Os vencidos: a Apple, cuja recusa em ajudar o F.B.I. não impediu este de desbloquear o telemóvel em questão, além de ter tornado patente que o sistema de cifra do software iOS9 do iPhone não é inviolável, ao contrário do que a Apple afirmava; e o ministério da Justiça americano, que não conseguiu forçar a Apple a colaborar no desbloqueamento do telemóvel.

 

Os vencedores: a Apple, que aproveitou o caso para assumir abertamente o papel de campeã intransigente e porta-estandarte da defesa da privacidade dos utentes de “smartphones”, faceta fundamental da sua postura de “marketing”, sobretudo tendo em conta que dois terços da sua facturação provêem de fora dos E.U.A., incluindo de grandes mercados como o chinês, onde a privacidade das comunicações dos cidadãos é uma figura de retórica; o ministério da Justiça americano, que conseguiu desbloquear o telemóvel, apesar da oposição da Apple; e a empresa israelita de electrónica forense Cellebrite, fortemente suspeita de ser a autora dessa proeza que a Apple alegava ser impossível, e beneficiária de uma onda instantânea de publicidade no mundo da encriptagem, indústria recente com alta procura global.

 

A Cellebrite, uma empresa com 17 anos, sediada próximo de Tel-Aviv, é desde 2007 uma subsidiária da japonesa Suncorporation, e tem filiais nos E.U.A., Canadá, Inglaterra, Alemanha, França, China e Brasil. Nos dias seguintes à revelação, as acções da Suncorporation subiram 20 por cento. 

 

O jornal israelita Yedioth Aharonot terá sido o primeiro a referir a Cellebrite como a misteriosa entidade, até agora não identificada pelo F.B.I., que ajudou este último a desbloquear o iPhone de Farook. O vice-presidente da Cellebrite responsável por “mobile forensics”, Leeor Ben-Peretz, contactado pelo jornal digital de electrónica Mashable, pouco depois de uma viagem aos E.U.A., não negou nem confirmou que a sua viagem tivesse a ver com o F.B.I., e recusou-se a fazer quaisquer comentários adicionais. Outro director da Cellebrite, também contactado pelo Mashable, recusou-se igualmente a fazer qualquer comentário.

 

Embora não haja confirmação de que seja a Cellebrite quem ajudou o F.B.I., o Mashable apontou que, ao contrário de várias outras empresas contactadas sobre esta matéria, que negaram qualquer envolvimento, a Cellebrite não confirmou, mas também não desmentiu.

 

Uma das revelações mais surpreendentes vindas a lume durante o processo que opôs o F.B.I. à Apple, foi que esta última tinha colaborado desde 2008, discretamente, com autoridades federais que solicitaram a sua ajuda para facilitar o desbloqueamento de cerca de 70 outros iPhones utilizados por suspeitos de actos criminosos.  

 

Confrontada com este paradoxo, a Apple alegou que foi forçada a recusar a sua colaboração neste caso devido ao facto de o F.B.I. ter tornado pública a sua exigência, através de mandado judicial emitido por um juiz federal. A explicação é provávelmente verdadeira, e por isso mesmo quase inverosímil na sua ingenuidade, dado tornar patente que o problema não foi o pedido, mas o modo como foi feito. Ou seja, públicamente, a Apple não podia ser vista como facilitando o desbloquamento de um iPhone, o que também confirmaria que afinal o iPhone não é inviolável, mas apenas menos fácilmente violável do que os seus concorrentes, prejudicando assim a sua imagem de mercado.

 

O método que permitiu ao F.B.I. desbloquear o iPhone de Farook não é ainda conhecido, mas o consenso dos entendidos inclina-se para uma solução relativamente “simples”: a neutralização do limite de 10 tentativas de abertura consentidas pelo iPhone 5c para introdução do código correcto de quatro algarismos. Neutralizado esse limite, o aparelho  permite a introdução sucessiva por computador das 10 mil combinações possíveis de quatro algarismos entre 0000 e 9999, até aparecer a chave correcta.  

 

Desde que o F.B.I. anunciou não precisar da Apple para desbloquear o iPhone de Farook, a Apple enfatizou ainda mais a sua postura de defensora irredutível da privacidade dos seus clientes, mas este afrontamento foi apenas uma primeira batalha numa guerra que se prevê duradoura. Em 15 de Abril a Apple abriu uma nova “frente”, ao requerer que um tribunal federal rejeite um segundo pedido do ministério da Justiça para ajudar a desbloquear outro iPhone, desta vez um 5s, utilizado por um traficante de droga em Brooklyn (Nova Iorque), que confessou o crime de que foi acusado mas se recusou a permitir acesso ao seu telemóvel.

 

No dia anterior fora noticiado que a Microsoft processou o ministério da Justiça, para poder  informar clientes cujos e-mails sejam objecto de vigilância ao abrigo de mandados judiciais. O processo da Microsoft, ao contrário daqueles em que a Apple tem estado envolvida, não se prende com um caso específico, mas como a Apple, também procura forçar os tribunais a definir regras do jogo, ao mesmo tempo que veste o manto da defesa da privacidade - numa era em que, como é sabido, as empresas informáticas sabem mais sobre os seus utentes do que qualquer entidade governamental.    

 

Tanto a Apple como a Microsoft, a Google e outras empresas que oferecem serviços de correio electrónico, recebem milhares de mandados judiciais por ano, para permitirem acesso a e-mails de suspeitos. Em cerca de metade desses casos, os mandados são acompanhados por proibições de informar os vigiados. O consenso dos observadores é que, enquanto o Congresso não legislar sobre a matéria, casos como este continuarão a ser decididos em tribunal, e mais cedo ou mais tarde um deles chegará ao Supremo Tribunal.  

 

Entretanto, a médio prazo, é natural que a actuação da Apple no caso Farook seja vista pelos observadores como um dos raros “faux pas” de uma empresa que ao longo dos seus 40 anos de existência (aniversário comemorado no princípio deste mês) conseguiu uma imagem ímpar de invencibilidade comercial.