Um artigo publicado no Le Monde aborda a forma como o Ocidente está a perder a “batalha da informação internacional”. Sob a ordem de Donald Trump, a Voz da América deixou de emitir, assim como o financiamento da Rádio Free Europe (RFE) e da Rádio Free Asia foi reduzido, com a estagnação das negociações europeias para salvar estas instituições. Em contraste, os meios de comunicação internacionais na China e na Rússia têm orçamentos enormes. 

O artigo relata a crise enfrentada pelos meios de comunicação norte-americanos internacionais, destacando a situação de Alsu Kurmasheva, uma jornalista russo-americana que passou nove meses nas prisões russas entre 2023 e 2024. “Para ela, a emergência é a crise existencial dos seus meios de comunicação social, que colocou uma parte da redacção em regime de horário reduzido”. 

No mês passado, Donald Trump considerou “desnecessário” o sector da radiodifusão internacional norte-americana e Kari Lake, nova responsável pela United States Agency for Global Media (USAGM), anunciou o fim de várias das suas emissoras. As transmissões da Voz da América foram interrompidas, com a colocação de colaboradores em licença forçada e acções judiciais em curso. Outros meios, como a Middle East Broadcasting Networks e a Radio Free Asia, também enfrentaram sérias dificuldades financeiras, com cortes e planos de despedimentos. 

A Radio Free Europe, enquanto organização sem fins lucrativos, não sentiu o impacto da crise financeira de forma tão imediata graças ao subsídio anual aprovado pelo Congresso dos EUA. Em 2025, a subvenção é de 142 milhões de dólares (125 milhões de euros), com validade até ao final de Setembro. No entanto, a USAGM recusou-se a pagar a parte referente a Abril, o que resultou em despedimentos e cortes em programas. “É uma questão de limitar as despesas para podermos aguentar mais tempo”, explica Stephen Capus, presidente da RFE. Sem grandes detalhes, estima que poderá continuar “durante várias semanas” nas condições actuais”, adiantou ao Le Monde

Capus iniciou um processo judicial urgente, do qual saiu vitorioso, já que o subsídio foi aprovado pelos representantes eleitos dos EUA, e, portanto, o novo director da USAGM não poderia alterá-lo durante o ano. Contudo, apesar da ordem judicial, o dinheiro ainda não chegou à organização. 

"Todas as semanas, chegamos a 9% dos russos, 13% dos ucranianos e 10% dos iranianos. Se nos tirarem, haverá um vazio terrível. As pessoas precisam do que nós oferecemos: informação gratuita", explica Capus.  

Um opositor de longa data de Vladimir Putin confirma que, embora a RFE já não seja a única fonte de informação independente, continua a ser a única a cobrir regiões como o Cáucaso, Sibéria e as regiões do Volga, trazendo à tona histórias de pessoas que foram detidas e opositores pouco conhecidos. Para contornar a censura russa, assiste à programação da RFE usando uma VPN, mas alerta para o risco de divulgar esta prática. 

O trabalho jornalístico da Radio Free Europe cobre assuntos políticos sensíveis que são evitados pelos media nacionais locais, como abusos de poder e corrupção. Um exemplo é o julgamento de dois adolescentes no Daguestão, acusados de "terrorismo", que a RFE foi a única a cobrir. Desde a invasão russa da Ucrânia, a RFE tem-se concentrado em casos de repressão e processos políticos contra jovens críticos do governo, que escapam à cobertura da imprensa nacional e internacional. 

“O colapso da Voz da América e da RFE faz parte de um recuo mais amplo do Ocidente na batalha internacional pela informação, à medida que a Rússia e a China passam à ofensiva neste domínio. Do lado ocidental, oito países têm meios de comunicação social internacionais importantes (Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Canadá, Japão, Austrália e Suíça) que, tal como a RFE, se propuseram a defender uma informação equilibrada e verificada, para combater os infomercials e as manipulações de todo o tipo. Mas com défices orçamentais crescentes, a maior parte deles está a sofrer financeiramente”, lê-se no artigo do Le Monde

Enquanto os orçamentos dos oito principais meios de comunicação social internacionais ocidentais somam 2,1 mil milhões de dólares, os orçamentos dos meios de comunicação russos e chineses são estimados entre 6 e 8 mil milhões de dólares, três a quatro vezes mais. 

O caso da BBC

O avanço da influência mediática russa pode ser exemplificado pela substituição da BBC pela emissora russa RT no Líbano em 2023. Inclusivamente, num outro artigo do Le Monde, é referido que o director do BBC World Service, Jonathan Munro, está a pressionar o governo britânico para garantir um novo orçamento devido a problemas financeiros enfrentados pela emissora. Desde 2014, o financiamento da BBC foi alterado: “Antes, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido financiava a BBC, mas a partir de então, a taxa de licença passou a cobrir todos os custos. Com um orçamento actual de 400 milhões de libras, dois terços vêm da taxa de televisão, que tem aumentado a um ritmo inferior à inflação desde 2010”.   

Esta situação resultou em cortes de postos de trabalho e na fusão de canais, prejudicando a audiência internacional. Munro está a fazer pressão para que, na renovação da Carta Régia da BBC em 2027, o financiamento seja novamente garantido pelo governo. O director do BBC World Service insiste que “um mundo instável precisa de mais defesa, mas também precisa de mais jornalismo imparcial, exacto e de livre acesso" e que a BBC “faz parte de uma batalha pela segurança e estabilidade globais”. 

Apesar de ter sido proibida na Europa, a RT continua a expandir-se e a desafiar o Ocidente, com apoio governamental robusto e um porta-voz russo a afirmar que o seu orçamento é "suficiente para fazer tremer todo o establishment mediático ocidental". 

Jan Lipavsky, ministro dos Negócios Estrangeiros da República Checa, apelou aos países europeus para que ajudem a salvar a Radio Free Europe e sublinhou que “estamos prestes a perder um instrumento muito eficaz para falar com as populações dos nossos adversários e temos de fazer tudo o que pudermos para o salvar”. 

Lipavsky discutiu a situação com Marco Rubio, secretário de estado dos EUA, mas a conversa foi breve. Também obteve o apoio de onze países europeus, que assinaram uma declaração de princípios para salvar a RFE, contudo, o grande desafio é financeiro. Bruxelas está a considerar uma subvenção excepcional, mas não seria suficiente para cobrir o orçamento actual da rádio. Além disso, muitos países europeus possuem os seus próprios serviços de comunicação internacional e não estão dispostos a dividir os recursos disponíveis. 

O texto mostra ainda a preocupação de líderes da France Médias Monde e da Deutsche Welle com o “vácuo” deixado pela retirada da USAGM, temendo que seja preenchido por “concorrentes hostis”. Apesar dos esforços conjuntos e da ampla cobertura linguística, ainda não conseguem substituir a actuação da USAGM: “Em conjunto, fizeram um primeiro inventário da situação e consideraram o desenvolvimento de novas línguas, com a ideia de reintegrar os jornalistas que perderam os seus empregos. Mas, mesmo somando as línguas cobertas pela Deutsche Welle (32 línguas, com um orçamento de 450 milhões de euros em 2025) e pela France Médias Monde (21 línguas, com um orçamento de 276 milhões de euros), isto não cobriria totalmente a retirada da USAGM (mais de 60 línguas, com um orçamento de 876 milhões de euros)”.

(Créditos da imagem: European Pressphoto Agency)