“No meio universitário já não se discute se o jornalismo é imparcial. Há um consenso de que a isenção informativa é impossível, mas nas redacções e nos departamentos de marketing da imprensa ainda prevalece o mantra de que a isenção é uma característica intrínseca do noticiário. Esta divergência já contamina uma parcela considerável do público, gerando uma grande incerteza entre as pessoas comuns que, durante décadas, aceitaram sem questionamentos a ideia de que a imprensa é imparcial, por natureza”. A reflexão é de Carlos Castilho, num texto para o Observatório de Imprensa do Brasil, com o qual o CPI mantém um acordo de parceria. 

O jornalista e investigador indica que, cada vez mais, os artigos e as entrevistas questionam a imparcialidade e objectividade no jornalismo, tratando-as como “mitos, sem base científica”. A grande imprensa evita discutir o tema, temendo que isso prejudique os seus esforços para manter público e anunciantes, face à migração para plataformas digitais. 

"A defesa da imparcialidade jornalística está discretamente escondida através da ênfase que a grande imprensa passou a dar à técnica jornalística de ouvir os dois lados numa reportagem ou comentário. Acontece que o chamado ‘dois ladismos’ também é contestado porque simplifica a realidade a apenas duas abordagens e raramente as duas versões recebem o mesmo tratamento, tanto em tempo como em profundidade”, aponta Castilho. 

A origem de um mito chamado objectividade 

O autor explica que “o mito da objectividade é uma consequência da evolução das chamadas ciências da cognição, que estudam os processos pelos quais as pessoas incorporam dados da realidade na sua memória individual para desenvolver comportamentos e ideias”. Cada pessoa percebe o mundo de forma única, recombinando informações sensoriais com memórias anteriores, o que torna a objectividade impossível. “É nesta recombinação que está a chave da desmistificação da objectividade jornalística”. 

As distintas heranças culturais, influências geográficas e níveis económicos e educacionais são aquilo que contribui para as percepções que cada indivíduo faz da realidade. Deste modo, como refere Carlos Castilho, “é inevitável que cada notícia, comentário ou reportagem produzida por um jornalista acabe influenciada pelo conjunto de conhecimentos, vivências e percepções acumuladas pelo profissional ao longo da sua vida. Logo, também é inevitável que sempre exista uma diferença entre o que o jornalista viu, ouviu ou sentiu e a realidade”.  

Os entrevistados, as fontes consultadas e aquilo que não será divulgado são escolhas do jornalista, com base em factores pessoais como experiência, cultura, origem étnica, localização, idade e sexo do profissional. 

“Impor uma determinada visão do mundo como sendo a única confiável equivale a falsificar a verdade e induzir outras pessoas em erro na avaliação da realidade”. Para Castilho, as “bolhas informativas” são estimuladas pela negação da pluralidade de pontos de vista, o que pode transformar o espaço público num “campo de batalha” ao invés de um ambiente propício ao intercâmbio de ideias.   

Conviver com a dúvida 

“Quando mais e mais pessoas passam a perceber que a imparcialidade jornalística é um mito, elas são levadas a conviver com uma dúvida inquietante. Como então ler uma notícia, olhar para uma foto ou assistir uma reportagem se já não se pode encará-la como a reprodução fiel da realidade?”, questiona o jornalista. A resposta é que, no jornalismo, precisaremos aprender a relativizar as informações. “Isto significa que precisaremos julgar uma notícia não com base em categorias como verdadeiro ou falso, mas com a preocupação em procurar mais de uma versão sobre o mesmo dado, facto ou evento publicado na imprensa”. 

Produtores e consumidores de notícias precisarão desenvolver novos critérios para tratar e avaliar as informações, situando-as no seu contexto e incorporando o perfil dos profissionais que as criaram. “Será muito difícil para um jornalista cobrir todos os lados de uma notícia com a mesma extensão e profundidade, o que obrigará o profissional a reconhecer as limitações a que está sujeito e admitir a possibilidade do seu trabalho incorporar algum viés”, salienta Castilho. 

Perante este cenário, Carlos Castilho considera que a publicação do currículo profissional do jornalista é um “item obrigatório”, superando a importância dos "disclaimers" actuais, que revelam se existem ou não ligações com os protagonistas de uma notícia. Além disso, é crucial que haja transparência quanto aos objectivos e métodos utilizados na produção das reportagens. 

“Tudo isto indica a necessidade de uma forte dose de humildade profissional, determinada não por deficiências técnicas do jornalista, mas pela crescente complexidade do ambiente informativo em que vivemos. Não está em questão a capacitação dos profissionais, mas o reconhecimento de que as condições técnicas, humanas e económicas para o exercício do jornalismo mudaram radicalmente e que a sobrevivência da actividade depende de ajustes aos novos ecossistemas informativos”.  

Encontramo-nos nas primeiras etapas de uma “profunda transformação” na relação com as notícias, o que exige mais estudos e testes. E Castilho conclui: “Também já dá para prever que, como a mudança afecta tanto os jornalistas como o público, torna-se compulsória a colaboração entre estes dois actores no processo de comunicação. Recriminações mútuas apenas tornam a transição para o novo modelo mais tensa, demorada e imperfeita". 

(Créditos da imagem: Pexels)