A mim, coube-me apenas prefaciar a obra.

Confesso que, quando me contactaram para o efeito, fiquei incrédulo. Pensei estupidamente que seria um engano, uma confusão. Não sou crítico literário e nunca tinha escrito uma linha sobre Agustina Bessa-Luís! Uma única linha! Explicaram-me depois que não era confusão nem engano -- era mesmo a mim que queriam, e que a insistência partira do próprio marido de Agustina. Muito obrigado pela confiança.

Aí iniciou-se outro processo.

Aceitei o convite com orgulho – mas também com medo. Desde miúdo habituei-me a ouvir o meu pai dizer em casa que Agustina Bessa-Luís era uma escritora genial, de dimensão universal. O meu pai era um admirador incondicional de Agustina. Portanto, prefaciar um livro seu, ficar ligado às suas prosas prodigiosas, era uma responsabilidade tremenda.

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Na Imprensa portuguesa, Agustina escreveu durante 56 anos -- entre 1951 e 2007.

Publicou artigos em numerosíssimos jornais e revistas, do Norte, Centro e Sul.

Para tornar este relato menos fastidioso, imaginemos que os jornais eram homens. Se assim fosse, Agustina Bessa-Luís teria tido um namoro antes de casar, quatro casamentos, dois amantes e inúmeros flirts.

O primeiro namoro a sério foi com o Diário do Norte, onde Agustina publicou os primeiros textos, com 29 anos.

Os casamentos, depois, foram sucessivamente com o Diário Popular, o Jornal de Letras, O Primeiro de Janeiro (jornal do qual foi directora) e o Diário de Notícias.

Para além disso, teve uma relação séria com O Independente, já muito depois do 25 de Abril, e flirts com o Jornal Novo, O Comércio do Porto, a Grande Reportagem, O Liberal, arevista Factos e o Jornal de Notícias – o mais importante jornal do Norte mas onde só publicou 7 textos (e, mesmo assim, na fase final da sua vida literária).

Agustina colaborou ainda esporadicamente na revista K, no Semanário, n’ O Jornal, n’ A Tribuna, no Expresso, no Jornal do Comércio, na Colóquio Letras...

Como se vê, foi uma vida cheia, agitada e muito conturbada.

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Quando comecei este trabalho, uma das minhas grandes curiosidades consistia em perceber as diferenças de escrita entre os textos jornalísticos de Agustina Bessa-Luís e os seus textos de ficção – contos e romances. Mas a curiosidade saiu frustrada, pois cheguei à conclusão de que essas diferenças são desprezíveis. Agustina escreve do mesmo modo nas páginas de jornal e nas páginas dos livros. Do que ela gosta verdadeiramente é de escrever. O suporte não tem para ela nenhuma importância.

Enquanto os colunistas tradicionais da imprensa – entre os quais me incluo -- usam a escrita para emitir opiniões, Agustina faz exactamente o contrário: usa as opiniões como pretextos para escrever. Como oportunidades para exercitar a sua assombrosa veia literária. E o mesmo se passa com todos os géneros que cultiva: a escrita de Agustina, o estilo luxuriante de Agustina, acaba sempre por se sobrepor ao género, ao local e ao tema.

 

A prosa de Agustina Bessa-Luís faz-me lembrar o barroco nortenho, presente na Torre dos Clérigos ou no Bom Jesus do Monte. É por vezes excessiva mas sempre brilhante. Tem peso -- mas ao mesmo tempo parece sair-lhe com surpreendente ligeireza da ponta da caneta.

Grandes escritores como Eça de Queirós, Cardoso Pires ou Saramago sofriam muito a escrever. Isso nota-se nas provas torturadas, rasuradas, várias vezes reescritas. Em Agustina, pelo contrário, a escrita parece fluir espontaneamente. Como se brotasse de uma fonte, em que a água é sempre nova. Mesmo as frases complexas, rebuscadas, carregadas de intencionalidade ou de malícia, parecem não implicar da sua parte qualquer esforço.

                                                                           

Na Imprensa, Agustina publicou contos, crónicas de viagem, críticas literárias e de cinema, textos históricos, pequenas biografias, pequenos ensaios, obituários e epitáfios. E o que os caracterizava? Visitemos telegraficamente cada género.

No conto, embora nunca o tenha reconhecido, a escritora colocava por vezes maliciosamente personagens da vida real que detestava. E possivelmente colocaria outras de quem gostava. Mas a descrição dessas personagens reais não se distingue em nada das personagens inventadas. Entre umas e outras não é possível encontrar diferenças. Como se todas fossem reais; ou todas fossem imaginárias.

 

Na crónica de viagem, que Agustina cultivou abundantemente, a escritora aproveitava locais que visitava – cidades, praças, igrejas, fontes, palácios --, ou ainda simples episódios a que assistia na rua, como material para alimentar a escrita, tratando-os como se fossem pedaços de conto ou de romance. Agustina pegava no material que recolhia nas viagens por Portugal e pelo estrangeiro e transformava-o em literatura, tal como se fosse ficção.

 

No texto histórico, que a escritora também cultivou com desvelo, Agustina encontrou a possibilidade de manusear um material de excelência: grandes figuras da História de Portugal e do mundo, gestos heroicos, dramas, conquistas, vitórias e derrotas.

 

Na crítica literária e artística, que exerceu de certo modo como dever de ofício, Agustina Bessa-Luís revelou uma enorme erudição. Embora não se considerasse «uma estudiosa»,

os seus artigos estão cheios de referências eruditas. Cita com espantosa facilidade desde os clássicos aos contemporâneos, passando pelos modernos, como se o fizesse de memória. Fala com grande à-vontade dos autores gregos, dos franceses, dos americanos, dos vivos e dos mortos. Atente-se nesta observação deliciosa sobre Rabelais:

«Rabelais é um homem que ama o conforto, o fogo da la­reira e os meiotes de lã. Enquanto se sente felizar­do, comendo lombo de vaca e partindo nozes, cuja casca atira para as chamas com o prazer de contribuir para o calor e a paz do brasume, ocorrem-lhe trocadilhos pi­cantes e um sem-número de sujidades sem malícia. Mas não é um bêbado como Voltaire afirmava».

