Condensando o sentimento da maioria dos cerca de 134 milhões de cidadãos americanos que votaram numa eleição presidencial em que, pela primeira vez, ambos os candidatos contavam com mais desaprovação do que aprovação, Erick Erickson, director do website conservador The Resurgent, escreveu que “O meu desejo era que ambos perdessem. O homem que eu queria que perdesse derrotou a mulher que eu queria que perdesse.”   

 

A caça aos bodes expiatórios pelo fiasco das previsões e pelo fracasso da campanha de Hillary começou logo nas horas seguintes ao apuramento do vencedor. Os primeiros na lista dos culpados foram os responsáveis pelas sondagens, não só por se terem enganado redondamente e terem induzido os comentadores em erro, como por – segundo os queixosos – terem criado uma ilusão de “pássaro na mão” que levou a campanha de Hillary a relaxar o esforço e a campanha de Trump a empenhar-se ainda mais vigorosamente na última semana, vital para a captação de indecisos.

 

Na semana seguinte à eleição, durante o congresso anual da Associação Internacional de Consultores Políticos, em Denver, no Colorado, um dos participantes, colaborador na campanha de Hillary, descreveu o ambiente da reunião como “parecido com o de um funeral”, segundo o The New York Times.

 

Outra participante, Margie Omero da PSB Research, também colaboradora na campanha de Hillary, citada pelo mesmo jornal, disse que “era impossível conceber a ideia de um presidente Trump; um par de pontos de vantagem pareciam suficientes para impedir uma catástrofe”.

 

É certo que houve consultores discordantes, mas poucos. Um deles, Wayne Root, que trabalhou na campanha de Trump, tinha desconfiado das sondagens e explicou porquê: “A ira e o desejo de mudança deste eleitorado não eram aparentes nas sondagens. [Muitos apoiantes de Trump] não disseram aos inquiridores que iam votar nele.”    

 

O bode expiatório seguinte foi o director do FBI, James Comey, apontado pela própria Hillary como responsável por ter “quebrado o ímpeto ascendente” da sua campanha, ao anunciar,  menos de duas semanas antes da eleição, que o FBI tinha reiniciado uma investigação criminal encerrada em Julho, em torno de emails da candidata enquanto Secretária de Estado, devido ao aparecimento de milhares de novos emails desconhecidos até então.

 

Dois dias antes da eleição, Comey declarou que a nova investigação concluira, como a anterior, não haver motivos para uma acção criminal, mas o mal estava feito, no entender da candidata, que nunca explicou porque razão essas declarações de Comey teriam prejudicado mais a sua campanha do que o conhecimento público de que continuava em curso uma outra investigação paralela do FBI, àcerca da possível venda de influências pela candidata, também enquanto Secretária de Estado, a troco de doações de mais de 150 milhões de dólares à Fundação Clinton.     

 

À medida que números mais completos sobre a votação se tornaram conhecidos, o novo bode expiatório passou a ser o próprio sistema eleitoral americano, em que o presidente é eleito indirectamente por um colégio eleitoral composto de um número de delegados idêntico à soma dos deputados à Câmara dos Representantes (438) com o dos senadores (100), ou seja, um total de 538.

 

Dado que o candidato vencedor em cada estado “arrecada” todos os delegados desse estado, e não proporcionalmente à sua percentagem dos votos, pode acontecer que o candidato que acumula o maior número de delegados, e portanto é eleito presidente, não seja aquele que somou mais votos na contagem nacional. Já tinha acontecido quatro vezes antes, e aconteceu agora pela quinta vez: a contagem não está ainda finalizada, mas até 25 de Novembro, Hillary tinha recebido cerca de 2,1 milhões de votos a mais do que Trump (64,5 milhões contra 62,4 milhões, sendo de notar, porém, que essa diferença se deve exclusivamente à Califórnia, onde Hillary obteve mais quatro milhões de votos do que Trump; nos restantes 49 estados, Trump teve no total mais dois milhões de votos do que Hillary).

