Futura lei dos segredos oficiais e o debate da liberdade de imprensa em Espanha
Em todos os países democráticos é necessário proteger a segurança e defesa do Estado, para defender os direitos e liberdades dos indivíduos e evitar danos aos interesses gerais. Isso é indiscutível. No entanto, esta protecção não pode ser absoluta e ilimitada no tempo.
A possibilidade de declarar uma documentação ou informação como secreta e, desta forma, impedir o seu conhecimento público durante vários anos é muito tentadora para os detentores do poder, uma vez que lhes permite ocultar tudo o que lhes é conveniente.
O grave problema que se gera é que ocultar essas informações durante anos afecta os direitos fundamentais das pessoas; especificamente, o direito à liberdade de expressão e de comunicar ou receber livremente informações verídicas por qualquer meio de divulgação, reconhecido no artigo 20.1.a) ed) da Constituição Espanhola.
Por esta poderosa razão, a ocultação de informação ou documentação por meio da sua classificação como sigilosa deve ser excepção em qualquer democracia; e, como tal, tanto os regulamentos regulamentares como a sua aplicação devem ser muito restritivos, defende Climent.
Apenas informações ou documentos absolutamente essenciais devem ser classificados como sigilosos, “pelo tempo estritamente necessário, de forma altamente justificada e facilitando a possibilidade de qualquer pessoa recorrer da classificação ou solicitar a desclassificação”.
E Espanha ainda está em vigor a Lei franquista de Segredos Oficiais de 1968. Os diferentes governos não tiveram a vontade de reformá-la.
De repente, em meados de Agosto, foi exposto ao público o chamado “Projecto de Lei da Informação Classificada”.
Em tempo recorde, inúmeras intervenções foram apresentadas pelas principais associações de defesa dos direitos humanos, da transparência e do direito de saber, ONG´s e grupos de jornalistas, bibliotecários, historiadores e investigadores, além de professores universitários e cidadãos comuns.
A generalidade das intervenções apresentadas, depois de denunciado o curto prazo concedido durante o mês de Agosto e a urgência injustificada, apontam no mesmo sentido e incidem sobre as principais lacunas detectadas nos regulamentos que visam regular o segredo de Estado.
As principais queixas apresentadas, são: os direitos fundamentais à liberdade de expressão e comunicação são limitados; está contemplado um regime de penalidades desproporcional que facilita a censura da informação; não há garantia de que informações relacionadas a violações de direitos humanos não possam ser classificadas como segredo oficial; ausência total de menção a arquivos e sistemas de gestão documental; a indefinição de conceitos básicos; a classificação da informação é excessivamente alargada a áreas que não a estrita segurança e defesa do Estado; aumento do número e status das autoridades de classificação, reclassificação e desclassificação de informações; prazos excessivamente longos de desclassificação automática que se aplicam retroactivamente aos segredos da ditadura, etc.
Esta reacção da sociedade civil já deu frutos. Especificamente, o relatório emitido pelo Conselho de Transparência e Boa Governança (CTBG) datado de 11 de Outubro de 2022, que é publicado no seu site.
O CTBG entende por bem aumentar a exigência de motivação das classificações para demonstrar que são necessárias e proporcionais e denuncia a dificuldade de recorrer de decisões sobre classificações apenas perante o Supremo Tribunal Federal. Indica-se que “não se pode ignorar que a complexidade, os custos e a duração dos processos perante o Supremo Tribunal, podem ser dissuasivos para o cidadão comum e, consequentemente, reduzir a eficácia prática da garantia judicial”.
Quanto à legitimidade restritiva para impugnar as decisões, o CTBG propõe que lhe seja atribuída a possibilidade de recurso e que as entidades, organizações ou associações sem fins lucrativos, cujos fins estatutários sejam de interesse público e actuem no domínio da protecção dos direitos e liberdades dos indivíduos.
A quinta advertência do CTBG, diz respeito aos prazos gerais de manutenção da informação classificada em cada uma das categorias, que considera demasiado "amplos, tendo em conta os existentes nos países vizinhos e o facto de em alguns deles terem mesmo sido reduzidos em anos recentes". Considera ainda que a regulamentação dos prazos mais longos para as categorias “Top Secret” e “Secret” é excessivamente rígida por existirem prazos fixos, tanto para a sua duração inicial como para as suas prorrogações.
