Congresso de jornalistas aprova greve e alterações ao código deontológico

O 5.º Congresso dos Jornalistas aprovou por unanimidade uma moção que mandata o Sindicato dos Jornalistas a convocar um dia de “greve geral” no sector, algo que não ocorre desde 1982.
Foram apresentadas três moções que visavam a convocatória de uma greve geral, tendo as propostas sido unificadas numa moção que foi aprovada por unanimidade, na qual os jornalistas pedem que seja convocado um dia de greve geral em solidariedade com a situação no grupo Global Media e "em defesa da dignidade no Jornalismo e da Democracia".
A data será definido pelo Sindicato dos Jornalistas, depois de consultados os delegados sindicais e as comissões de trabalhadores dos vários órgãos de comunicação social.
Após debate entre congressistas, a moção foi aprovada, retirando a menção a da paragem durante o período eleitoral.
Este é o texto aprovado:
“Há anos que tentam partir a espinha do jornalismo e dos jornalistas. O descalabro e o nível de destruição a que assistimos nos últimos meses pôs a nu, e da pior forma, a gravidade das condições de exercício do jornalismo em Portugal. Mas não começou com a destruição do Global Media Group. A crise está entranhada em todas as redacções.
Somos desconsiderados desde o momento em que pomos os pés numa redacção. Vivemos eternamente com baixos salários, somos precários, forçados a fazer longos turnos, a grande maioria sem receber horas extra. Somos pressionados por todos os lados, somos agredidos e temos cada vez menos voz. Tentam-nos dividir, mas há um momento em que temos, colectivamente, como classe profissional, de fincar o pé. Esse momento é aqui e agora. Não aguentamos mais, temos cada vez menos a perder.
Camaradas, tentemos salvar o que ainda pode ser salvo.
No momento em que se assinalam os 50 anos do 25 de Abril, ouvimos à boca cheia que o jornalismo é essencial para a democracia. Vários disseram aqui, neste Congresso, que o momento é muito grave para o Jornalismo. Ora, para momentos muito graves, gestos consentâneos. Gestos que começam em cada um de nós. O 25 de Abril não se fez sem valentia, ousadia e grandes doses de risco e sacrifício individual.
Sabemos que é impossível, mas todos os dias, por redacções pelo país fora, milhares de jornalistas tentam fazer o impossível. Fazem-no à custa do seu descanso, da sua saúde, das suas famílias, dos seus amigos e, sobretudo, do seu futuro. Com redacções cortadas pela metade, com os jornalistas com décadas de experiência afastados, com a memória a perder-se, com os mais jovens a submeterem-se a brutais sacrifícios ou a desistirem antecipadamente da profissão.
O momento é aqui e agora. Temos de PARAR. Simplesmente parar. Exigir que finalmente nos ouçam. Deixar de dar notícias, de fazer directos, abandonar as redacções e as conferências de imprensa. Não metermos jornais nas bancas, não darmos notícias nas rádios, não transmitirmos o telejornal, não publicarmos nas redes sociais. Mostremos o quão necessário é o nosso trabalho. Caminhemos juntos sem deixar ninguém para trás. Empurram-nos para o escuro, mostremos o que é o escuro por um dia. Para que se perceba o que é viver sem notícias, o impossível da democracia: não haver informação. Parar também para reflectir sobre o jornalismo que andamos, ou não, a fazer.
Avancemos para a greve geral. Propomos ao V Congresso de Jornalistas:
1. Mandatar o Sindicato de Jornalistas (SJ), coordenando-se com outras estruturas sindicais do setor, para que convoque um dia de greve geral. Por salários dignos, pelo fim da precariedade, por melhores condições para o exercício da profissão. Em suma, em defesa da dignidade do Jornalismo;
2. Criar um grupo composto pelo SJ, pelo presidente do V Congresso dos Jornalistas e pelos signatários da moção, que definirá a data e o caderno reivindicativo, bem como as acções de preparação e mobilização, fazendo ligação com os órgãos representativos dos trabalhadores e toda a classe, uma grande parte a trabalhar fora das redacções;
3. Organizar, em simultâneo com a greve, uma manifestação nacional que expresse publicamente o descontentamento e as reivindicações da classe”.
Entre outras moções apresentadas foi também aprovada uma alteração ao código deontológico dos jornalistas, no sentido de rejeitar explicitamente o clickbait e a desinformação. Foram ainda aprovadas moções que versavam sobre a igualdade e diversidade nas redacções, a protecção da saúde mental dos jornalistas, o direito dos jornalistas estagiários assinarem os seus trabalhos, a defesa do trabalho dos fotojornalistas, solidariedade com os jornalistas palestinianos, um voto de pesar pelos jornalistas mortos no decorrer das suas funções e pela protecção do nome dos autores e vítimas de crimes.
O 5.º Congresso dos Jornalistas Portugueses aprovou ainda a resolução final, apresentada como um "estado de emergência do jornalismo nacional”.
O documento destaca a crescente precariedade laboral, que ameaça a independência dos jornalistas, comprometendo a liberdade de informar.
