Um acordo, para quê e para quem?
No plano interno, o Acordo, promulgado em Julho de 2008, foi oficialmente introduzido em meio escolar no ano lectivo de 2011/2012, para júbilo das empresas especializadas na edição de manuais. Mas, durante todo o tempo que mediou entre a sua adopção e a sua efectiva institucionalização, assistiu-se a uma espécie de braço de ferro permanente entre uma vontade política favorável ao dito Acordo, consubstanciada nas decisões governamentais e nos debates parlamentares, e uma contestação do mesmo, por parte de sectores alargados da opinião pública e, particularmente, da intelectualidade portuguesa.
Basta lembrar, a este propósito, o «Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico» que recolheu mais de 113 mil assinaturas e foi objecto de apreciação em Plenário da Assembleia da República, em Maio de 2009; a «Iniciativa Legislativa de Cidadãos» que, via Facebook e Twitter, congregou, em 2010, dezenas de milhar de assinaturas; a petição lançada em 2015 intitulada «Pela Língua Portuguesa, Diga Não ao Acordo Ortográfico de 1990» que reuniu 52 nomes grandes da Literatura, das Artes e do ensino universitário em Portugal.
No campo dos media, e embora a maior parte das publicações e dos canais de televisão tenham aderido ao Acordo, revistas como a Sábado e jornais diários como o Público anunciaram a sua recusa em aplicá-lo. Por outro lado, colaboradores do semanário Expresso, com a notoriedade de um Miguel Sousa Tavares ou de um Pedro Mexia, esclarecem, com o seu quê de provocatório, que escrevem «de acordo com a antiga ortografia».
E é também este o procedimento da Associação Portuguesa de Escritores que ignora o Acordo na sua correspondência oficial.
Enfim, dos 27 organismos inquiridos pelo Instituto Camões, em 2005, sobre a aplicabilidade imediata do Acordo, apenas dois não levantaram quaisquer problemas a esse respeito.
Das numerosas objecções ao Acordo de 1990, destacam-se:
- As que o consideram inconstitucional;
- As que vêem nele a expressão de uma submissão aos interesses económicos e geo-estratégicos do Brasil, submissão que este país, aliás, desdenharia;
- As que denunciam as suas ambiguidades e incongruências.
Segundo os seus críticos, a resposta do Acordo a tais ambiguidades e incongruências consistiria em multiplicar as excepções e em admitir novas formas ortográficas, desde que consagradas por um “uso culto”. É a chamada “facultatividade” baseada num critério – o do “uso culto” - que, convenhamos, carece de rigor.
Do lado dos defensores do Acordo, a argumentação é mole e, com frequência, cede o lugar a uma explicação circunstancial: no estado em que as coisas estão, qualquer recuo seria impossível…
Mas, o mais curioso é que a determinação da esfera política portuguesa na aplicação do Acordo, determinação a que alguns chamarão «teimosia», não encontra eco nos restantes países da CPLP. No Brasil, por exemplo, e salvo erro de minha parte, o período de transição que, inicialmente, terminaria em 2013, foi prolongado até finais de 2015. Posteriormente, a Academia Brasileira de Letras solicitou um novo prolongamento. Em Angola, o Acordo está longe de mobilizar as atenções, tendo o Governo de Luanda proclamado, recentemente, a sua decisão de não o respeitar. Em Moçambique, do Acordo não se fala.Em Cabo Verde, o processo estaria mais adiantado. Só que, face ao crescente desenvolvimento do uso do crioulo, o português do Acordo ortográfico tende a confundir-se com o português das relações protocolares.
Progressivamente isolado, estará reservado, para Portugal, o papel de brioso «Cavaleiro Errático»?
A manter-se o imbróglio, não haverá o risco de se gerar uma espécie de ortografia híbrida, misturando aspectos retirados do Acordo de 1990 e outros do Acordo de 1945?
A defesa da língua, objectivo sem dúvida altamente meritório, não passa necessariamente por normativos unificadores: a ortografia do francês de França, não é, exactamente, a ortografia do francês do Canadá; a ortografia do inglês do Reino Unido não é, exactamente, a ortografia do inglês dos Estados Unidos da América. E, no entanto, não há notícia de que o francês ou o inglês corram perigo de secundarização nos areópagos internacionais.
E não há normativo que resista aos efeitos das novas tecnologias de informação e comunicação, por exemplo, à economia gráfica das mensagens transmitidas através dos telemóveis.
A defesa da língua está, isso sim, associada à posição que o país ou os países falantes ocupam no contexto das nações. A defesa da língua depende, isso sim, das políticas públicas visando a sua expansão, a sua consolidação.
(Comunicação apresentada na Academia das Ciências de Lisboa em 9 de Março de 2017)