Universos Paralelos
Ultrapassada a Grande Depressão e o excepcional esforço nacional para ganhar duas guerras simultâneas, na Europa contra a Alemanha, no Pacífico contra o Japão, essa dicotomia nos órgãos de comunicação americanos atravessou uma trégua prolongada graças ao optimismo alimentado pela vitória, crescimento económico acelerado e resultante prosperidade, que se seguiram até aos anos sessenta, mas voltou a acentuar-se desde então. Agudizou-se grandemente durante a administração Obama, e mais ainda durante a campanha de Donald Trump e desde a sua eleição.
Segundo dados do Center for Public Integrity (instituto independente, não-partidário, fundado em Washington, D.C. em 1989, dedicado ao jornalismo de investigação) Hillary Clinton recebeu 96 por cento de todas as doações de jornalistas para as campanhas dos dois candidatos à presidência em 2016. E segundo o blog de análise estatística FiveThirtyEight, dos 59 jornais diários principais que fizeram uma recomendação de voto aos seus leitores, 57 recomendaram que votassem por Clinton. Esses são os media em que se espelha uma das duas Américas em que os consumidores americanos de notícias e opinião podem optar por viver.
Essa é, por exemplo, a América que dá um papel de destaque à alegada ingerência da Rússia na derrota de Hillary Clinton, e que mantém viva desde o passado Verão a esperança de descobrir provas dessa ingerência. Com resultados como por exemplo a “descoberta” de um tal Carter Page, que o F.B.I. sabia desde 2013 ter sido objecto de uma tentativa infrutífera de recrutamento por parte dos serviços de espionagem russos, e que durante alguns meses, em 2016, foi consultor da campanha de Trump. Carter Page, fundador e administrador do fundo de investimento Global Energy Capital LLC, trabalhou entre 2004-2007 no escritório da Merrill Lynch em Moscovo; mais recentemente, parece ter tido alguns negócios com um antigo executivo da Gazprom.
Para além disso, de ter proferido algumas palestras em Moscovo e de nunca se ter encontrado com Trump, Page parece o perfeito candidato a culpado de ser suspeito, ou a famoso “malgré lui”. O que não impediu o The New York Times de lhe dedicar um artigo de 1.800 palavras na edição de 20 Abril, com abertura a três colunas na primeira página. Publicidade gratuita de que Page se queixa sorridentemente.
Essa é também a América supostamente interessada na cobertura das campanhas de resistência à nova administração Trump, organizadas por várias associações de poetas, a avaliar por outra reportagem de primeira página no mesmo jornal, dois dias mais tarde, pela qual ficamos a saber que a Poetry Society of America, a Academy of American Poets e a Poetry Coalition estão na vanguarda de uma tsunami poética anti-Trump, em que se filiam também editoras como a Dispatches Editions, a Boston Review, a Spiegel & Grau e a Knopf, que já lançaram ou se preparam para lançar em breve antologias poéticas de combate ao trumpismo.
Representativo desse movimento é o poema “América Estás Morta” de Danez Smith, citado no artigo, título elucidativo que condensa em três palavras a mensagem essencial do poema. Desconhece-se o impacto da resistência poética, mas é de recear que fique aquém das expectativas dos seus líderes, dado que segundo um artigo do The Washington Post, a poesia é um género literário “em vias de extinção”, com menos de sete por cento de leitores entre a população adulta, ou seja, menos de metade dos visitantes de museus. Só a ópera tem menos público.
A outra América opcional oferece, além da Fox News e das páginas de opinião do The Wall Street Journal, dezenas de órgãos digitais como Newsmax, Politico, Daily Beast, Daily Caller, Breitbart News, Drudge Report, The Blaze, The Hill, Independent Journal Review, etc., com uma variedade de selecção noticiosa e de perspectivas políticas vastamente superior à dos media impressos tradicionais - e com uma audiência também largamente superior.
Vários desses órgãos, relativamente recentes, estão representados na “pool rotation” da Casa Branca – a lista de órgãos acreditados, antecipadamente designados, que representam todos os restantes, à razão de um por dia, no caso de acontecimentos em que apenas um jornalista é autorizado a estar presente.
Não obstante, estranhamente, o júri dos prémios Pulitzer parece ter ficado no século XX, e continua a ignorar quase completamente a existência dos novos órgãos digitais. Dos 14 prémios Pulitzer de jornalismo deste ano, anunciados em 10 de Abril, 12 foram atribuídos a jornais impressos ou a jornalistas de órgãos impressos, e dois foram partilhados entre jornalistas de orgãos impressos e digitais.
Recentemente, a diferença de perspectiva entre as duas Américas parece ter alastrado da política para a percepção da economia. De acordo com uma sondagem da Universidade do Michigan, que avalia regularmente a opinião dos americanos àcerca do estado da economia, o nível de confiança expresso pelos republicanos após a vitória de Trump, citado em artigo do The New York Times, é superior em cerca de 75 pontos percentuais ao dos democratas –. uma diferença extraordinária. Após a vitória de Ronald Reagan em 1980 e a de Obama em 2008, essa diferença não passou dos 17 pontos percentuais. Não é mera curiosidade estatística. Como apontado por Alan Blinder, economista de Princeton, no mesmo artigo, “se um terço da população reduzir o seu consumo [por pessimismo] em cinco por cento, teremos uma recessão.”
Seis meses após a vitória de Trump e três meses depois do início do seu mandato, não há indícios de uma aproximação entre os universos paralelos em que vivem os americanos, apoiados em visões profundamente divergentes, servidas pelas respectivas fontes de informação.
Os algoritmos usados pelas redes sociais, como o Facebook , na difusão de notícias, reforçam ainda mais a tendência natural para consumir de preferência informação de fontes que confirmam as convicções de mais de metade da população adulta. A manter-se essa cisão, sem precedentes desde a Guerra da Secessão, as suas consequências a longo prazo são imprevisíveis.