Leia aqui a Resolução final do 5.º Congresso dos Jornalistas:
“O V Congresso dos Jornalistas concluiu que o actual estado de emergência do jornalismo nacional convoca todos a empenharem-se na busca de soluções e na união em torno dos princípios e valores que regem a profissão.
- A precariedade laboral, que adquire as mais diversas formas e tem vindo a acentuar-se, compromete seriamente a independência de jornalistas e a sua liberdade de informar. O clima de insegurança e ausência de estabilidade expõe os profissionais à cedência a práticas que violam a ética. A paixão dos jornalistas pela profissão não pode servir de pretexto à exploração desenfreada do seu trabalho por parte das empresas. Perante a ameaça que a precariedade representa, é necessário, hoje mais do que nunca, reforçar a solidariedade entre jornalistas e demonstrar que se mantêm fiéis ao seu compromisso com os cidadãos.
- A imposição de condições de trabalho desumanas, que colocam jornalistas em situações de exaustão emocional e sofrimento ético, relatadas no Congresso, e os expõem a patologias do foro da saúde mental e a esgotamentos, merece a firme condenação de todos os profissionais. Esta situação obriga as empresas a garantir o necessário acompanhamento psicológico.
- A sustentabilidade financeira do Jornalismo exige medidas imediatas e soluções estruturais, sob pena de ser destruído um instrumento fundamental para a saúde da democracia, tão ameaçada em todo o mundo. É imperioso levar a cabo uma reflexão séria sobre o financiamento do Jornalismo, não excluindo o apoio estatal, desde que salvaguardada a autonomia e a independência dos jornalistas, como sucede em países que concebem o Jornalismo como um bem público. O eventual financiamento das empresas jornalísticas por parte do Estado deve obedecer a critérios transparentes e rigorosos. Projectos inovadores promovidos por jornalistas constituem um sinal de esperança.
- O jornalista não pode ser agente de desinformação, que corrói os fundamentos da vida em sociedade e alimenta os populismos.
- O jornalismo deve comprometer-se com a defesa da democracia e jamais tratar por igual a verdade e a mentira.
- A tecnologia e a reconfiguração das práticas profissionais em nada alteram os princípios éticos e deontológicos, mas colocam novos desafios, sendo hoje fundamental diferenciar o jornalismo de outras formas de comunicação, preservando a sua importante missão em democracia.
- A chamada inteligência artificial não pode substituir o trabalho de jornalistas, devendo ser enquadrada no que traz de benefício ao exercício da profissão e tema de acções de formação em todas as redacções.
- Todas as formas de censura e autocensura devem ser veementemente repudiadas. Os jornalistas devem agir, em todas as circunstâncias, de acordo com a sua consciência, também com sentido de responsabilidade quanto ao impacto da produção noticiosa em cidadãos mais vulneráveis.
- O quadro legal que regula a profissão – em especial as leis de Imprensa, de Televisão e de Rádio, o Estatuto do Jornalista e o Regulamento da Carteira Profissional – deve ser objecto de reflexão aprofundada, com vista a incorporar novas realidades e a garantir o pluralismo e a diversidade. Os jornalistas devem reforçar a autorregulação, em defesa de um Jornalismo de qualidade e eticamente responsável, e fortalecer os conselhos de redacção.
- Deve ser feita uma reflexão séria sobre o quadro de intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, em especial no domínio da transparência da propriedade dos órgãos de comunicação.
- O modelo de formação e ensino vigente deve adaptar-se às novas práticas profissionais, incentivar o cruzamento de diversas competências e estimular o espírito crítico dos futuros jornalistas, de forma a serem capazes de desempenhar o papel de mediadores. As redacções têm um papel fundamental no processo de formação profissional dos jovens jornalistas. Numa sociedade em mudança permanente, a formação ao longo da vida é indispensável e as empresas não podem furtar-se a cumprir o que a lei estabelece nesta matéria.
- Regular legalmente a preservação dos arquivos, físicos e digitais, dos órgãos de comunicação social é a garantia do direito à informação no presente e no futuro.
- A desertificação noticiosa do país é uma realidade gritante que precisa de ser alterada, o que passa pelo reforço dos apoios públicos, pela capacitação dos jornalistas que trabalham fora de Lisboa e do Porto pelo combate à promiscuidade crescente entre órgãos de comunicação social e autarquias. Neste domínio, os órgãos de comunicação social públicos têm responsabilidades acrescidas.
- A literacia mediática deve ser transversal a toda a sociedade e merecer apoio estatal.
- O jornalismo não pode hipotecar o património fundamental da credibilidade.
O V Congresso dos Jornalistas sensibiliza a sociedade para a importância vital do Jornalismo enquanto instrumento de aprofundamento da democracia e exige aos partidos políticos concorrentes às próximas eleições legislativas que contemplem nos seus programas compromissos efetivos de proteção do Jornalismo enquanto bem público”.
O 5.º Congresso dos Jornalistas contou com 556 jornalistas inscritos, 17 observadores, 17 professores e 153 estudantes.