A organização deste colóquio reveste-se, portanto, da maior actualidade e da maior pertinência.

Mas a insistência com que o tema do populismo é abordado no espaço público, faz-nos esquecer que essa forma de Governo ou de tentativa de o conquistar não é de hoje.

Tem história.

Não vale a pena sublinhá-lo, por ser do nosso conhecimento e por ter atingido duramente as gerações que precederam a nossa. Mas o certo é que o populismo esteve na base do desenvolvimento e consolidação do fascismo italiano e do nacional-socialismo alemão. Alimentou a ideologia franquista, em Espanha. Pairou ao de leve em Portugal já que, as características burocrático-administrativas da ditadura, impostas por um ditador sem carisma e avesso a grandes mobilizações colectivas, impediram, aqui, o seu efectivo enraizamento.

Lembremos, no entanto, os inúmeros casos de liderança populista que se verificaram na América Latina, em particular num país que nos é muito próximo: o Brasil. Só para referir percursores desse modelo de governação destaco: Getúlio Vargas, Presidente da República de 1930 a 1945; Adhemar de Barros, Governador de São Paulo, de 1947 a 1951; Jânio Quadros, Presidente da República de 31 de Janeiro a 25 de Agosto de 1961.


1. A modalidade clássica do populismo

São quatro, as características fundamentais deste populismo a que chamaremos clássico e que foi visto, na sua fase inicial, como um caminho autoritário para a modernidade; como um mecanismo susceptível de integrar politicamente indivíduos atomizados e, portanto, disponíveis para a adesão a estratégias de mobilização colectiva:

1ª característica - O conceito de povo enquanto categoria social soberana; enquanto entidade indiferenciada, aparentemente homogénea, una. Um povo enquanto construção simbólica não racionalizável mas passível de ser intuída ou apoditicamente aceite como um postulado. O povo. O povo que guarda para si as decisões quanto ao seu destino. Sem mediações. Sem delegações de poder, a não ser as que deposita nas mãos do seu líder.

2ª característica – Uma visão mística da competência do povo: o povo é que sabe.

3ª característica – O apelo ao povo feito por uma “personalidade autoritária” para utilizar um conceito trabalhado por Theodore Adorno. Apelo ao povo feito por um líder carismático, segundo a tipologia de Max Weber. Um líder – um Chefe - impregnado de um espírito de “missão”, de “vocação” e a quem se deve uma obediência cega. Uma obediência total.

4ª característica – A plasticidade dos pressupostos políticos e económicos sobre os quais assenta a liderança.

Insista-se neste quarto aspecto, isto é, na maleabilidade, na adaptabilidade dos modelos populistas, factor que os torna difíceis de classificar, genericamente, como sendo de direita ou de esquerda. Haverá, portanto, populismos de esquerda e populismos de direita, para usar taxinomias habituais.

Dois exemplos retirados de um artigo intitulado Populismo e Media: O Neopopulismo na América Latina, assinado por Sílvio Waisbord, sociólogo e professor na School and Public Affairs da Universidade George Washington:

Criado em 1929, o Partido Revolucionário Institucional do México (curiosa esta designação!) ocupou incessantemente a presidência da República até ao ano 2.000. Durante sete décadas, promoveu a reforma agrária; mais tarde tornou-se o partido arauto do industrialismo e, a partir do início da década de noventa, definiu, como pilares do desenvolvimento do país, o livre comércio e as privatizações, em particular das instituições financeiras.

Algo de semelhante ocorreu com o Partido Justicialista, da Argentina. Fundado por Juan Domingo Péron, Presidente da República de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974, assumiu-se, primeiramente, como um partido defensor dos pobres, dos “descamisados”. Para isso, reforçou os poderes do Estado e pôs em prática uma política de distribuição dos rendimentos protegendo ostensivamente os mais desfavorecidos. A partir dos anos noventa, os seus sucessores, que se reclamavam do peronismo, tornaram-se os mais ardentes defensores de políticas neoliberais (facilitação dos despedimentos, cortes de salários e de pensões, redução drástica das despesas públicas) como único instrumento para salvar a Argentina da inflação galopante em que caíra.


