Justifica-se inteiramente esse interesse e apreensão, mas por razões mais importantes do que as que têm sido geralmente apontadas. A operação insere-se num contexto mais vasto – o da expansão do Alibaba aos sector dos media, e a sua relação com a postura do regime chinês vis-à-vis da comunicação social, não só relativamente à própria imprensa chinesa, mas também globalmente.

O grupo de comércio electrónico Alibaba foi fundado em 1999 por Jack Ma, nascido em  Hangzhou há 51 anos e considerado este ano pela Forbes como o 2º chinês mais rico, com uma fortuna avaliada em cerca de 24 mil milhões de dólares, que também o coloca em 22º lugar entre os maiores bilionários do mundo. O Wall Street Journal define o grupo Alibaba como um misto de mercado, motor de busca e banco – o equivalente de um “holding” que incluisse a Amazon ou eBay, a Google e o Bank of America.

Alibaba tem uma fatia hegemónica (80 por cento) do comércio electrónico chinês, que conta 640 milhões de consumidores online. Facturou o ano passado mais de 250 mil milhões de dólares, ou seja, mais do que a Amazon e eBay combinadas, e 15 mil milhões mais do que a Apple - qualquer coisa como 685 milhões de dólares por dia. A IPO do Alibaba, em 2014, foi a maior de sempre, tendo arrecadado 25 mil milhões de dólares. O recorde anterior era da Facebook, com 16 mil milhões, em 2012. Em valor bolsista, entre empresas de tecnologia, só três (Apple, Google e Microsoft) superam os 215 mil milhões de dólares do grupo Alibaba.

O Post, um dos dois jornais de Hong-Kong em língua inglesa, foi fundado em 1903, e listado pela primeira vez na bolsa de Hong-Kong em 1971. Foi adquirido 16 anos depois pela News Corporation, controlada pelo australiano Rupert Murdoch. Em 1993 o grupo Kerry, controlado pelo magnata sino-malaio Robert Kuok, assumiu o controlo do jornal através da aquisição de uma quota de 35 por cento, por 375 milhões de dólares. Essa quota subiu para 74 por cento em 2007, a um custo adicional de 209 milhões. Em resumo, certamente um dos piores negócios de Kuok nos últimos 22 anos: só em dólares correntes, a sua posição dominante no Post custou-lhe 584 milhões, e foi agora vendida por 266 milhões.

A influência e projecção do Post, largamente superior à sua tiragem, relativamente reduzida (cerca de 100 mil exemplares), resulta indirectamente da fundação da República Popular da China em 1949, e da extinção desde então de órgãos noticiosos fidedignos na China. Por defeito, o Post tornou-se gradualmente numa das raras fontes fiáveis de cobertura em língua inglesa acerca da China, e popular entre investidores de Hong-Kong, Singapura e de todo o sudeste asiático, sequiosos de informação independente sobre a China e desejosos de explorar oportunidades de negócio, a partir da transformação económica iniciada por Deng Xiaoping em 1976.

A acentuada desvalorização do Post, cujo custo de aquisição equivale ao que o Alibaba factura cada 8 horas, é atribuível à deterioração dos resultados financeiros do jornal nos últimos anos - tanto mais notória porquanto o jornal chegou a ser, no final do século passado e princípios deste, um dos mais lucrativos do mundo - e às poucas perspectivas de superação da crise no futuro próximo. A que poderá então atribuir-se o interesse de Jack Ma no Post

Segundo analistas que têm seguido de perto Alibaba e o seu fundador, a explicação filiar-se-ia numa espécie de “rivalidade virtual” de Jack Ma com Jeff Bezos, fundador e CEO da Amazon. Bezos tem a mesma idade que Ma, uma fortuna avaliada em mais do dobro da dele, e há dois anos adquiriu o The Washington Post por 250 milhões de dólares. 