 

Como nas outras eleições em que o mesmo aconteceu, reacendeu-se prontamente um debate secular àcerca dos prós e contras do sistema, mais uma vez alimentado, como antes, pelos apoiantes do candidato derrotado mas mais votado, e mais uma vez destinado ao mesmo resultado – a preservação da eleição presidencial através do colégio eleitoral - por duas ordens de razões.

 

Primeiro, porque a necessidade de vencer em cada estado, para conquistar a totalidade dos respectivos delegados, é uma componente deliberada do sistema desde a fundação da república americana. Impede que os candidatos menosprezem os estados menos populosos, como seria o caso se o total nacional de votos fosse decisivo, e evita a discriminação dos eleitores pelos candidatos, entre “filhos” e “enteados”. 

 

Dado que uma maioria de votos à escala nacional não é sinónima de vitória na eleição, as campanhas não são organizadas com esse objectivo. Este exigiria uma estragégia completamente diferente, porque mais de metade dos eleitores estão concentrados em menos de 10 dos 50 estados da América, o que levaria a dar prioridade absoluta aos estados mais populosos, em detrimento dos restantes – precisamente aquilo que o sistema procura evitar. Por exemplo, só a Califórnia tem uma população superior à da totalidade dos 21 estados menos populosos.     

 

Em consequência, não se vê como o Congresso possa acordar numa emenda à constituição que torne a eleição presidencial numa eleição directa nacional, porque os deputados e senadores representantes dos estados menos populosos votariam contra, e impossibilitariam a maioria de dois terços necessária para o efeito.

 

Mesmo que esses deputados e senadores concordassem no seu próprio suicídio político, votando a favor, conseguir a aprovação dos dois terços dos Congressos estaduais, necessária para a sua ratificação, afigura-se missão impossível, porque o resultado seria a imediata despromoção e perda de influência dos estados menos populosos em benefício dos maiores. 

          

O último dos bodes expiatórios apontados pela campanha de Hillary vai ser falado durante muito tempo, porque é um problema real para as redes sociais e para os media digitais, e o número de votantes que dependem principalmente deles para se manterem informados já ultrapassou o número dos que dependem dos media tradicionais: é a praga das “fake news”, ou seja, as notícias falsas que nascem e se propagam como fogos imparáveis, e adquirem uma vida própria mesmo depois de repetidamente desmentidas.

 

O problema sempre existiu, mas numa escala muito menor até à explosão digital, porque agora qualquer boato pode em poucas horas, por retransmissão pelas redes sociais, chegar a dezenas ou centenas de milhões de consumidores de notícias.

 

Exemplo de um desses boatos de que Hillary se queixa de ter sido alvo, tão estranhamente bizarro que custa a crer como alguém poderia levá-lo a sério, é a acusação de que a candidata e membros da sua campanha participavam em sesões de abuso sexual de crianças numa área reservada de uma pizzeria de Washington. O dono do restaurante em causa (que nunca sequer teve qualquer contacto com a candidata), empregados e suas famílias têem sido alvo de constantes chamadas e SMS ameaçadores, apesar dos repetidos desmentidos por parte dos media tradicionais e das autoridades policiais. 

 

Dado que a campanha de Trump também foi alvo de boatos maliciosos, é difícil quantificar a relevância dos mesmos nos resultados da eleição, e evitar a impressão de que todos esses “culpados” do desaire eleitoral de Hillary são mais imaginários, e desculpas de mau perdedor,  do que causas reais do desastre.                

 

Muito menos foco das atenções dos inconsoláveis simpatizantes de Hillary é o seu distanciamento das preocupações de grande parte do eleitorado, pelas quais Trump soube demonstrar uma empatia que vários observadores independentes têem apontado como factor determinante da sua vitória. Do mesmo modo que a influência e o papel de Barack Obama nos resultados da eleição só agora começam a receber a atenção que merecem.     

