A realidade actual “coloca os jornalistas diante de uma série de desafios imediatos, criados pelo frenético avanço das inovações tecnológicas e do ímpeto dos investidores interessados em lucratividade máxima”, mas “a primeira coisa que os meus colegas jornalistas precisam entender é que a inteligência artificial é um processo que tem alguns anos de existência e não um produto novo. Parece uma diferença subtil, mas não é”, diz Carlos Castilho no seu texto publicado no Observatório da Imprensa do Brasil, com o qual o CPI mantém parceria.

“A produção automática de textos começou há pelo menos 30 anos e o seu crescimento está associado à ampliação do volume de dados digitalizados e ao permanente avanço da sofisticação dos algoritmos que processam estes mesmos dados e os transformam em informações”, refere.

“Assim, o jornalismo não está às portas de uma hecatombe como muitos têm afirmado, mas é inegável que a actividade precisa, mais uma vez, rever os seus procedimentos, regras e valores para se adaptar a novas conjunturas profissionais”.

O jornalista faz, antes, um enquadramento da situação actual: a “organização News Guard revelou a existência de 49 páginas online rotuladas como «fazendas de conteúdos», especializadas na distribuição de textos distribuídos como notícias produzidas por softwares de inteligência artificial”.

Essas “49 content farms, o jargão inglês para fazendas de conteúdos, incluindo notícias sob encomenda, produzem automaticamente uma avalanche diária de, aproximadamente, 1.200 textos, quase metade distribuídos pelo Google Ad para um público avaliado, grosseiramente, em várias dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo. O público-alvo destes textos são, preferencialmente, donos de blogues, influenciadores, activistas ideológicos online como o «gabinete do ódio» e editores de páginas jornalísticas na internet, mas destinam-se, também, às pessoas comuns”, explica.

As “fazendas de conteúdos”, “produzem e distribuem informações geradas automaticamente em, pelo menos, sete idiomas diferentes, inclusive o português”, esclarece.

No entanto, “a organização especializada na monitorização de sites, afirma que as «fazendas», são hoje, a principal fonte distribuidora de fake news e desinformação”, assinala Castilho.

“Mas há outras iniciativas não menos perturbadoras”, aponta o autor.

Castilho faz referência ao tema também tratado num artigo do CPI, sobre o qual a OpenAI fez um acordo com a Associated Press para usar o arquivo de notícias da agência na produção automática de textos jornalísticos e parcerias com o American Journalism Project para desenvolver programas capazes de automatizar a produção de notícias locais. Além disso, “a Google já trabalha em conjunto com o jornal The New York Times”, e “por seu lado, a Microsoft, que é uma das patrocinadoras da OpenAI, desenvolve um software especializado na cobertura automática de reuniões, palestras, congressos e seminários. E a Apple faz mistério em torno dos seus projectos de Inteligência Artificial, mas sabe-se que trabalha com o site financeiro Bloomberg”, menciona o autor.

“Segundo a empresa de consultoria KPMG, nada menos que 43% das funções hoje desempenhadas por jornalistas, devem ser automatizadas graças a procedimentos algorítmicos alimentados por megabancos de dados digitais”, acrescenta.

Perante o cenário actual, Carlos Castilho crê que “já não vale a pena mandar um repórter para cobrir um golpe de estado em África, ou América Latina, porque a notícia” vai estar rapidamente “em mais do que um jornal, blogue ou site noticioso na web”.

“O problema”, diz, “será como distinguir a notícia confiável, oportuna e relevante, no meio de uma enxurrada de material processado pelas «fazendas de conteúdos» especializadas em jornalismo”.

Por isso, “a primeira e mais polémica das mudanças é a que cobrará do jornalismo maior ênfase na análise, avaliação e recomendação de notícias”, do que na procura “de material noticioso bruto”. Assim, “a qualidade da performance intelectual de um profissional”, vai predominar “sobre a sua habilidade no desempenho de actividades rotineiras”, aponta o autor.

O autor alerta que “a automação do processo de produção de notícias oferece vantagens na diversificação, rapidez e actualização das notícias, mas não garante a confiabilidade e credibilidade porque a inteligência artificial funciona a partir de algoritmos, que são micro robôs programados. Tudo o que eles produzem depende do que lhes foi dado”.

No entanto, “dados errados geram informações erradas” e “assim, inevitavelmente alguém terá de promover uma mínima” verificação daquilo “que sai de uma «content farm», como faz a organização NewsGuard”, indica o jornalista.

Portanto, trabalhar “como um curador de notícias deve transformar-se numa actividade jornalisticamente mais valorizada do que «gastar sola de sapato» (jargão jornalístico para esforço físico) correndo atrás de dados, factos e eventos noticiáveis”, considera o jornalista.

Castilho conceitua que esta nova realidade irá colocar “sobre os profissionais uma exigência de preparação intelectual muito maior, do que a existente na era analógica, o que inevitavelmente acabará por provocar mudanças nos cursos de formação de jornalistas, que ainda estão maioritariamente desfasados em relação aos avanços tecnológicos no campo da informação e comunicação”.

“Só que o volume de material distribuído” na web, “é de tal monta, que nem uma centena de entidades similares” à NewsGuard, “conseguirá dar conta de tudo o que circula na internet, que até ao final de 2023 deve abrigar 120 triliões de gigabytes em dados, segundo o site Statista, com um crescimento médio de 26% a cada ano”, regista o autor.

“É isto que assusta muitas empresas e instituições que temem enfrentar os desafios e incertezas da inovação tecnológica”, porque, segundo Castilho, “o jornalismo jamais conseguirá competir com estes algoritmos em matéria de velocidade, diversidade e quantidade de dados recolhidos na internet”.

No entanto, Castilho crê que “os jornalistas que apostarem na sua qualificação profissional, têm todas as condições de encarar a inteligência artificial, não como uma ameaça, mas como base para a produção criativa de notícias”, conclui.