O risco de o jornalismo se transformar em activismo político e desfigurar a informação

Um artigo do jornalista Francisco Sierra Hernando nos Cuadernos de Periodistas, editados pela APM - Asociación de la Prensa de Madrid - com a qual o CPI mantém uma parceria, argumenta que a “luta contra a desinformação é mais necessária do que nunca. Necessária e imprescindível para o bem da própria vida das democracias”.
O autor explica que o combate à desinformação, por mais necessário que seja, está a ser utilizado por diversos governos, inclusive democráticos, como pretexto para aumentar o controlo sobre os meios de comunicação. “Existe o risco de que mesmo os projectos criados para proteger os direitos fundamentais de liberdade de expressão dos meios de comunicação e dos cidadãos sejam pervertidos e distorcidos para atingir fins indesejáveis numa sociedade democrática”. Francisco Sierra Hernando alerta para um “exemplo claro”: o Regulamento Europeu sobre a Liberdade dos Meios de Comunicação Social.
A transformação do ecossistema mediático
Com a ascensão das redes sociais, os meios de comunicação tradicionais passaram a competir com criadores de conteúdo, influencers e perfis anónimos: “Por trás desses projectos, na maioria das vezes, o que há, em vez de jornalistas, são activistas políticos ou influenciadores sensacionalistas”, considera o autor.
Apesar de ser nos meios digitais e nas redes sociais que se origina a maioria da desinformação, a pressão para regulamentar o espaço mediático tem recaído sobre os meios formais.
O Regulamento Europeu sobre a Liberdade dos Meios de Comunicação Social, aprovado em 2024, é apresentado como um esforço da União Europeia para “blindar normativamente todo o ecossistema informativo europeu contra ameaças internas e externas”. A intenção original era proteger o jornalismo livre e fortalecer a democracia, especialmente face a exemplos como os da Hungria e da Polónia.
Contudo, o texto alerta para o risco de que “mesmo os projectos criados para proteger os direitos fundamentais [...] sejam distorcidos para atingir fins indesejáveis numa sociedade democrática”. É nesse sentido que se critica a forma como alguns Estados-Membros, como a Hungria, a Eslováquia, a Itália e a Espanha, poderão estar a desvirtuar o referido regulamento europeu.
O caso espanhol
No caso espanhol, é destacado o Plano de Acção pela Democracia, apresentado em Setembro de 2024 pelo governo de Pedro Sánchez, que incluiu medidas que, apesar de justificadas como defesa da transparência e do pluralismo, foram recebidas com desconfiança. O segundo eixo do plano, que previa “garantir a pluralidade e a responsabilidade dos meios de comunicação”, incluía a criação de registos, combate à desinformação e adaptação à legislação europeia. Contudo, levantaram-se dúvidas sobre “outras intenções bem diferentes por trás delas”.
A crítica ganha força quando se menciona que o anúncio do plano coincidiu com escândalos que envolviam directamente o círculo pessoal do presidente espanhol. A imprensa crítica que cobria os casos foi rotulada pelo governo como pertencente a “pseudo-meios de comunicação”. Essa atitude levantou suspeitas de que o verdadeiro objectivo seria controlar e limitar o jornalismo independente.
Por fim, destaca-se a reacção da Associação de Imprensa de Madrid (APM), que, preocupada com possíveis abusos, apresentou um conjunto de propostas ao Governo e avisou que continuará vigilante “pela defesa da liberdade de expressão e pelo livre exercício da profissão jornalística”.
Em 2025, algumas das medidas propostas pelo Governo começaram a ser detalhadas. Entre elas, destaca-se o anteprojecto de lei que cria um registo estatal de meios de comunicação, ligado à Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência (CNMC). Este organismo passará a controlar a inscrição dos media, a estrutura de propriedade, receitas e publicidade institucional.
O plano prevê também a publicação anual do investimento publicitário feito por todas as administrações públicas. Pretende-se corrigir desequilíbrios, tanto no financiamento excessivo de pequenos meios com pouca audiência como no sobrefinanciamento de grandes grupos alinhados com o poder. Porém, a possível introdução de um critério de “qualidade da informação” preocupa o sector, pois abriria espaço à subjectividade e à “simpatia política, dependendo de quem fosse o responsável por determinar o que tem qualidade e o que não tem”.
Outro ponto sensível é o pacote de 100 milhões de euros destinado à digitalização da imprensa. “O que poderia parecer uma boa medida para os meios de comunicação esbarra na realidade de que o primeiro pacote de 65 milhões anunciado pelo ministério de Óscar López será para ‘ajudar na digitalização dos meios impressos’. Surpreendente, porque não existe nenhum meio de comunicação impresso que não seja também digital há anos”, explica o autor. Esta medida levanta suspeitas de discriminação deliberada contra os meios nativos digitais, que “são precisamente os que estão a revelar as informações mais críticas ao Governo”.
Leis que ameaçam a crítica
Francisco Sierra Hernando levanta críticas a propostas legislativas adicionais, que podem configurar censura indirecta:
- Reforma do direito de rectificação: Pode permitir que qualquer pessoa envolvida numa notícia exija rectificações imediatas, sem necessidade de prova prévia, o que pode inviabilizar investigações jornalísticas sérias;
- Alteração da Lei dos Segredos Oficiais: A introdução da “intimidade das pessoas” como critério para classificação de informação restringiria o acesso a dados relevantes sobre figuras públicas;
- Reforma da Lei de Protecção da Honra e da Intimidade: Apresentada como combate à desinformação, poderá abrir portas à censura e à autocensura dos jornalistas.
Contudo, existem algumas propostas que reúnem um maior consenso, tais como a verificação da identidade digital dos utilizadores nas redes sociais e a obrigatoriedade de aviso quando se utilizar inteligência artificial na produção de conteúdos informativos. Ambas as medidas visam reduzir os riscos de manipulação e desinformação tecnológica, protegendo os cidadãos e a veracidade da informação.
O texto finaliza com uma crítica: “A avalanche legislativa, que o Governo pretende vender como a integração na legislação nacional do Regulamento Europeu sobre a Liberdade dos Meios de Comunicação Social, não é tal. O conteúdo legislativo original foi envolto por uma série de camadas que sufocam os objectivos plausíveis pretendidos, tornando-se um conjunto desnecessário de normas que pode acabar por sufocar a liberdade de expressão e, acima de tudo, o direito dos cidadãos a uma informação livre e crítica”.
A este propósito, o autor relembra uma frase de Katherine Graham, editora e directora do Washington Post que publicou os documentos do Pentágono e revelou o caso Watergate: “A imprensa deve servir aos governados, nunca aos governantes.”
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