A autora descreve um processo em que não teve “uma única palavra de explicação, de apoio e de solidariedade de quem devia e podia”, tendo sido “destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável”.

Afirma também ter cometido os dois erros de “levar o jornalismo demasiado a sério, quando ele não queria ser levado a sério”, e de “a certa altura da minha vida ter colocado o jornalismo à frente de tudo. Da literatura, sim (comecei a escrever muito tarde), dos meus próprios filhos, quando eram pequenos - e isto dói”.

O seu diagnóstico sobre o estado do jornalismo é descrito, aliás, em termos muito fortes:

“No jornalismo conheci as piores pessoas, as mais cobardes, as mais desleais, as mais mesquinhas, as mais medíocres, as mais desinteressantes, as mais incompetentes, as mais desonestas... (...) Mas depois conheci pessoas maravilhosas que se tornaram amigas de infância. E isso vale tudo e apaga o resto.”

 
Segue o "Debituário" redigido por Ana Margarida de Carvalho, cujo texto, na íntegra, recolhemos da sua página no Facebook:

 

Havia um autor famoso que dizia 'fala sobre o que quiseres, mas não escrevas sobre a vidinha'. Pois venho desobedecer-lhe, é justamente da vidinha que eu venho aqui tratar. Da minha. E quero, antes de tudo, agradecer a tantos e tantos amigos e colegas (alguns distantes) que se interessaram e quiseram saber e me telefonaram e mandaram mensagens. Nem imaginam como foi importante para mim. Não vou esquecer. Os que não me falaram, não se preocupem, eu já esqueci.

1º- Não deve haver nada mais inglório do que acabar uma carreira de 24 anos de jornalismo num gabinete de um director de recursos humanos.

2º- Não deve haver nada mais inglório do que ter de enfrentar sozinha um destes seres anónimos e transitórios, sem uma única palavra de explicação, de apoio e de solidariedade de quem devia e podia.

3º- Não deve haver nada mais inglório do que ser destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável.

4º- Este meu despedimento não foi a pior coisa que me aconteceu naquela redacção. Foi apenas a última.

5º- Não guardo qualquer ressentimento em relação a esta direcção. É tão má como qualquer outra anterior (sem contar obviamente com a do Carlos Cáceres Monteiro, o único director, grande-repórter, líder que conheci). Estes apenas fazem o que lhes mandam- e mal. São outros seres anónimos e transitórios. E estão assustados (no sentido brechtiano do termo).

6º- Cometi um erro: foi levar o jornalismo demasiado a sério, quando ele não queria ser levado a sério. 

7º- Não, cometi dois erros: o de a certa altura da minha vida ter colocado o jornalismo à frente de tudo. Da literatura, sim (comecei a escrever muito tarde), dos meus próprios filhos, quando eram pequenos - e isto dói.

8º- Terceiro erro (há sempre um terceiro): estava sempre tão atolada em trabalho, tão concentrada nas reportagens, nas entrevistas, numa correria, cheia de entusiasmos - o que não faz mal nenhum porque era muito nova, tinha muita energia, mas tinha muita ingenuidade também. Resultado: nunca dei conta, a tempo, de como a incompetência e falta de talento estão associadas, por sua vez, a um talento desmesurado para a intriga e para o 'mau coleguismo'. .Palavra que não fazia ideia de que a inveja podia ser uma força tão mobilizadora.

9º- No jornalismo conheci as piores pessoas, as mais cobardes, as mais desleais, as mais mesquinhas, as mais medíocres, as mais desinteressantes, as mais incompetentes, as mais desonestas, algumas nem sabia que podiam existir (achava que era só nos livros, enfim)... Mas depois conheci pessoas maravilhosas que se tornaram amigas de infância. E isso vale tudo e apaga o resto.

10º- Por causa do jornalismo contactei de perto com personalidades admiráveis, fui a sítios onde jamais iria, conheci mundos outros. Nunca cometi nenhum erro grosseiro, nunca falhei um prazo, nunca me atrasei na entrega de algum trabalho... Nunca lisonjeei para cima, nunca desmotivei quem esteve abaixo de mim. Devo-lhe muito, mas não farei as pazes com o jornalismo tão cedo. Talvez um dia. Porque o trabalho é um direito, não apenas um dever, a minha vontade é, juro, ir-me embora, sair do país, ir fazer voluntariado para um sítio longínquo e perigoso, onde não me considerem «dispensável». . Bom... depois do Natal logo vejo... 

Obrigada a todos os que chegaram até aqui 

amc