Um jornal que perde a casa e a identidade
Inquieta saber que um jornal, que foi dos mais influentes da sociedade portuguesa, entrou em declínio acelerado, com uma circulação pouco superior a 15 mil exemplares, de acordo com os dados mais recentes da APCT – Associação Portuguesa de Controlo de Tiragens.
Incomoda ver em título onlineno site, “De Eça a Saramago, os queridos fantasmas do DN vão connosco”. Como se Eça e Saramago pudessem ser metidos no mesmo saco, quando o primeiro prestigiou o jornal e o segundo o arruinou com os seus textos incendiários de um comunismo primário e vesgo.
Com a venda do edifício histórico, o Diário de Noticias hipoteca a memória e o futuro. À terceira tentativa foi de vez.
Com uma diferença: ao contrário do que aconteceu quando quiseram despejar o jornal num prédio semi-arruinado, perto de Cabo Ruivo, não houve agora um movimento, uma resistência, um protesto. As direcções editoriais calaram-se e colaboraram obedientes. Os jornalistas mudos ficaram.
Dir-se-á que o tempo não aconselha heroísmos e que os jornalistas não podem arriscar os seus empregos, mesmo que seja em nome de causas justas. As incertezas condicionam os gestos nobres.
Um deles, aliás, escreveu mesmo, com inusitado pragmatismo, na última edição saída da casa projectada por Pardal Monteiro, que “nas Torres Lisboa o DN está com as outras marcas da Global Media Group(…)”.
Para a actual redacção do DN, ser uma “marca” entre outras “marcas” parece representar um novo estatuto, partilhado num grupo editorial, cuja denominação em inglês parece apostar num provincianismo … para inglês (ou chinês) ver.
Eis o destino anunciado para o jornal fundado em 1864 por Eduardo Coelho e por Tomás Quintino Antunes, transversal a várias gerações, cujo arquivo - enquanto não for desbaratado -, guarda memórias imperecíveis, de consulta obrigatória para qualquer historiador que queira debruçar-se sobre o último século e meio de vida portuguesa.
O DN deixa um edifício com história para ir ocupar um piso em torres comerciais. Sem história.
O negócio consumado - conduzido em sigilo, não fosse o projecto abortar novamente -, aproveita a alta da valorização da avenida da Liberdade que, juntamente com o Chiado, tem alcançado valores proibitivos por metro quadrado.
Será um balão de oxigénio para as depauperadas finanças da empresa e um alívio para os actuais accionistas, mais antigos ou recém-chegados.
Choca, porém, não ouvir uma palavra ao ministro da Cultura, ao presidente da Camara, ao bastonário dos Arquitectos. É uma falta de comparência comprometida.
O Diário de Noticias, nascido na rua dos Calafates, no Bairro Alto – que já foi o “bairro da tinta” – sai pela porta baixa. E não se importa de entregar aos especuladores os painéis de Almada Negreiros, a Sala Verde onde recebeu personalidades com mundo, e de destruir o cofre forte onde se guardavam originais de Stuart, de Eça de Queiroz, de Ramalho Ortigão, de Pinheiro Chagas e de tantos mais.
De jornal de referência o DN passou usar a alcunha de “marca”. Oxalá não seja uma “marca” em vias de extinção.