Os “media” enfrentam em Portugal desafios complexos

“A liberdade de imprensa em Portugal enfrenta um conjunto complexo de desafios, que vão desde a opacidade burocrática e a fragilidade económica até às crescentes ameaças colocadas pela desinformação e pelos movimentos de extrema-direita", refere Vânia Maia, uma jornalista portuguesa freelancer, num texto publicado pelo Instituto Internacional de Imprensa (IPI).
A profissional refere que existe um conjunto de questões sistémicas que continuam a prejudicar o trabalho dos jornalistas. Neste artigo, elencamos os principais aspectos:
Os desafios no acesso à informação
O texto começa por ilustrar as dificuldades no acesso a informações em Portugal com o caso de Nuno Viegas, jornalista do Fumaça, que descreve que pedir documentos e informações a uma instituição portuguesa é uma experiência “surreal”. “Os organismos públicos são legalmente obrigados a fornecer documentos e dados administrativos quando solicitados, quer por jornalistas, quer por particulares, mas, muitas vezes, tudo o que os jornalistas encontram é o silêncio”, afirma Vânia Maia.
A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) é um “aliado fundamental” na garantia do acesso à informação. “A maioria das queixas recebe uma decisão favorável da CADA e, embora as suas decisões não sejam vinculativas, cerca de 90% das decisões da CADA são respeitadas. Quando as decisões da CADA são ignoradas, os queixosos podem recorrer aos tribunais - mas, nessa altura, o atraso na obtenção de informações retira frequentemente a relevância a uma história. Além disso, a própria CADA raramente resolve os casos em menos de dois ou três meses”.
João Paulo Batalha, consultor de políticas anticorrupção, é citado no texto ao dizer que “algumas instituições perceberam que há poucas consequências para a retenção de informação, uma vez que as leis não sancionam quem viola o direito de acesso”.
O texto relata ainda a recente exigência da Entidade para a Transparência (EpT) de exigir uma justificação adicional para consultar a declaração de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e conflitos de interesses de um político. Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, também citado no texto, defende que, “para um jornalista credenciado, a única justificação necessária deve ser o seu estatuto de jornalista, em nome da liberdade de imprensa”.
Alvos de radicalismo
Depois de ter iniciado uma investigação sobre a ascensão da extrema-direita em Portugal e na Europa, Pedro Coelho, jornalista da SIC, tornou-se alvo de abusos online, principalmente vindos de grupos extremistas. “As ameaças constantes levaram o Ministério Público a abrir um inquérito depois de o IPI ter divulgado uma declaração que as documentava em 2021. Em Novembro de 2024, o Ministério Público acusou finalmente dois dirigentes do Chega de ameaças agravadas e de atentado à liberdade de informação”.
A hostilidade online, especialmente direccionada a jornalistas que investigam temas como a imigração ou a política, tem aumentado significativamente. Isso reflecte uma maior radicalização da sociedade portuguesa, alimentada por discursos xenófobos e populistas, que contribuem para um ambiente de insegurança para os jornalistas.
"Antes das eleições de 2024, e sem relação com o Chega ou qualquer outro partido político, investigadores do MediaLab do ISCTE detectaram, pela primeira vez, «provas de interferência estrangeira nas eleições portuguesas» através de anúncios online que acusavam os dois principais partidos políticos de corrupção”.
A luta contra processos judiciais
Vânia Maia aborda ainda os obstáculos legais enfrentados pelos jornalistas, referindo os casos de Acções Judiciais Estratégicas Contra a Participação Pública, também conhecidas por SLAPP. Nestes casos, “um indivíduo ou organização poderosa intenta uma acção judicial principalmente para silenciar ou intimidar os críticos, em vez de procurar uma compensação legal legítima”. Até Maio de 2026 deverá ser transposta para o direito nacional a Directiva Anti-Slapp 2024/1069, recentemente aprovada pela União Europeia.
João Paulo Batalha e Francisco Teixeira da Mota, advogado, alertam para o conservadorismo dos tribunais portugueses em relação a estes casos. “Batalha defende que Portugal deve aproveitar a transposição da directiva SLAPP para também descriminalizar a difamação, em linha com as recomendações da Comissão Europeia. Embora Teixeira da Mota refira a vantagem prática de manter a difamação como crime - uma vez que os tribunais só podem decidir in dubio pro reo em processos criminais - o advogado acredita que «descriminalizar as palavras» é um objectivo importante «tanto a nível simbólico como cultural»”.
Além disso, o texto destaca as restrições legais impostas aos denunciantes. “A legislação actual exige que os denunciantes esgotem os canais de denúncia internos antes de fazerem uma denúncia externa, a não ser que estejam perante uma violação que represente um perigo iminente ou seja de interesse público evidente”, explica Vânia Maia. Teixeira da Mota defende uma maior agilidade nas denúncias, tendo em conta o “elevado risco de retaliação ou inacção quando as denúncias são mantidas internamente”.
