Proença de Carvalho conseguiu a proeza de efectuar o despejo  sem que ninguém derramasse uma lágrima,   desde o Munícipio  de Lisboa, ao Ministério da Cultura e à Ordem dos Arquitectos. Os estremecimentos de outrora caíram em desuso.

A cultura que fala mais alto é a do silêncio. Mesmo quando está em causa um edifício classificado e Prémio Valmor, guardando no interior  os painéis de Almada  e um valioso espólio arquivístico, cujo destino se desconhece.

 

O edifício vai ser descaracterizado, destruído por dentro,  retalhado em 32 apartamentos, mas que importa? Restará a fachada para aquietar as consciências, como símbolo da ascensão e queda de um jornal.

Foi neste contexto de “lavar dos cestos” que Marcelo Rebelo de Sousa convidou os jornalistas a serem "implacáveis no escrutínio de todos", incluindo o próprio Presidente da República. Um magnífico desafio, porém  inconsequente.   

 

Como o Presidente reconheceu, têm sido muitas as mortes de jornais, nacionais e regionais, empobrecendo a democracia. Suspeita-se que  outras se desenham.

Um dos primeiros títulos de referência a partir, em finais dos anos 70 -  quase à beira de festejar o centenário -, foi O Século, pela mão de Manuel Alegre (então secretário de Estado com o pelouro da Comunicação Social). Vivia-se, ainda, a ressaca revolucionária, e O Século - rival assumido  do Diário de Noticias -, fechou e deixou como herança a Colónia Balnear. Até hoje.

A mesma fatalidade esteve à porta do DN, vítima do desvario de José Saramago, que o PCP colocara na direcção. Ficaram célebres as suas notas incendiárias na primeira página, em defesa da   ditadura comunista que sonhava. 

O futuro Nobel quase liquidaria o jornal, mas não lhe faltariam, mais tarde, as homenagens na mesma casa donde expulsou jornalistas que não partilhavam do seu ideário. Gente irresponsável e sem memória, transformou  o desastre  num feito.

 

O jornalismo está confrontado com  uma curva apertada. No caso do DN, que se afundou em tiragem e influência,  o dia seguinte é uma incógnita para os seus jornalistas.

Enquanto as redacções minguam, os candidatos a estagiários engrossam a fila de espera. As universidades, públicas e privadas, entretém-se a semear ilusões e lançam todos os anos no mercado   centenas de novos  licenciados em Ciências de Comunicação e Jornalismo, potenciais desempregados. Agrava-se a precarização da profissão sem saídas à vista.

Nestas condições, o apelo de Marcelo, incitando os jornalistas a serem afoitos e desassombrados, arrisca-se a cair em “saco roto”.

 

Não há milagres. Um estudo recente, assinado por um  investigador da Universidade de Coimbra, concluiu que a maioria dos 806 jornalistas inquiridos declara sofrer pressões internas, da administração ou da direcção editorial. 

O desequilíbrio financeiro em que sobrevivem muitas empresas do sector torna-as vulneráveis a todas as pressões.

Antes do 25 de Abril, as chefias  da redacção dispunham de listas de empresas, personalidades e de entidades, consideradas intocáveis.  Voltamos a não andar longe disso.  

 

Numa conjuntura tão adversa -  e não desejando ser “implacável” com o Presidente -, convirá dizer-lhe, porém, que, ultimamente, “andou mal”.  

Senão vejamos: envolveu-se na questão da Caixa para além do razoável;  caucionou com a sua presença a remoção do Diário de Noticias, do centro para a periferia; subiu ao palco da Cornucópia para reclamar um estatuto de excepção para a companhia - perante um ministro da Cultura pasmado;  caiu na armadilha de “dar notas” ao País  aos microfones da TSF. A sua inquestionável popularidade não legitima tudo.

Marcelo foi jornalista e pioneiro do comentário político. Afeiçoou-se aos estúdios e tornou-se inseparável do serão de muitas famílias ao domingo. Mas o Presidente não é comentador. E os afectos e as selfies não duram sempre.

 

Publicado originalmente na coluna Pátio das Cantigas, no semanário Sol