 

Nos textos políticos era onde a escritora se mostrava maisdesconfortável. Agustina Bessa-Luís não gostava de escrever sobre política. Antes do 25 de Abril não se meteu no assunto. E, depois, o seu conservadorismo não se adequou aos excessos do período revolucionário. «A fase revolucionária não é bela porque permite que a estupidez se generalize como um contra­ponto da dignidade humana», sentenciou.

Entre 1974 e 77 quase não escreveu nos jornais. E mais tarde explicará essa atitude: «Se evito fazer comentários políticos, pertinentes ou não, é porque a política não interessa sistematica­mente às pessoas comuns».

Mas ao mesmo tempo afirmava, indignada: «Não vão pensar que um romancista não é capaz de fazer jornais, nem entrar a pés juntos na pista política. Como não? Somos menos que Lamartine e Chateaubriand, que Victor Hugo, que Stendhal, que Montaigne, que Swift?»

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Pese embora toda a sua aversão ao fútil, ou o seu aparente desinteresse pelo efémero, Agustina escreveu nos jornais inesperados textos sobre episódios menores. Surpreendeu-nos, por exemplo, com artigos sobre a deputada e pornostar italiana Ilona Staller (Cicciolina), que na visita ao Parlamento português mostrou os seios a partir da galeria.

Ou com um texto sobre um jogo de futebol entre as selecções de França e Portugal, em que um penálti nos últimos minutos ditou o afastamento da selecção portuguesa do Campeonato Europeu. 

E a par disso manifestou-se também, evidentemente, sobre grandes temas de actualidade, como o brutal processo de mudança então em curso na União Soviética:

«É possível que Gorbatchev seja um déspota que começa como esclareci­do e pode acabar na ditadura pessoal, justificado por uma variedade infi­nita de realidades diferentes, como o próprio Deus».

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Não podia terminar sem referir dois temas centrais na vida de Agustina.

 

O primeiro é a sua relação com o universo das mulheres.

Quando fala de mulheres, Agustina mostra uma aversão telúrica ao feminismo convencional muito em voga. Ela acha genuinamente que as mulheres são diferentes -- e por isso está contra a igualização dos sexos, sobretudo quando a igualdade das mulheres é obtida através da imitação dos homens. Disse em certa ocasião:

«Não creio que a mulher se torne igual ao homem. Não creio que o pudor a abandone. Há, sem dúvida, hábitos que degradam a sensibilidade». E numa deliciosa observação sobre a personalidade feminina: «As mulheres não falam, fazem conversa».

De certa forma, era como se Agustina se encontrasse sentada na bancada de um estádio a observar, com um humor por vezes ácido, os comportamentos dos seres humanos do seu género.

 

O segundo tema é a relação de Agustina Bessa-Luís com o Norte e a cidade do Porto. 

Agustina é uma escritora do Norte. Não só por ter nascido em Amarante e vivido no Porto. Mas porque os seus textos estão impregnados desse espírito, dessa luz, desses ambientes, dessas pessoas. Como já disse, a sua prosa é comparável à Torre dos Clérigos ou ao Bom Jesus do Monte: possui a mesma força, a mesma gravidade, a mesma riqueza formal, o mesmo excesso.

A burguesia do Porto, da qual a escritora provém, limitou-a mas ao mesmo tempo forneceu-lhe a base e a matéria que lhe permitiu tornar-se universal. O Porto foi para ela uma limitação e um trampolim. A partir do Porto projectou-se no mundo. E por isso escreveu abundantemente sobre a sua cidade e os seus recantos e joias. É impossível imaginar Agustina sem a cidade do Porto. Mas, para quem a lê, é também impossível imaginar a cidade do Porto sem Agustina.

 

Agustina Bessa-Luís escreveu sobre tudo. Escreveu sobre Portugal e o estrangeiro. Escreveu contos e críticas de arte e de literatura. Escreveu editoriais e outros textos de opinião. Mas acabo como comecei: o importante para ela não era o tema, não era o género, não era o local – o importante para ela era a escrita. Ela não escrevia para transmitir ideias – ela usava as ideias para escrever. Para Agustina, a escrita não era um meio – era um fim. Do que ela gostava verdadeiramente era de escrever, de glorificar a palavra. «Eu escrevo sempre, não tenho calendário. Não me oriento pelas calendas gregas ou quaisquer outras», afirmou um dia. Tudo para ela era pretexto para escrever. Tudo para ela se transformava em prosa: uma prosa rica, exuberante, complexa, arrevesada, mas ao mesmo tempo límpida, bela e poderosa.

Deixo-vos com este extrato, adequado a um final em glória:

 

«Quando Dominguín entrou na arena, disse: ‘Eles vão-me ma­tar’. Consumava-se o presságio que há muito trazia escrito no rosto severo, de Semana Santa. De resto, a entrada da quadrilha numa praça de touros tem qual­quer coisa daquela procissão nas ruas de Sevilha. O lento choque dos bordões nas pedras é como a parada mortal dos estoques. A mesma cadência, o mesmo luxo, o mesmo ritual erótico. A corrida é uma festa de morte. A mais sincera, a mais inquietante por isso mesmo».

 

(texto integral da intervenção de José António Saraiva na sessão de apresentação do livro de Agustina Bessa Luís, na Fundação Calouste Gulbenkian)