Conheci Francisco Pinto Balsemão ainda na década de 60 do século passado, quando ambos dávamos os primeiros passos no jornalismo. Ele como assessor da direcção editorial e sobrinho (estimado) do principal accionista do extinto “Diário Popular”, recém saído do serviço militar cumprido; e eu como repórter estagiário do jornal, convidado a fazer parte da redacção, depois de ter ficado apurado num curso de Verão promovido pelo vespertino.

Houve empatia desde o início e floresceu uma amizade que resistiu muitos anos  às vicissitudes do tempo.

Balsemão foi inovador desde o primeiro momento em que se sentou no gabinete, instalado ao lado do de Martinho Nobre de Melo, o então director formal do “Diário Popular”.

Quando chegava à redacção da Luz Soriano, no coração do Bairro Alto - então conhecido pelo “bairro da tinta”, tendo em conta os jornais sediados na zona -, Balsemão já estava inteirado da marcha do mundo, leitor infatigável da grande imprensa internacional, na qual não se cansava de aprender.

A pouco e pouco tomava o “pulso do jornal “e ganhava-lhe o gosto. E, sem hesitar, achou que não fazia sentido a redacção ser exclusivamente masculina, abrindo-a à participação feminina. Uma novidade, então, com sabor a ousadia.

Entre outras jornalistas, entraram Maria Armanda Falcão, cuja notoriedade ficaria a dever-se ao pseudónimo de Vera Lagoa, e Maria Armanda Passos, nessa altura casada com o maestro Vitorino de Almeida. E a redacção do “Popular” nunca mais foi a mesma, à medida que as jornalistas recém-chegadas conquistavam o seu espaço próprio.

Outra inovação, que hoje parecerá uma história a roçar o caricato,  foi o desafio lançado por Balsemão aos jornalistas para deixarem de manuscrever os seus textos… impondo na redacção as máquinas de escrever!... E não foram poucos os que resistiram a fazê-lo.

Lembrei-me deste episódio quando, mais tarde, já no “Diário de Notícias", encontrei o mesmo tipo de resistência em alguns jornalistas que se recusavam a trocar a máquina de escrever… pelo computador.

Balsemão “descobriu-se” jornalista no “Diário Popular” e apaixonou-se pelo jornalismo como se fosse a sua vocação original, apesar de ser advogado estabelecido com grande apetência política, como veio posteriormente a revelar-se.

Na prática, era ele o verdadeiro director do jornal, como tal reconhecido pela redacção, que frequentava diariamente qual jornalista de tarimba, com um diálogo fácil, afectuoso e bem informado com toda a gente. Chegava cedo e saía tarde e depressa se percebeu que tinha uma invulgar capacidade de trabalho.

A sua ligação ao jornal foi tão profunda que quando o “tio Balsemão”, como era tratado, resolveu vender o jornal ao banqueiro Miguel Quina, que lhe fizera uma proposta irrecusável, sentiu essa decisão como um golpe nas suas aspirações que não podia deixá-lo parado, de braços cruzados.

E assim aconteceu. Já na década de 70, Balsemão desenhou o projecto do “Expresso”, o seu “navio-almirante” como gostava de chamar-lhe, que, rapidamente, se converteu num fenómeno de vendas e de audiência, em particular, junto dos sectores mais influentes da sociedade portuguesa, desiludidos e cansados com o marcelismo.

A frustração emocionada, que testemunhei, perante a venda do “Diário Popular”, serviria de preciosa alavanca para se envolver, de corpo inteiro, no lançamento do “Expresso”, em Janeiro de 1973, cuja consolidação não foi tarefa fácil, até pela perseguição, movida pela Censura, que cortava a eito no semanário, ao ponto de impor, já perto do 25 de Abril, o visto prévio nas páginas fechadas do primeiro caderno.  

Balsemão viria a confessar que se o 25 de Abril não tivesse ocorrido entretanto, o “Expresso”, apesar do sucesso, não teria, provavelmente, condições de sobrevivência.

Com o mesmo entusiasmo que empenhara na fundação do “Expresso” (e do PSD, ou PPD na versão original, partido no qual passou a figurar como “militante no. 1”, ao lado do seu amigo Francisco Sá Carneiro), Balsemão criou a SIC, o seu “outro lado”, que surgiu em 1992, mobilizando amigos e investidores para viabilizar um projecto que sentia ser a outra âncora na sua estratégia multimédia.   

Resistiu a não poucas adversidades, viu desaparecer Sá Carneiro num acidente nunca esclarecido, foi primeiro ministro quando a sua ambição política era ser ministro dos Negócios Estrangeiros, como um dia me confidenciou, construiu um império mediático, a partir do desgosto de perder o “Diário Popular”, onde fez profissão de fé no jornalismo.

Escreveu, leccionou, defendeu como poucos a liberdade de Imprensa, viveu a política e a vida com prazer, devoção e grandeza de alma. Teve decepções, até com quem julgava ser-lhe próximo. Mas o jornalismo foi sempre a sua referência e matriz.

Francisco Pinto Balsemão morreu aos 88 anos, com uma vida cheia e um legado para quem vier a seguir. O “Diário Popular “marcou-o e o “Expresso” deve-lhe a existência.

Desde então, a paisagem mediática mudou radicalmente. Os vespertinos acabaram há muito e os matutinos sobrevivem no meio de muitos apertos.

Balsemão terá sempre um lugar cativo na memória dos jornalistas que o conheceram de perto e com quem trabalhou. Publicou o seu livro-testemunho em 2021, pressentindo, talvez, que se aproximava do fim da linha.

Curiosamente, à distância de meio século, publicou um outro livro que causou mossa no regime vigente. Tinha por título “Informar ou depender”, uma obra que debatia a liberdade de imprensa e o futuro do jornalismo numa sociedade cada vez mais tecnológica.

E que reclamava uma independência, que lhe serviu de divisa na vida e da qual nunca abdicou.

Sem ele, a história do jornalismo em Portugal não seria mesma. Com o seu desaparecimento fecha-se um ciclo. O último acto de um protagonista, símbolo de convicções e valores que cultivou com desassombro e que têm hoje menos seguidores do que sonhou.