O intenso conflito entre Israel e o Hamas, que causou milhares de mortes e desencadeou uma escalada de violência, tem levantado uma onda de críticas ao trabalho jornalístico da "NPR" (National Public Radio), sediada em Washington D.C.

Num artigo publicado originalmente em NPR.org e agora republicado na Poynter, Kelly McBride, vice-presidente da Poynter e presidente do "Centro Craig Newmark" para Ética e Liderança, bem como editora da NPR, dá conta das opiniões expressas pelo público em mais de 100 notas semanais se dividem em várias vertentes:

- Alguns ouvintes da NPR expressam preocupações sobre um viés percebido quando as reportagens destacam perspectivas divergentes das suas;

- Há pedidos de uma linguagem mais incisiva, com alguns ouvintes solicitando que o Hamas seja explicitamente chamado de "terrorista" em vez de "militante";

- Outros argumentam que a NPR não contextualiza adequadamente as acções de Israel no contexto dos possíveis crimes de guerra.

Das 130 notas, recebidas entre 8 e 25 de outubro, pouco mais de 60% acusaram diretamente a NPR de um preconceito anti-israelita. Cerca de 24% das notas acusaram a NPR de ser tendenciosa contra os palestinianos, enquanto 15% apresentaram críticas sem acusações de parcialidade.

McBride reviu todas as mensagens recebidas e examinou mais de 115 reportagens da NPR, mas expressou uma opinião favorável ao trabalho da redacção, destacando a realização de reportagens detalhadas, mesmo num ambiente complexo, evitando erros significativos. 

A NPR trouxe à superfície histórias impactantes, desde as atrocidades cometidas pelo Hamas ao impacto dos ataques israelitas e mortes civis em Gaza, além de dar voz a testemunhos de jornalistas sobre a situação crítica no território.

Contudo, recentemente procederam à remoção de um episódio do programa "On Point", durante o qual um professor fez declarações falsas sobre o Hamas, levando a uma decisão da WBUR, produtora do programa, de retirar o episódio do ar.

“Os jornalistas que cobrem o conflito entre Israel e o Hamas estão perfeitamente conscientes da natureza polarizadora do seu trabalho. Sabem que pequenos erros e omissões serão vistos por alguns como prova de parcialidade”, escreve McBride.

Didi Schanche, editora-chefe internacional da NPR, destacou o esforço da equipa em obter diversas perspectivas, reunir informações e relatar com transparência: "Trabalhamos arduamente para tentar obter as perspectivas de todos os lados deste conflito e procurar e confirmar o máximo de pormenores que pudermos. Somos honestos em relação ao que não podemos confirmar, somos cautelosos em relação ao que relatamos nessas situações e somos transparentes em relação ao local onde obtivemos as nossas informações".

Ainda assim, alguns ouvintes e leitores continuam a questionar a imparcialidade dos meios de comunicação e, no caso da NPR, sugerem uma inclinação editorial. 

“Quando os jornalistas tentam fazer zoom sobre o sofrimento individual, são acusados de serem demasiado empáticos para um lado ou para o outro. Esta reacção é tão profunda e previsível que, durante 11 anos, a NPR pediu a um jornalista veterano, John Felton, que analisasse as reportagens israelo-palestinianas da NPR”, explica McBride. 

O último relatório de Felton foi publicado em 2014, quando a região estava relativamente calma e o público relativamente tranquilo e concluía: "Não vi nenhum viés sistemático ao longo dos anos na cobertura da NPR a favor de um lado versus o outro. Grupos de pressão baseados nos EUA e outros críticos alegam frequentemente que a NPR é 'anti' ou 'pró' Israel ou 'anti' ou 'pró' os palestinianos".

Agora reformado, Felton reiterou uma observação que escreveu no seu último relatório: "É necessário ouvir os críticos, mesmo quando eles estão a vomitar veneno". "Em algum nível, em alguns detalhes, eles podem ter um ponto válido”.

"A voz pró-Israel é muito mais elevada neste país, o que é bastante óbvio, e penso que isso é indiscutível", disse Felton recentemente a McBride. "E é essa a roda que faz barulho e que chama a atenção."

Questões linguísticas

A questão das definições linguísticas tem sido um ponto de crítica recorrente. A NPR opta por termos como "militantes" ao invés de "terroristas", baseando-se na abordagem de não rotular grupos e evitar influências directas nos rótulos usados pelos governos.

“Historicamente, as organizações noticiosas têm deixado aos governos e aos políticos a tarefa de rotular os terroristas e evitam usar a designação fora das citações directas ou indirectas. Os governos rotulam frequentemente os seus inimigos de terroristas. Talvez o mais famoso tenha sido o que os EUA e a África do Sul chamaram a Nelson Mandela”.

O editor de assuntos mundiais da BBC, John Simpson, ofereceu talvez o melhor raciocínio para esta política de redacção amplamente adoptada, que evita tanto "terrorista" como "militante" a não ser numa citação:

"Terrorismo é uma palavra carregada, que as pessoas usam para se referirem a um grupo que desaprovam moralmente. Simplesmente não é função da BBC dizer às pessoas quem devem apoiar e quem devem condenar - quem são os bons e quem são os maus", disse. "O nosso trabalho é apresentar os factos ao nosso público e deixá-lo decidir por si próprio. Por acaso, muitas das pessoas que nos atacaram por não usarmos a palavra terrorista viram as nossas fotografias, ouviram o nosso áudio ou leram as nossas histórias e decidiram-se com base nas nossas reportagens, por isso não estamos a esconder a verdade de forma alguma - longe disso."