E, por fim, a atenção do CTBG incide sobre o regime sancionatório, sobre o qual diz que deve respeitar o princípio da proporcionalidade, uma vez que “não deve causar efeito dissuasor sobre os demais sujeitos que exercem a liberdade de expressão, pois isso distância o debate público democrático de muitas questões relevantes”.
O CTBG encerra o seu relatório destacando o paradoxo do projecto, prever um regime sancionatório, tão completo e detalhado, para os casos de divulgação indevida de informações classificadas e, ao contrário, não contemplar qualquer tipo de exigência de responsabilidade para os casos em que, o acesso à informação pública é negado indevidamente, quando há resolução firme da CTBG e esse direito é negado.
O autor considera existirem outras graves omissões do Projecto de Lei das Informações Classificadas, que, a seu ver, são essenciais e não podem ser ignoradas.:
1º.- O facto de o texto ter sido publicado durante o mês de Agosto, com um prazo de apenas sete dias úteis para discussão. Não ter merecido uma breve reflexão por parte da CTBG, que não se pronunciou sobre as diversas ilegalidades que emergem do Relatório de Análise de Impacto Regulamentar do Projecto de Lei da Informação Classificada. Não se justifica a tramitação urgente, não se detalham as razões que justificam a omissão da consulta prévia e exclui-se a posterior avaliação do projecto.
2º.- Fica evidente que o Projecto de Lei de Informação Classificada, na medida em que permite declarar como secreta determinada documentação ou informação e, portanto, impedir o seu conhecimento público por muitos anos, afecta directamente os direitos fundamentais da liberdade de expressão e liberdade de comunicar livremente ou receber informações verídicas por qualquer meio de divulgação. A sua regulamentação é necessária por meio de uma lei orgânica, aprovada pela maioria absoluta do Congresso dos Deputados, em conformidade com o disposto no artigo 81 da Constituição Espanhola.
3º.- Não está contemplada a proibição de classificar informação ou documentação que possa ser utilizada para demonstrar a violação de direitos humanos ou a prática de crimes, fraude ou corrupção, de modo a evitar que essas condutas fiquem impunes ou prescritas.
Se esta proibição não estiver incluída na regulamentação, a "inviolabilidade à la carte" é garantida, uma vez que as autoridades ou funcionários afectados, através da classificação da informação ou documentação como secreta, garantem que ninguém poderá ter acesso por anos, enquanto decorrer o prazo prescrição das condutas puníveis.
4º.- Nenhum preceito do Projecto de Lei de Informação Classificada é dedicado a coordenar sua aplicação com a Lei 19/2013, de 9 de Dezembro, sobre transparência, acesso à informação pública e boa governança.
Nesse sentido, a Corte Suprema, na Resolução de 11 de Maio de 2022, admitiu o recurso de cassação para esclarecer esta importante questão: “determinar se, para os efeitos do direito à informação reconhecido no artigo 20.1. d) da Constituição espanhola, é possível incluir nos limites referidos no artigo 4.º, os estabelecidos no artigo 14.1.a), b) eh) da Lei 19/2013, de 9 de Dezembro, sobre transparência, acesso à informação pública e boa governança, em relação à exportação de armas. E, determinar o alcance da classificação de determinados documentos como matéria sigilosa em relação ao direito de acesso à informação.
5º.- Não está contemplada a criação de um Registo de Informações Classificadas, para permitir saber, em cada momento, que matéria ou documentação foi classificada em cada uma das categorias de Ultra-secreto, Secreto, Confidencial e Restrito.
Quantos assuntos foram declarados secretos em Espanha? Em que datas? Ninguém sabe. Não há relação de segredos oficiais. Sem esse registo, não podemos saber ou controlar o que está a ser declarado secreto. O acesso ao referido registo deve ser público, sem prejuízo de não ser possível aceder à informação específica ou documentação classificada. Se não soubermos o que declaramos secreto, é impossível controlar essa informação ou documentação para que não seja destruída ou desapareça.
