O “marketing bélico” e a percepção dos factos pelo público
Compreender o que se passa, actualmente, no Médio Oriente tornou-se, segundo o jornalista Carlos Castilho, “uma tarefa quase impossível” quando se toma como referência a informação veiculada pela imprensa convencional brasileira. O motivo? Uma cobertura assente em opiniões e versões, mas escassa em factos e dados concretos, o que só permite ao público formar “percepções enviesadas do que acontece em Telavive, Gaza, Beirute e Teerão”.
Num artigo publicado no Observatório da Imprensa, com o qual o Clube Português de Imprensa mantém uma parceria, Castilho explica que o jornalismo praticado pelos principais jornais e telejornais do Brasil baseia-se, na maioria das vezes, em fontes externas e comunicados oficiais, “que todos nós sabemos serem parte da guerra da publicidade”.
A falta de correspondentes experientes no terreno agrava o problema, prevalecendo, assim, as “entrevistas via WhatsApp com moradores ou turistas brasileiros”. A informação recolhida provém de cidades como Washington, Londres ou Paris, e a mesma, para Carlos Castilho, é obtida em fontes locais e está, inevitavelmente, condicionada por “percepções também locais”.
Numa situação de conflito, Castilho defende que “o importante é identificar claramente as fontes consultadas”, incluindo o seu posicionamento político e os seus interesses estratégicos, para que o público possa tirar as suas próprias conclusões. Lamenta que, hoje em dia, os jornais e emissoras prefiram não gastar dinheiro com coberturas mais arriscadas, ainda que existam repórteres experientes para cobrir zonas de guerra e crises internacionais, e lamenta também que não seja feito o esforço para “separar os factos da propaganda de governos ou grupos políticos em eventos complexos como os que acontecem hoje em Gaza e no Irão”.
Como Castilho refere, “o marketing bélico é inerente a qualquer conflito, mas cabe ao jornalismo identificá-lo, para que as pessoas possam fazer julgamentos e emitir opiniões independentes”.
Falta de diversidade de fontes
O autor faz questão de mostrar que a crítica não é exclusiva ao Brasil. Nos Estados Unidos, a Columbia Journalism Review alertou para a falta de pluralidade na cobertura dos bombardeamentos em Gaza e no Irão. O jornalista iraniano Kourosh Ziaari apontou a “falta de vozes iranianas na imprensa norte-americana” como uma das causas da perda de credibilidade face às plataformas digitais.
Para Castilho, esta ausência de diversidade é uma falha grave: "Sem a verificação da diversidade, exactidão e confiabilidade do noticiário, todos nós somos vulneráveis a visões distorcidas das causas, desenvolvimento e consequências dos conflitos no Médio Oriente e, consequentemente, passíveis de apoiar soluções que atendem basicamente aos interesses de uma das partes envolvidas nos combates”.
Castilho observa que existe um padrão de enviesamento semelhante na cobertura de temas internos, como o debate em torno dos cortes nos gastos públicos no Brasil. Embora o tema esteja ligado a disputas eleitorais e à sucessão do presidente Lula, a imprensa trata-o “como se fosse um problema de performance administrativa”, vinculando apenas o tema de forma esporádica à sucessão do presidente do Brasil.
Outro exemplo da limitação dos grandes “media” está na cobertura da inteligência artificial (IA). “Quando se entra em redes informativas, como a Medium, a abordagem dos diferentes autores (quase todos especialistas em IA) mostra como a cobertura da imprensa convencional se preocupa mais com o marketing de novos programas do que com as preocupantes e complexas consequências da inteligência artificial”.
Castilho destaca o trabalho do académico espanhol Enrique Dans, que demonstrou como ferramentas como o Symphony Creative Studio, do TikTok, estão a transformar radicalmente o sector da publicidade. Estes programas conseguem, em minutos, captar preferências dos utilizadores, analisar milhões de dados, criar avatares personalizados e produzir conteúdos que “induzem ao consumo” de forma individualizada e quase instantânea. " O principal objectivo de projectos como o Symphony já não é vender produtos e serviços, mas sim induzir a adopção de comportamentos e valores”.
Segundo Dans, estamos perante o fim da “propaganda convencional focada no consumo em massa”. Com a IA, os anunciantes podem aceder ao subconsciente de cada indivíduo, levando-o a consumir sem compreender porquê. Apesar de ser um tema com implicações profundas na privacidade e na liberdade de escolha, “está ausente na agenda dos ‘media’”. Ao omitir-se, “a imprensa deixa de cumprir com aquilo que deveria justificar a sua existência: a prestação de um serviço público de informação para que as pessoas possam decidir sobre o que necessitam e desejam”.
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