A realidade do jornalismo local
Filipe Gonçalves, jornalista da RTP Madeira, destaca os desafios do jornalismo local, especialmente a relação entre os jornalistas e os assessores de imprensa. Durante a cobertura dos incêndios do Verão passado, os jornalistas enfrentaram restrições de acesso a áreas afectadas, como a freguesia de Curral das Freiras, alegadamente a pedido da Protecção Civil. O também líder do Sindicato dos Jornalistas da Madeira contesta este facto e acredita que a atenção nacional e internacional que as queixas do sindicato ganharam fará com que as futuras limitações sejam mais cautelosas.
“Embora Portugal seja um país pequeno, mais de metade do seu território (53,9%) está em risco de se tornar, ou já é, um deserto de notícias. Trata-se de zonas que carecem de uma cobertura noticiosa suficiente ou coerente”. Pedro Jerónimo, investigador do LabCom/Universidade da Beira Interior (UBI) e líder do projecto de mapeamento dos desertos de notícias em Portugal, afirma que “nas zonas sem meios de comunicação social, as comunidades tornam-se mais vulneráveis à desinformação, ao discurso de ódio e às mensagens populistas”.
Soluções precisam-se
“Jerónimo e a sua equipa já estão a trabalhar na próxima edição do mapa dos desertos de notícias em Portugal, mas os resultados preliminares não são motivo para optimismo - a situação deteriorou-se desde 2022. No entanto, o antigo jornalista local mantém a esperança de que o Plano de Acção para a Comunicação Social, apresentado pelo Governo de centro-direita em Outubro, possa melhorar o panorama”.
Este plano pretende assegurar a “distribuição de publicações em todos os concelhos e duplicar o subsídio de «porte pré-pago» para os órgãos de comunicação social locais, de modo a cobrir 80% das despesas de envio dos assinantes”.
A apresentação do plano gerou controvérsia devido às declarações do Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, que “apelou a «uma comunicação social mais calma na forma de informar» e pediu que «não fosse tão ofegante»”. O anúncio de que a RTP deixaria de aceitar publicidade em três anos, o que causaria uma perda de cerca de 10% das receitas sem plano de compensação, fez com que a oposição se unisse contra a medida.
Quanto à transparência da propriedade dos media, embora Portugal tenha uma das legislações mais avançadas da Europa, a sua aplicação é “inconsistente”. " A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já reconheceu que há melhorias legais a fazer no âmbito da transparência dos media e o Governo comprometeu-se a rever a lei num futuro próximo. A lei da transparência da propriedade dos meios de comunicação social em Portugal está em grande parte alinhada com a Lei Europeia da Liberdade de Imprensa (EMFA). Apenas poderão ser necessárias pequenas revisões, nomeadamente para clarificar se os proprietários directos ou indirectos de um meio de comunicação social são eles próprios propriedade - directa ou indirectamente - de um Estado, autoridade pública ou entidade pública”.
Uma “paisagem de falência”
“Sem surpresa, os especialistas entrevistados identificam a vulnerabilidade económica do sector da comunicação social em Portugal como uma das principais ameaças à liberdade de imprensa no país”, escreve a jornalista Vânia Maia.
De acordo com o relatório Monitorização do Pluralismo dos Media na Era Digital: Portugal 2023, o risco de perda de independência editorial devido à influência comercial e da propriedade aumentou de 25% para 53%. Este é o maior aumento entre todos os indicadores em relação ao ano anterior. “A lógica comercial desempenha aqui um papel significativo; por outro lado, a autorregulação e a co-regulação enfraqueceram nos últimos anos. É a fragilidade geral do sector que tem criado as condições para que a precariedade se estenda das condições de trabalho às práticas, à ética e à deontologia do jornalismo”, defende Francisco Rui Cádima, investigador do Instituto de Comunicação da NOVA e coautor do relatório.
Vânia Maia destaca que “a precariedade laboral é uma dura realidade em Portugal” e que, apesar de Portugal gozar de “uma sólida liberdade de imprensa”, o país enfrenta desafios significativos como a opacidade burocrática e a crescente insegurança causada por ameaças da extrema-direita, que minam a confiança pública na imprensa. Embora o país tenha uma das maiores taxas de confiança nas notícias, caiu do terceiro para o sexto lugar no Reuters Institute Digital News Report 2024.
“Apesar de ter um forte quadro jurídico que apoia a liberdade dos meios de comunicação social, são necessários ajustamentos legislativos no que respeita às SLAPP, às leis de difamação, à protecção dos denunciantes e à transparência da propriedade dos meios de comunicação social”.
Para a jornalista, a maior fraqueza dos meios de comunicação portugueses é a sua fragilidade económica, que os torna susceptíveis a interferências comerciais e influências de propriedade. Uma situação que acaba por se reflectir no “declínio do jornalismo local”, no “subfinanciamento dos organismos públicos de radiodifusão” e na “luta pela sobrevivência do jornalismo de investigação”.
Vânia Maia conclui que, perante este cenário, “a resiliência dos jornalistas portugueses continua a ser uma força crítica na defesa do papel democrático da imprensa”.
(Crédito da fotografia: Gerd Altmann no Pixabay)