É possível que haja alguma verdade nessa análise, mas há outra mais racional. Investimentos anteriores de Ma, como no China Business Network (CBN), Weibo (equivalente chinês do Twitter),  Youku.com (video online) e cinematografia, sugerem que a compra do Post se insere numa estratégia de expansão do Alibaba ao sector dos media. Além disso, o governo chinês procura activamente o apoio de empresas chinesas aos seus esforços para gerar cobertura positiva nos media estrangeiros acerca da China.     

Vários observadores têm previsto que a transferência de propriedade afectará a independência do Post. Segundo eles, mesmo excluindo a hipótese de que Ma tenha sido “encorajado” pelas autoridades chinesas a adquirir o jornal e controlar a sua orientação, é plausível que tome medidas para suprimir não apenas cobertura desfavorável para qualquer das numerosas empresas do império Alibaba, mas, também, o conteúdo políticamente sensível, que poderia resultar em represálias de Pequim contra o novo dono do jornal.

Num comunicado, a Associação dos Jornalistas de Hong-Kong exprimiu a sua apreensão dizendo que a transferência de propriedade resultará em “mais restrições à cobertura da China” pelo jornal.    

A verdade, porém, é que a erosão da independência do Post não vai começar agora, com a sua aquisição pelo Alibaba, porque começou quando o sino-malaio Robert Kuok assumiu o controlo do jornal em 1993, ou seja, quatro anos antes da devolução de Hong-Kong à China - a qual só acelerou o processo em curso de “domesticação” do jornal, à semelhança do que tem acontecido com a restante imprensa de Hong-Kong. No índice de liberdade de imprensa em 180 países, compilado anualmente pela Reporters Sans Frontières (https://fr.rsf.org/ ou http://en.rsf.org/), Hong-Kong teve uma queda vertiginosa nos últimos 13 anos, do 18º lugar em 2002, para o 70º este ano.

Exemplos do amordaçamento do venerável  Post  incluem a nomeação de Wang Xiangwei, membro do comité político provincial de Jilin e antigo quadro do China Daily (megafone oficial do governo chinês), para o cargo de director do  jornal, em 2012; a cobertura minimalista inicial, pouco depois da nomeação do novo director, da morte do dissidente Li Wangyang em 2012, em circunstâncias suspeitas, num hospital de Daxiang; e o despedimento em Maio passado de quatro colunistas do Post, autores de críticas ao governo.

Apesar da cautelosa cobertura pelo Post, em 2014, do movimento de protesto em Hong-Kong conhecido como o “Umbrella Movement”, o governo chinês castigou o jornal, bloqueando o acesso ao seu site na China durante um ano, como de resto continua a acontecer com os sites da Google, Facebook e The New York Times, inacessíveis na China.  

A informação prestada pelo próprio Alibaba – elogiado como um “brilhante cartão de visita” por Liu Qibao, chefe do departamento de propaganda do Comité Central do partido comunista chinês - acerca dos objectivos da aquisição é, no mínimo, paradoxal. Pela voz do seu vice-presidente executivo Joseph Tai, promete que “a cobertura noticiosa do Post será objectiva, exacta e equilibrada”, ao mesmo tempo que declara que a compra do jornal foi “motivada pelo desejo de melhorar a imagem da China e de oferecer uma alternativa à perspectiva tendenciosa das fontes ocidentais.” Desidérios conciliáveis para discípulos de Josef Goebbels, mas oximorónicos para qualquer jornalista. Cobertura independente e propaganda são simplesmente incompatíveis.

Uma reflexão àcerca da compra do Post pelo Alibaba seria incompleta sem referência ao papel da China nas negociações em curso desde há meses na O.N.U. para acordar nas regras pelas quais a internet deverá reger-se no futuro.

Durante essas negociações, infelizmente ignoradas por muitos órgãos noticiosos, a China bateu-se, com êxito, pela inclusão de uma cláusula conhecida pela “multilateral”, que possibilita aos estados a imposição de regras de acesso à internet. A China insistiu também na exclusão do documento de expressões como “liberdade de expressão” e “democrático”, mas nesses casos sem êxito. 