Olhar para o trabalho num todo

Em vez de contestar histórias individuais e acusar ou defender a redacção por ofensas específicas, a análise de conteúdo de Felton tentou ser mais ampla, analisando trimestralmente o conjunto do trabalho.

De acordo com o último relatório de Felton, a NPR publicou 4.052 histórias sobre o conflito ao longo da sua análise de mais de uma década, de 2003 a 2013:

- 18% (742) dessas histórias reflectiam principalmente uma perspetiva israelita;

- 17% (673) centraram-se nos palestinianos;

- 15% (621) apresentaram ambos os pontos de vista;

- 50% (2.016) não continham qualquer ponto de vista e, em vez disso, enquadravam a história de uma perspectiva externa.

Algumas histórias ofereciam uma perspectiva mais próxima e, apesar de serem apenas uma pequena parte do conjunto do trabalho da NPR, provocam uma grande reacção por parte do público.

Apesar das críticas, McBride e Felton argumentam que a NPR oferece um retrato amplo e equilibrado do conflito, reflectindo as diversas nuances das narrativas em curso.

No entanto, Felton detectou duas outras falhas na cobertura ao longo dos anos e instou a NPR a corrigi-las: “Primeiro, sugeriu que a NPR não dedicou recursos suficientes para documentar as condições de opressão em Gaza e na Cisjordânia e o papel de Israel na criação dessas condições. A NPR fez alguns esforços nesse sentido. À medida que a situação se agravava, antes de 7 de outubro, a NPR publicava mensalmente artigos sobre o conflito, incluindo a documentação do impacto de outras acções militares israelitas, bem como a história de uma família palestiniana que ainda se debate com o impacto da criação de Israel em 1948”, explica McBride.

“Em segundo lugar, como observador atento do conflito, Felton acredita que a NPR muitas vezes evita citar os pontos de vista extremos na conversa, possivelmente porque as suas crenças são muito odiosas”, acrescenta

"Esses extremos da retórica conduzem efetivamente a política no dia a dia", afirmou Felton. "E se não citarmos esses extremos da retórica ou não tentarmos explicar porque é que as pessoas dizem este tipo de coisas, não estamos a contar a história completa."

Segundo McBride, agora, a NPR parece mais inclinada em mencionar essa retórica e cita Schanche, chefe de redação internacional, sobre os jornalistas continuarem a ter muito cuidado com a linguagem destinada a inflamar o debate: "Como em qualquer conflito, não queremos amplificar a retórica extrema. Mas citamos figuras importantes que usam esse tipo de linguagem, quando é relevante para a cobertura."

McBride realizou uma análise de 115 histórias que foram para o ar na NPR ou que foram publicadas online entre 7 e 30 de outubro:

- 23% (27) dos artigos focavam pontos de vista israelitas;

- 27% (31) das histórias focam os pontos de vista de Gaza;

- 20% (23) das histórias continham pontos de vista tanto de Israel como de Gaza;

- 30% (34) não continham qualquer ponto de vista e, em vez disso, enquadravam a história numa perspectiva externa.

Após a análise conclui que “a ligeira inclinação para a perspectiva palestiniana pode ser explicada pela crise humanitária em curso e agravada em Gaza” e salienta que espera “que isso continue”.

Contudo, as expectativas polarizadas do público e a complexidade de reportar sobre um dos conflitos mais duradouros do mundo fazem com que a NPR continue a receber cartas críticas.

“Uma história nunca é a história toda. Um episódio de podcast nunca é a história toda. Uma entrevista nunca é a história toda. Em alguns dias, um programa não contém toda a história. A totalidade vem com o tempo”, argumenta McBride, salientando que, “com tanta dor e sofrimento de ambos os lados”, é fundamental que os repórteres aprofundem estas histórias.

“Em alguns casos, é um mau serviço para o público incluir o equilíbrio pelo equilíbrio. Um repórter não consegue alcançar a justiça absoluta no espaço de uma única história. Em vez disso, é muito mais importante garantir que todo o trabalho de uma redação seja equilibrado e completo”.

E as notas para a redacção espelham, inevitavelmente, o discurso público.

Muitas vezes, quando as pessoas fazem uma acusação de parcialidade, o que querem dizer é que, porque não veem o seu ponto de vista numa história e assumem que o repórter ou a organização noticiosa é contra ele.

“De facto, eles querem que a NPR produza reportagens unilaterais que apoiem as suas posições e desacreditem o outro lado", justifica Felton.

McBride considera que estas críticas são fundamentais para a evolução e o aprimoramento contínuo do jornalismo realizado pela NPR, recordando os jornalistas que devem enquadrar cada história e ser ponderados na selecção de fontes, documentando fielmente de forma individual, mas criando um quadro o mais completo possível.