6º.- Não existe um dever geral de documentar a informação classificada para provar a sua existência e, ao mesmo tempo, prevenir a sua perda, desaparecimento ou destruição indevida. Se não há documentos, não há provas. Nenhum juiz pode provar nada.
Ao contrário, admite-se a possibilidade de “destruir informações complementares”, ao invés de mantê-las com as devidas garantias de protecção. Indica-se que “não será necessário destruir os materiais relacionados com assuntos sobre os quais existam processos judiciais ou fiscais em curso”. Não será preciso ou obrigatório, mas eles podem ser destruídos? Sim, podem ser eliminados, pois não há proibição expressa de destruir a documentação quando houver processos judiciais ou do Ministério Público em andamento.
7º.- Os documentos ou informações declarados sigilosos antes da entrada em vigor da nova Lei de Informações Classificadas passam a poder ser considerados, todos eles e sem excepção, em categoria superior de protecção como “Top Secret”, retroactivamente aplicando o prazo desproporcional de 50 anos, prorrogável por mais quinze anos.
As novas categorias de informações classificadas e os seus prazos não devem ser aplicadas retroactivamente a informações ou documentos secretos anteriormente declarados sob a Lei de Segredos Oficiais de 1968, mas sim a novas classificações que ocorram após sua entrada em vigor.
A disposição transitória deveria aplicar prazos muito curtos aos segredos já declarados para a sua desclassificação automática, tendo em conta o tempo decorrido desde a sua declaração como segredo, de forma a não continuar a proteger injustamente segredos que já não o deveriam ser.
Da mesma forma, é importante ter em conta que o Governo no poder pode adoptar livremente a decisão de desclassificar os segredos declarados ao abrigo da Lei de Segredos Oficiais de 1968, o que pode levar ao uso indevido desse poder para fins políticos ou partidários.
A decisão do Conselho de Ministros é difícil de controlar. Da mesma não cabe recurso administrativo e dela só cabe recurso para o Supremo Tribunal Federal por quem comprove direito ou interesse legítimo.
Esta disposição transitória única permite não só continuar a manter em segredo a informação sobre casos tão importantes para a nossa democracia como o 23-F, o GAL, os atentados do 11-S, etc., como também aplicá-los ao longo período de tempo já decorrido, o longo prazo de 50 anos, prorrogável por mais quinze anos.
São questões relevantes sobre as quais o CTBG na opinião de Climent, deveria ter falado.
Acrescenta ainda que os regulamentos que regem os segredos oficiais são essenciais numa democracia. Só podem servir para proteger a defesa e segurança do Estado, durante o período de tempo estritamente necessário e justificado, e nada mais. Não podem proteger conduta criminosa ou casos de corrupção ou fraude.
Não se trata de “mudar tudo para que nada mude”. A denominação de “Lei do Segredo Oficial” é modificada pela mais asséptica “Lei da Informação Classificada”, de forma que poucos cidadãos imaginam o que nela está a regulamentar, passando mais despercebido pela opinião pública.
Ao mesmo tempo, e paralelamente a esta reforma da lei, os anteriores regulamentos típicos da era franquista são essencialmente mantidos, ou mesmo agravados, já que se contempla um regime sancionatório com multas de um milhão a três milhões de euros, os jornalistas ou meios de comunicação que publicam informações classificadas como secretas, mesmo que desconheçam ou não saibam que essas informações foram classificadas como tal.
Estamos perante uma ameaça efectiva para limitar a liberdade de expressão e a liberdade de informação.
Este Governo, e os que o sucederem, estão a tempo de recolher o sentimento geral da sociedade civil, expresso nas inúmeras denúncias apresentadas sobre o Projecto de Lei da Informação Classificada. Agora, só falta a vontade de leva-las em consideração na elaboração da futura lei do segredo oficial.
É possível conciliar a necessária protecção da segurança e defesa nacional e o respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos, liberdade de expressão e comunicação e o direito de acesso à informação pública, sem os quais não pode existir um Estado democrático de direito, afirma Ángel Blanes Climent.