O jornalismo não deve contribuir para um clima de crispação
Num artigo publicado em Cuadernos de Periodistas, a jornalista e professora universitária espanhola, Milagros Pérez Oliva, faz uma reflexão acerca da tensão permanente contra a imprensa, quer por parte dos políticos, quer por parte dos cidadãos, e sobre a forma como os jornalistas devem lidar com esta circunstância.
Perante este cenário, a primeira questão sobre a qual devemos reflectir “é porque é que esse ambiente de tensão contra a profissão ocorre”, diz a autora. “Até que ponto isso é justificado pelo próprio comportamento dos meios de comunicação e até que ponto é resultado de uma estratégia de descredibilização por parte de certos actores políticos interessados em minar a função de controle do jornalismo quando este é exercido de forma independente e de acordo com os princípios deontológicos”, acrescenta.
Segundo a jornalista, no seu país “é evidente que a tensão se instalou na política espanhola como uma estratégia de desgaste do adversário, bem como uma forma de polarizar e fidelizar o eleitorado, num momento de confusão geral e grandes incertezas”.
“A realidade sobre a qual os meios de comunicação devem informar, está cada vez mais complexa, e os ciclos económicos e políticos cada vez mais curtos. Os tempos estão acelerados e a volatilidade está a aumentar”, refere.
“Nestas circunstâncias, o debate político sobre as diferentes propostas de solução para os problemas exige um nível de conhecimento e compreensão da realidade que não é fácil de alcançar. Entre alguns assessores de comunicação e estrategas políticos, instalou-se a convicção de que é mais fácil tentar influenciar as pessoas emocionalmente do que convencê-las com argumentos racionais, principalmente sabendo que muitas vezes os actores políticos locais ou nacionais, não têm capacidade para lidar com os grandes problemas que condicionam a vida das pessoas. Respostas simples e lideranças fortes. Esta é a fórmula que se busca para tentar superar essa dificuldade”, crê Oliva.
Na opinião da autora, “o êxito dos populismos de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro em fidelizar os seus seguidores, demonstra a capacidade de arrastar essa estratégia, mas também o perigo que representa para a democracia, na medida em que não pode triunfar sem recorrer à mentira ou à distorção da informação”.
O que ocorre, é que “as forças políticas em disputa tentam colonizar o sistema mediático e assegurar o controle de emissoras a fim de ter uma caixa de ressonância que lhes permita amplificar suas campanhas de crispação”, assinala a jornalista.
No entanto, Oliva diz que “participar das estratégias de crispação, seja consciente ou involuntariamente, afecta a credibilidade do jornalismo como um todo”.
A esta altura, “o papel que os meios de comunicação desempenham na crispação começa a ser percebido como um problema: segundo o CIS (Centro de Investigaciones Sociológicas) espanhol, 53,7% dos cidadãos culpam os políticos e os partidos pela crispação, mas 11,8% consideram que os meios de comunicação e os jornalistas estão entre os que mais contribuem, e outros 4,6% culpam igualmente políticos e jornalistas”, refere a autora.
Recentemente, continua Oliva, “observa-se um crescente mal-estar em relação à forma como o jornalismo exerce a sua função”, o que se pode sintetizar em ideias recorrentes como as de que "todos mentem" ou "todos manipulam". Ora, diz a professora que “a causa desse descrédito é consequência do jornalismo de trincheira e crispação, em que alguns meios de comunicação caíram, mas também de erros recorrentes na gestão da informação”.
“Os meios de comunicação são frequentemente acusados, não sem razão, de não representarem adequadamente a realidade, por interesses particulares, ou por não saberem controlar certas dinâmicas informativas que provocam preconceitos e distorções”, afirma a jornalista.
“Entre as críticas mais frequentes”, diz a autora, “destacam-se a tendência à espectacularização, a valorização do impactante em detrimento do importante, a ênfase nos aspectos mais conflituosos de qualquer assunto, o incentivo ao confronto, ou a abordagem superficial de assuntos complexos”, acrescenta.
Sendo assim, “o que é que a profissão jornalística deve fazer diante desse clima de crispação?”, questiona Oliva.
Na sua opinião, e “em primeiro lugar, não desistir”. O jornalismo deve “tentar aproximar-se o máximo possível da verdade, contá-la de forma transparente e contribuir para um debate político racional oferecendo elementos de interpretação da realidade, que ajudem a compreender a complexidade dos problemas”.
“Na medida em que isto for feito”, no entanto, “será inevitável entrar em conflito com aqueles que utilizam a desinformação, boatos e teorias da conspiração como instrumento de polarização”, considera. Mas, “desmascarar boatos e teorias da conspiração faz parte da obrigação de informar com rigor. Ao fazê-lo, é possível que a resposta seja uma maior crispação, desta vez direccionada ao próprio veículo de comunicação”.
“No entanto, nestes casos, a única resposta possível é resistir e persistir”, salienta a professora.
Para isso, “temos instrumentos à nossa disposição: o cumprimento rigoroso do código deontológico; decidir a própria agenda informativa, levando em consideração o interesse dos cidadãos antes dos actores políticos; investigar a verdade e não aceitar os argumentos impostos pelos estrategas da comunicação partidária; desmascarar as mentiras sempre que forem detectadas. Ser honesto com as fontes e reconhecer os erros quando ocorrerem, pois ninguém é infalível, especialmente num momento em que as armadilhas são abundantes e desvendar a verdade é tão difícil. Em resumo, agir de acordo com as normas éticas da profissão e não se deixar intimidar pelo barulho e pela pressão daqueles que tentam instrumentalizar os meios de comunicação para alcançar seus próprios objectivos”, aponta a jornalista.
Milagros Pérez Oliva destaca que “a curto prazo, isso pode ser desconfortável e exigir um esforço adicional, mas, a longo prazo, a independência de pensamento e o rigor são o que podem garantir que o jornalismo continue a desempenhar a sua função como guardião do direito dos cidadãos a receber informações verídicas”.