Através desse documento, a China procurou mais uma vez promover a aceitação do princípio que designa por “soberania na internet”, segundo o qual os estados devem ter o direito ilimitado de regular o acesso à internet pelos seus cidadãos. Por outras palavras, o direito dos estados a censurarem o conteúdo da comunicação e informação por via electrónica, e a sua distribuição. Como acontece na China, onde a “Grande Muralha de Fogo” (”Great Firewall”) bloqueia o acesso de 640 milhões de utentes da internet  a milhares de sites.

Embora não tenha ainda conseguido massa crítica para aceitação internacional desse princípio, a  influência da China nos debates tem vindo a aumentar, bem como a sua representação. Por exemplo, Houlin Zhao, secretário-geral da União Internacional de Telecomunicações, sediada em Genève, com 193 estados-membros, é chinês. Sobretudo inquietante é que as posições chinesas são frequentemente apoiadas por países como a Rússia e Cuba, membros do chamado “Grupo dos 77”, que inclui na realidade 134 estados – óbviamente os 134 estados mais repressivos do planeta.  

No mesmo índice da liberdade de imprensa da Reporters Sans Frontières (https://fr.rsf.org/ ou http://en.rsf.org/) para 2015, mencionado acima, a China ocupa o 176º lugar, entre 180 países, e está também entre os 10 países onde a imprensa é sujeita a censura mais intensiva. Em Abril do ano passado, o governo chinês distribuiu o chamado Documento 9, que inclui uma directiva perfeitamente clara: o papel dos media é apoiar a linha do partido dirigente. Uma nova lista de proibições publicada este ano pelo Partido Comunista inclui a proibição de “fazer críticas não-autorizadas”.  

A China tem também a distinção de mais uma vez este ano ser o país com mais jornalistas na prisão (44), ou seja, quase um quarto dos 199 jornalistas presos em 28 países. É, desde há mais de um decénio, um dos três países com mais jornalistas presos. 

Dos 103  laureados  individuais do prémio Nobel da Paz (muitos foram atribuidos a organizações), só três estavam presos – e continuaram presos – depois dos seus prémios serem anunciados: em 1935, Carl von Ossietzky, na Alemanha nazi; em 1991, Aung San Suu Kyi, na Tailândia dos generais; e em 2010, Liu Xiaobo, na China de Hu Jintao. Liu estava preso desde  2008, tendo sido sido condenado em 2009 a 11 anos de prisão. O governo chinês proibiu-o de nomear um representante para receber o prémio, e colocou a mulher em prisão preventiva. Liu Xiaobo, prémio Nobel da Paz 2010, continua na cadeia, em Jinzhou, na China de Xi Ping desde 2012. 

Dos 65 países representados diplomáticamente na Noruega, convidados para a cerimónia da entrega do prémio em 2010, em Oslo, 15 declinaram o convite – entre eles a Rússia, Arábia Saudita, Irão, Venezuela e Cuba - por pressão da China.

Esta é a China cuja imagem os novos donos do Hong-Kong Post se propõem melhorar, através de uma “cobertura noticiosa objectiva, exacta e equilibrada”. Missão impossível, dirão alguns. Por mim, limito-me a não lhes invejar a tarefa. Good luck.

 

Nota Final: Na Tailândia, Thanakorn Siripaiboon, um mecânico de 27 anos, aguarda julgamento por  comentários “sarcásticos” online a uma cadela. O dono da cadela é o rei Bhumibol, o que a torna um membro da corte e a coloca sob a protecção das leis tailandesas para crimes de lesa-majestade. Thanakorn vai ser julgado por um tribunal militar e poderá ser condenado até 15 anos de prisão. Não se espera que a cadela seja chamada a depôr. Membros da casa real não depõem em tribunal.