pesadelo, síntese do “pior do comunismo e do pior do capitalismo”.

Analisando este mal-estar do pensamento de esquerda contemporâneo, Marc Crépon, director do Departamento de Filosofia da Escola Normal Superior de Paris alinha duas razões para o explicar.

Primeira razão:

“A esquerda descurou a vigilância minimizando esse velho fundo racista, xenófobo, securitário, pleno de ódio e vingativo que nunca cessou de fermentar na sociedade. A esquerda não preparou as suas armas para se opor a esta retórica nauseabunda de uma “identidade” regressiva que impõe a sua lei”.

Segunda razão:

“A política, qualquer que ela seja, não consegue reunir, federar aqueles e aquelas que, potencialmente, constituem a sua base de apoio sem incrementar, reforçar, consolidar um conjunto de crenças que lhe são próprias. Alheando-se desse trabalho, deixa um espaço vazio. Ora, a política tem horror ao vazio e haverá, sempre, um aventureiro pronto a preenchê-lo. É o que nos acontece hoje. É o que nos ameaça. As palavras, os valores, as ideias que cimentaram o chamado “povo de esquerda” – tudo aquilo que testemunhava uma atenção sustentada para com os deserdados, os marginalizados e que constituía para eles, bem ou mal, um princípio de esperança – esfumou-se. E esfumou-se tanto mais quanto as políticas ditas de “esquerda” se desviaram desse objectivo. Nunca, como agora, o sentimento de traição foi tão forte”.

Não é por acaso, diria eu, que a prevalência de um discurso intelectual de direita é mais notória em França.

Que fazer? Interrogava-se Lenine, num ensaio publicado em 1902 com o subtítulo que, em português, poderia ser «Questões escaldantes do nosso movimento».

Que fazer?

Alguns autores consideram que a emergência de intelectuais ocorre, sobretudo, em “momentos” decisivos. Cinco factores estarão na origem desses “momentos” decisivos:

  1. Irrupção de alguma coisa de novo;
  2. Que essa irrupção exprima investimentos múltiplos e plurais, ultrapasse as fronteiras disciplinares e, mesmo, que seja veiculada por suportes de comunicação diversos;
  3. Que o percurso descrito por esse “algo novo” remeta para um problema que exija abordagens de toda a espécie;
  4. Que esse problema não seja meramente especulativo ou filosófico, dito de outra forma, que ele não releve, apenas, de uma decisão de pensar diferentemente, originalmente; que ele não releve, apenas, de uma modificação de “visão do mundo” mas sim de algo objectivamente necessário à vida como uma descoberta científica, uma criação artística, um acontecimento político, um deslizamento antropológico, enfim, qualquer coisa que, proveniente do exterior do pensamento, nos obrigue a rever as nossas evidências mais enraizadas.
  5. Que esse problema suscite uma continuidade, tenha consequências.

Finda que foi a Segunda Guerra Mundial, conhecemos o momento da ”libertação”, com o existencialismo e os seus intelectuais.

Os anos sessenta trouxeram-nos o estruturalismo e os seus mentores, idolatrados nas barricadas de Maio de 68.

Ora, avolumam-se, desde há alguns anos, condições susceptíveis de dar origem a um novo “momento”. De facto, certos problemas provocam posições divergentes, ultrapassam os limites disciplinares e atingem um público mais vasto do que o constituído pelos simples “pares”.

Após a existência e a estrutura, a questão de hoje seria a questão do mundo, ou melhor, a questão da pluralidade dos mundos.

Uma questão que se desenvolve em plena crise.

Na Grécia antiga, “Krisis” designava o processo de justiça e a respectiva sentença. Por analogia, a crise actual corresponderá ao ponto de bifurcação entre um modelo antigo de organização social, económica e política e um modelo novo cujos contornos estão ainda por traçar. Corresponderá a um ponto de transição dolorosa que questiona hábitos e costumes antes julgados imperecíveis.

A questão urgente do século XXI consiste em saber, pois, como ordenar um mundo que não pode ser senão plural, aberto a todos os modos de ser.

Como ultrapassar os impasses a que conduzem quer o universalismo quer o particularismo.

O objectivo de uma unidade total do género humano é irrealista e, no final de contas, é totalitário. As diferenças que nos separam são condição da liberdade de todos.

Em conclusão: a tarefa do intelectual consistirá em forjar um universal cosmopolita um pouco à imagem da proposta de cosmopolitismo avançada por Kant no seu «Projecto de paz perpétua». Um universal despido de toda e qualquer tentação universalista. Despido da “ilusão arcaica”, já denunciada por Lévi-Strauss, segundo a qual as outras culturas não seriam mais do que realizações imperfeitas e inacabadas da nossa. Como se existisse um único caminho que todas as culturas devessem seguir. E nos competisse, a nós, ajudá-las a percorrer esse caminho. Para seu bem. Mesmo que à força.

A tarefa do intelectual consistirá em posicionar-se num mundo que a própria fragmentação da informação/comunicação ajudou a fragmentar. Consistirá em gerar competências que lhe permitam fazer sínteses, operar articulações nesse todo fragmentado, de modo a dar-lhe sentido.

Esta figura de intelectual não coincide, obviamente, com a do intelectual mediático. Mas, investir o grosso das energias no combate ao intelectual mediático, de pouco vale. Vale, apenas, para reforçar a sua legitimação.

E os media?

Como reconquistar o direito a fazer-se ouvir? Nada nos impede de pensar que a televisiva “cultura do slogan”, da frase rápida incisiva e performativa atingirá, também ela, o seu ponto de saturação.

E os novos media?

Com o dealbar do século, surgiu uma das utopias mais inovadoras de todos os tempos: a Internet. No seu início, a Internet representou um ideal de sociedade, tanto pela originalidade da sua estrutura reticular que pôs em evidência a obsolescência das organizações hierarquizadas e centralizadas, como pelos generosos valores de contra-cultura que guiaram os seus principais artífices. Assumiu-se como um espaço de liberdade, de autogestão e de trocas escapando aos controles governamentais. Assumiu-se como comunidade de seres iguais, ligados por um trabalho cooperativo. Como um instrumento de democratização, favorecendo o acesso à cultura pela gratuitidade e partilha de saberes.

Depois, a Internet passou a ser alvo de críticas cada vez mais acérrimas. Afinal o dispositivo não era tão transparente como se supunha.

Em Chaosmose, uma obra já clássica publicada em 1992, o filósofo Félix Guattari recusou-se a formular um julgamento definitivo sobre a evolução maquínica. Tudo depende, assegura ele, da utilização que for dada às novas tecnologias. “A melhor das hipóteses, acrescenta, é a criação, a invenção de novos universos de referência. A pior é a massemediatização embrutecedora”.

A questão não é pois tecnológica. A questão é política. E o uso das novas tecnologias de informação e comunicação, a navegação nas redes sociais será o espelho da relação de forças existente em cada momento e em cada lugar.