João Lobo Antunes começou por fazer uma breve história da sua ausência e do seu regresso a Portugal, por motivos de formação profissional, com o 25 de Abril pelo meio: “Tinha partido para Nova Iorque em 1971 para adquirir treino especializado na área médica que escolhera, a neurocirurgia. Aquele fora concluído em Junho de 1974, mas entendi que provavelmente não era então tempo propício para o retorno de um jovem médico, ‘american-trained’.”

Voltou de vez dez anos mais tarde, não sem fazer uma reflexão com alguma amargura:

“O grupo de amigos que eu deixara razoavelmente homogéneo nas convicções e com acomodada resignação em relação a hábitos gravados havia, pelo menos, três gerações, estava agora fracturado por opções políticas cuja escolha me parecia mais determinada por paixões hibernadas num longo sono bruscamente interrompido, e não necessariamente sustentadas por uma racionalidade reflexiva e crítica. Em alguns, o activismo político parecia pagamento de promessa ou penitência; noutros era o florescer sério de convicções até então mudas; num grupo menor, era o aproveitamento vil de oportunidades de trepar a todo o preço. Respeitei quase todos, esqueci os últimos. (.../...)”

Também no meio profissional o regresso foi temperado por alguma surpresa e desilusão:

“O ano em que cheguei (1984) foi dramático, e as dificuldades económicas do País, não chegando, pelo menos na sua expressão social, às que vivemos desde 2011, faziam-se sentir de forma agudíssima na área da saúde. Encontrei um Hospital Universitário cujo apetrechamento técnico era então o de um país do terceiro mundo, em que se trabalhava pouco (por vezes muito pouco!) e ninguém parecia dar por isso. Um outro aspecto me chocou de imediato, que foi encontrar gente, que no meu juízo anterior me parecera de limitado mérito, a ocupar posições de destaque para mim incompreensíveis. (.../...) Ou seja, o 25 de Abril não deixara marca profunda naqueles que deveriam constituir as elites do país e operar a verdadeira revolução na cultura, nos costumes e nas políticas.”

 

Reconheceu no entanto, como valor positivo, que algo tinha mudado radicalmente:

“A respiração da liberdade de um povo que, abafada durante décadas, agora se sentia na expressão triunfante, anárquica, quase poética, de opiniões desencontradas, absurdas ou racionais, mas unidas pelo fio comum que era o direito de serem comunicadas e ouvidas, mesmo quando se suspeitava que não serviam qualquer propósito. De facto, em larga dimensão, representavam uma exuberante utopia no sentido filosófico próprio do conceito, ou seja, galgavam os limites do que parecia ser pragmático ou realista, e buscavam outro modo de ser ou estar em sociedade, sustentado por princípios morais que tinham em conta a natureza do homem e da história e os progressos da ciência e da tecnologia, tudo isto ampliado pela eclosão de um sentido irreprimível de liberdade.”

 

João Lobo Antunes ligou este tema ao da ética da autenticidade, para dizer o seguinte: 
“Para alguns, entre os quais me conto, a decisão de retrair a sua intervenção política, ou a reticência duma exposição mais aberta, é consequência de não serem capazes de ocultar as suas convicções mais fortes num discurso opaco, envolvê-las num véu retórico que torne quem as profere mais popular, mais agradável ao paladar do poder, qualquer que ele seja, enfim que não desafine no órfeão partidário.”

 

Para se pronunciar sobre o estado da sociedade portuguesa, um dos principais temas propostos, João Lobo Antunes seguiu a análise proposta por Jerome Kagan, da “correlação positiva entre as seis propriedades seguintes”:  1. - uma democracia participativa;  2. - um sistema judiciário minimamente corrupto (repare-se que não é dito incorrupto);  3. - o respeito dos cidadãos pela lei; 4. - uma imprensa livre (e esta liberdade é, naturalmente, extensiva aos outros meios de comunicação); 5. - uma educação pública gratuita até ao 12.º ano; 6. - um crescimento económico sustentado.

 

O orador comentou depois os pontos fortes e fracos do modo português de viver estas dimensões, demorando-se especialmente na primeira, a questão da democracia participativa, e a insatisfação e mesmo a falta de confiança ou até  “o desprezo (muitas vezes não justificado) por aqueles que elegemos, a desconfiança em relação ao seu discurso e à verdade do que afirmam” (.../...). Contra este cepticismo, defendeu os valores descritos na “democracia humilde” teorizada por John Keane.

 

“Esta “democracia humilde” teria várias características:

- Reconhece e fomenta a necessidade de compreender que múltiplas formas de democracia são concebíveis e viáveis.

- Advoga virtudes simples como a tolerância, o respeito pela legalidade e a não-violência, privilegia o pluralismo e a igualdade complexa.

- Opõe-se à prepotência e à manipulação, e o seu poder está ampliado pela convicção de que a verdade e a justiça estão do seu lado. Segue o conselho de Benedetto Croce de que os que estão na política devem aprender a respeitar o poder dos ‘não-políticos’, isto é, a contribuição da sociedade civil.

- Cultiva as grandes virtudes democráticas, como honestidade, misericórdia, tolerância e coragem e, acima de tudo, humildade, e rejeita a arrogância descarada e todas as formas de agressividade.”

 

Depois de citar os indicadores positivos da situação portuguesa, conquistados em democracia, João Lobo Antunes perguntou:

“Que me parece mais faltar como alimento para Portugal ser uma democracia moderna, saudável e competitiva? Enuncio apenas dois aspectos fundamentais:

- um sentido lúcido de um desígnio e de um propósito, ou seja, a definição do que é que queremos como destino e como o podemos cumprir;

- a afirmação clara do que é o interesse público e como pode ser servido na educação, na justiça, na saúde, na segurança social, enfim em todas as áreas de intervenção do Estado e dos cidadãos.”

 

A respeito da dificuldade em obter consensos, fez a seguinte proposta:

“Porque no consenso os valores que lhe estão subjacentes são partilhados, com sistemas políticos cada vez mais polarizados é cada vez mais difícil obter consensos sustentados por uma base comum de valores. Parece mais viável e útil promover a obtenção de compromissos em que as bases comuns de acção obrigam cada parte a sacrificar uma fracção daquilo que defendem como proposta, aceitando que essa é a forma de garantir a execução de reformas ou projectos políticos que melhor servem os interesses de todos. Infelizmente, nas democracias modernas, conforme reconhece Amy Gutmann num luminoso estudo sobre esta matéria, todos os dias são dias eleitorais, o que significa que os partidos vivem em campanha permanente e nenhum político quer dar a imagem de fraqueza ao aceitar participar num compromisso. Este só é aceite na iminência de uma crise.”

 

João Lobo Antunes interrogou-se ainda sobre “a ausência de grandes vultos, de ‘estadistas’, como é costume dizer-se”. E concluíu:

 

“Alguém de sucesso afirmou que o que se se pode esperar dos líderes é uma capacidade aumentada de lidar com a incerteza e com o risco, e estes são dois dos traços salientes do mundo de hoje. Esta missão de tomar nas mãos o destino dos povos e com eles construir o futuro é para gente de inteligência, coragem e generosidade. Onde param agora? De que outra liberdade precisam para florescer?”