Há 47 anos não havia internet. O meu acesso à imprensa internacional era limitado – lia o “Financial Times” e pouco mais. Mas para um país como Portugal nessa época, sem democracia, com censura e envolvido numa guerra colonial em três frentes, o escândalo de as autoridades americanas terem ocultado a verdade sobre a guerra do Vietname durante longos anos suscitava-me natural interesse.

 

Eram então desconhecidas para mim as complexas e por vezes angustiantes decisões que a proprietária e o director do “Washington Post” tiveram que tomar em 1971. Os problemas de liberdade de imprensa e de confronto com o poder judicial e sobretudo com o poder político são o essencial do filme de Spielberg – filme que ele próprio considera ser sobretudo uma homenagem a Katherine Graham. Esta mulher da alta sociedade de Washington, viúva do proprietário do jornal, nunca havia trabalhado até aos 45 anos. Sem qualquer experiência profissional, foi defrontada com problemas graves que ultrapassou com grande coragem.

 

Não era só o desafio à providência cautelar que havia proibido o “New York Times” de continuar a publicar partes do relatório de 14 mil páginas que o secretário de Estado da Defesa, Robert McNamara, havia anos antes encomendado a um grupo de elementos do Pentágono – um dos quais, Daniel Ellsberg, copiou e passou a jornalistas boa parte do relatório, porque estava chocado com a diferença entre o discurso oficial sobre a guerra do Vietname e a realidade, muito mais negra, que aquele estudo revelava.

O problema judicial foi resolvido por uma decisão de sentido contrário à primeira, levando o caso ao Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu pela liberdade de imprensa por 6 votos contra 3 (ou seja, o sistema judicial americano decidiu o caso em apenas 17 dias…). Mas K. Graham já tinha dado “luz verde” para que o “Washington Post” avançasse com a publicação daqueles documentos explosivos. Uma opção arriscada, tanto mais que o jornal acabava de lançar um aumento de capital, que poderia ficar sem efeito caso a sentença do Supremo fosse outra.

 

Acontecia, ainda, que McNamara era amigo de K. Graham e visita frequente da casa desta. Na altura ele já não era secretário de Estado, mas as revelações dos Pentagon Papers mostravam que não tinha sido totalmente verdadeiro nas suas declarações públicas sobre a guerra. Katherine Graham teve com McNamara uma conversa difícil, informando-o de que o seu jornal iria publicar novidades comprometedoras. McNamara era uma pessoa decente, que aceitou a humilhação e mais tarde confessaria que se tinha enganado – embora fosse uma das pessoas mais inteligentes que alguma vez passaram pelo governo dos EUA.

 

Três anos depois rebentava o escândalo Watergate, que foi um triunfo ainda maior do “Washington Post” e do seu director Ben Bradlee, acabando por levar à renúncia do presidente Nixon. O jornal manteve durante meses dois jovens jornalistas, com apoio de algum staff, incógnitos num hotel a investigar o assunto. Creio que, hoje, o “Washington Post” não teria meios financeiros para tal tarefa, apesar de o jornal ser agora propriedade de Jeff Bezos, fundador e dirigente máximo da Amazon. Aliás, Bezos teve a inteligência de manter a independência editorial do “Post”. 

Deve dizer-se, mesmo, que o jornalismo de qualidade foi de alguma maneira estimulado nos EUA pela presidência de Trump, que detesta jornalistas independentes. Só que a concorrência das redes sociais como fonte de informação (?) e o fraco empenho da publicidade em anunciar na internet compromete a viabilidade da imprensa em toda a parte e em particular nos EUA. O número de jornalistas tem diminuído dramaticamente na América. Por isso, a era do grande jornalismo americano pertence ao passado, aos tempos dos Pentagon Papers e do Watergate.

 

Por cá, a divulgação em 1971 pelo “Diário Popular” não foi prejudicada pela censura – tratava-se de matéria estrangeira, de que os censores pouco entendiam. Mas foi para mim gratificante ter contribuído para essa divulgação.