 

A terminar um discurso que proferiu em 30 de Outubro de 2008  na Universidade do Missouri, em Columbia, poucos dias antes do fecho da sua primeira campanha presidencial e da sua eleição, Obama fez uma promessa frequentemente citada desde então: “Estamos a cinco dias de transformarmos fundamentalmente os Estados Unidos da América.” A prometida transformação começou a realizar-se decorridos apenas dois anos.

 

 Em Janeiro de 2009, quando Obama foi empossado presidente, o partido Democrático tinha maiorias absolutas na Câmara dos Representantes e no Senado. Em Janeiro de 2011, depois das intercalares, os Democratas já tinham perdido o controlo da Câmara dos Representantes, mantendo embora a sua maioria no Senado.

 

A prometida transformação voltou a progredir decorridos outros dois anos: no início do  segundo mandato de Obama, em Janeiro de 2013, os Republicanos passaram a controlar ambas as câmaras do Congresso, e nas intercalares seguintes, aumentaram ainda mais as suas maiorias em ambas.

 

Em resumo, para os Democratas, os dois mandatos de Obama saldaram-se, no Congresso federal, por uma perda líquida de 11 senadores e mais de 60 deputados na Câmara dos Representantes, e a perda das suas maiorias nas duas câmaras.  

 

Depois da eleição de 8 de Novembro passado, os Democratas também perderam, desde o início do primeiro mandato de Obama, um total de 900 legisladores nos Congressos dos 50 estados. Os Republicanos têem agora domínio absoluto da maioria das legislaturas estaduais, e também uma ampla maioria dos governadores de estados - o domínio mais absoluto desde há quase um século.    

 

Com a vitória de Trump, o partido Republicano completa, pela primeira vez desde 1922, a perfeita “trifecta” federal, com domínio simultâneo do executivo, legislativo e judicial (este último quando Trump obtiver aprovação, pelo Senado, do juiz do Supremo Tribunal que irá nomear para o lugar deixado vago pelo falecimento de Antonin Scalia em Fevereiro passado). 

 

No plano interno, é o rescaldo político de fracassos como a imposição do impopular Obamacare, de oito anos de estagnação económica resultante das políticas anti-crescimento da administração Obama, e do consequente retrocesso dos rendimentos das famílias americanas. Obama é o primeiro presidente desde o pós-guerra durante cujo mandato o PIB não teve um só ano com crescimento superior a três por cento. Façanha a que pode somar outra: a república levou 233 anos a acumular uma dívida pública de cerca de 8,5 triliões de dólares até 2009; Obama conseguiu duplicá-la para mais de 17 triliões em apenas oito anos. 

 

No plano externo, contribuiram para o desastre eleitoral dos Democratas os sinais irresolutos e contraditórios de Obama na crise síria em curso há cinco anos, que possibilitaram à Rússia a conquista de um papel de destaque no Médio Oriente que nunca tivera, e redundaram na maior migração e crise humanitária do pós-guerra, com reflexos na estabilidade da Europa, a braços com uma onda ininterrupta de refugiados, primeiro pelo portão grego, agora pelo italiano. 

 

Durante a sua campanha, Hillary procurou distanciar-se de Obama e marcar diferenças. O presidente, apostado em preservar o seu “legado”, insistiu em caracterizar Hillary como a sua continuadora, e interviu directamente na campanha, com frequentes participações nos comícios de Hillary, impossibilitando por completo a descolagem.

 

Não foi fácil, levou oito anos, mas Obama pode orgulhar-se de ter cumprido a sua promessa: transformou fundamentalmente a paisagem política americana, deixando no seu rasto, em Washington e no resto do país, um partido Democrático minoritário, desnorteado e desmoralizado.

 

Foi noticiado nos últimos dias que Obama adquiriu residência em Washington (ao contrário dos seus predecessores, que regressaram aos seus estados) e que declarou aos amigos que tenciona manter-se envolvido na política nacional. Tendo em conta o seu “palmarès”, os Republicanos só podem regozijar-se com a decisão.