A arquitectura da informação como forma de reforçar a credibilidade dos “media”

O Observatório da Imprensa, parceiro do CPI, dá a conhecer um texto de Richard Gigras, executivo e empresário americano, no qual reflecte sobre o paradoxo entre liberdade de expressão e a prosperidade da democracia, reconhecendo que, embora se acredite numa imprensa livre, na liberdade de expressão e na democracia, essa liberdade pode gerar “fragmentação de perspectivas” e dificultar o alcance de consenso.
O autor aponta que a sociedade actual está profundamente dividida, marcada por “conflitos étnicos, religiosos e económicos” e alimentada pelo “medo do outro”. O texto denuncia a degradação do debate público: “Demonizamos aqueles dos quais discordamos”, recorrendo a “memes acusatórios simplistas” que aprofundam as divisões.
Richard Gingras menciona alguns dados do Pew Research Center que destacam o declínio da confiança no governo americano de “quase 80% no início da década de 1960 para 20% hoje”. Para além disto, menos de 20% dos americanos acreditam que a democracia é um bom modelo a seguir por outros países.
Apesar de a internet ser vista como catalisadora desta crise, o texto lembra que “não começou com a internet”. Desde a imprensa de Gutenberg, cada avanço na comunicação provocou rupturas sociais: “Com cada progresso nas comunicações há uma expansão de vozes, uma fragmentação de crenças e um aumento tanto na intensidade quanto no volume de perspectivas conflitantes”.
O empresário recorda o passado da comunicação nos EUA: “Há setenta e cinco anos, o ecossistema mediático nos Estados Unidos era um oligopólio de alguns grandes veículos de comunicação”, oferecendo uma “visão selectiva e incompleta da sociedade”, que deixava “vozes à margem”. A chegada da TV por cabo e via satélite veio fragmentar ainda mais o ambiente mediático, e mais tarde da internet, e esta estrutura foi sendo fragmentada, levando à criação de “silos de crenças”.
Para Richard Gigras, cada lado político tende a desprezar o jornalismo do outro: “A marca jornalística de esquerda é desprezada pela direita. A de direita é desprezada pela esquerda. Ambas se inclinam para a afirmação em vez da informação, com a cobertura baseada em factos a ser afogada numa enxurrada de opiniões ou distorcida pela lente do viés político”.
A internet multiplicou exponencialmente essa fragmentação, “de 500 canais para mais de um bilião de vozes”, o que criou uma realidade onde as pessoas “escolhem as vozes que reflectem e confirmam os seus preconceitos”, o que contribui para uma sociedade que “resiste ao consenso”.
O autor evoca Platão, que alertava para o risco de uma democracia sem limites à liberdade de expressão: “Uma sociedade com liberdade de expressão irrestrita é mais susceptível ao demagogo implacável”, capaz de “disseminar desinformação, incitar o ódio e minar os valores democráticos”.
O que reserva o futuro?
O texto reflecte ainda sobre o futuro do jornalismo e da democracia no actual ecossistema digital, partindo da seguinte premissa: “Políticas públicas não oferecem soluções milagrosas para enfrentar os desafios que temos”. Ainda que sejam consideradas essenciais em áreas como desinformação, privacidade ou segurança cibernética, o autor alerta que estas políticas podem colidir com os princípios da liberdade de expressão e da imprensa livre, especialmente quando se tenta definir o que é discurso aceitável ou não: “Gerir a liberdade de expressão numa sociedade livre e aberta é uma contradição”.
É também criticada a crescente tendência de se aceitar a liberdade de expressão apenas quando esta é “aceitável e agradável”. Esta selectividade é vista como um risco e “devemos pensar cuidadosamente antes de pedir aos governos que definam a liberdade de expressão num mundo politicamente conflituoso — esquerda versus direita, um lado no poder hoje, o outro amanhã”.
Perante este contexto, o autor defende uma reflexão dentro dos próprios media: “Considerar abordagens jornalísticas que possam guiar as sociedades em direcção ao consenso versus divisões”. Propõe-se repensar modelos de confiabilidade e formas de envolvimento cívico. É defendido que o jornalismo deve conquistar respeito, e não apenas afinidade: “Construir confiança em meio a abismos de divisão é difícil. A isto se chama respeito”.
Richard Gingras propõe uma visão de jornalismo mais objectiva e informativa: “Não se trata de dizer às pessoas o que pensar, mas de lhes dar as informações necessárias para tirarem as suas próprias conclusões”. O autor faz questão de frisar que a objectividade é um processo rigoroso de pensamento crítico que “procura factos com precisão e justiça, independentemente de estarem alinhados com as crenças pessoais ou a agenda política de alguém”.
O autor defende também a importância da “arquitectura da informação” como forma de reforçar a credibilidade — destacando que publicações como o The New York Times ou Washington Post misturam jornalismo factual com cada vez mais opinião, o que pode minar a confiança: “Não podemos esperar confiança generalizada se o jornalismo factual estiver cercado por artigos de opinião que sugerem o contrário”.
A linguagem e o contexto são igualmente fundamentais. Janet Coats é citada no texto, uma investigadora que demonstrou como verbos incendiários usados na cobertura de protestos (“faísca”, “erupção”, “ignição”) podem reforçar divisões e gerar percepções distorcidas. No que diz respeito ao contexto, o autor considera que “erros de contexto podem ser mais perigosos do que erros de facto. A falta de contexto pode ser um descuido inconsciente na confusão das notícias de última hora”. É necessário, por isso, fornecer um contexto mais ponderado para diminuir o fosso entre o medo irracional e o racional.
O texto propõe uma abordagem prática: reforçar o papel das organizações jornalísticas locais como plataformas comunitárias, que devem procurar ser “assiduamente apolíticas”, responder às necessidades informativas da comunidade e estimular a participação em temas não polarizadores.
O modelo é já aplicado por iniciativas como a Cityside em várias comunidades na Califórnia e a CityNews na Itália, ou ainda uma editora no Canadá chamada Village Media, que lançou uma rede social comunitária chamada “Spaces” onde se procura “construir conexões entre a discussão virtual e o envolvimento no mundo real”
O objectivo final é “estimular o envolvimento comunitário” e “construir capital social”, criando uma consciência partilhada que torne a democracia mais resiliente.
Um passo em frente
Apesar da complexidade dos desafios, o texto insiste que “há respostas, SE recuarmos e repensarmos os modelos em todas as dimensões”. Para isso, é preciso garantir uma liderança ponderada e ética, proveniente de todos os sectores (“media, tecnologia, academia e política”) e orientada para o bem comum.
“Mudar a natureza do envolvimento social exigirá a liderança de muitos. Não pode e não será resolvido por uma acção isolada”, enfatiza Richard Gingras. Mesmo com preocupações legítimas com o estado do mundo, o texto conclui com uma nota de esperança: “Tenho confiança no nosso futuro. Há caminhos construtivos a seguir. Há soluções viáveis. Precisamos levá-las até onde for possível”.
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