2. Do populismo clássico ao neo-populismo

A crise das formas tradicionais de representação e de participação política, aliada à nova centralidade dos media, alteraram as características do modelo clássico de populismo. Autores como Pierre-André Taguieff, localizam, nos anos oitenta do século passado, a emergência do que designam por neo-populismo.

Um neo-populismo cuja primeira versão é materializada por dirigentes políticos como Jean-Marie Le Pen, em França, e Margaret Thatcher, na Grande-Bretanha. Um neo-populismo que conhece versões diferentes, porque gerado em circunstâncias diferentes, na América Latina, na Europa Ocidental e na Europa de Leste.

Na América Latina, o florescimento do neo-populismo está associado à ineficácia política, à má administração pública, à estagnação legislativa, à corrupção - sobretudo dos dirigentes políticos e judiciais - aos elevados índices de criminalidade, à guerrilha urbana, ao deficiente desempenho económico com crises monetárias em cascata e com a concentração do rendimento numa classe social cada vez mais rica e mais ostentatória.

Na Europa de leste, os casos mais visíveis de neo-populismo exprimem a manutenção e, mesmo, a consolidação de mecanismos herdados do antigo regime soviético – das restrições à liberdade de expressão, ao modo de governação e à gestão empresarial – mecanismos que a queda do muro de Berlim, na noite de 9 de Novembro de 1989, não sepultou.

Na Europa ocidental o neo-populismo surge como resposta desesperada à globalização, à deslocalização das unidades produtivas e aos fluxos de população em busca de melhores condições de vida ou em fuga de conflitos armados, arrasadores e intermináveis. Surge como resposta às promessas não cumpridas de Maastricht, de Schengen, de Amsterdão, de Lisboa. Surge como resposta aos atentados terroristas que acontecem em qualquer lado e a qualquer hora, atingindo, indiscriminadamente, quem se encontrar nesse lugar e a essa hora. Deste caldo, complexo e contraditório, emerge a xenofobia, o fundamentalismo religioso, o separatismo étnico. Em síntese: o culto da identidade nacional.     

Relativamente ao populismo clássico, o neo-populismo apresenta, no entanto, diversas alterações, nomeadamente:

  1. Quanto às formas de mobilização popular;

  2. Quanto às características das lideranças;

  3. Quanto ao discurso praticado.


2. a. novos contextos sociais

Vejamos, em primeiro lugar, as alterações que se produzem ao nível da mobilização popular. O populismo desenvolve-se, agora, já não no contexto de uma sociedade de massas disponível para se juntar em redor do seu líder, mais pela emoção, é certo, do que pela argumentação. O populismo desenvolve-se, antes, face a uma população apática, descrente seja em quem for, desinteressada dos assuntos de natureza pública, refugiada em si mesma de um perigo que julga iminente. O individualismo e o privatismo reinantes, são o reverso de todo e qualquer espírito de solidariedade, de comunidade.

Mas, a par desta maioria silenciosa, o populismo terá de contar, também, com grupos minoritários, conscientes dos objectivos que pretendem atingir e dos métodos para o conseguir. Pequenos grupos que actuam em rede corporizando, assim, um fenómeno social a que Massimo Di Felice chama “netativismo”. Pequenos grupos que, em função das opções que partilharem, podem funcionar como molas de um neo-populismo em expansão ou, inversamente, como os seus principais detractores.


2. b. fragilidade das lideranças

Em segundo lugar, analisemos as características das novas lideranças. O líder neo-populista já não possui o carisma do líder populista anterior. É verdade que existem sempre excepções como a de Hugo Chávez que, eleito em 1998, governará a Venezuela até à sua morte, em 2013. Como a de Fidel de Castro que só abandonará o poder quando está, fisicamente, incapaz de o conservar. Eis os dois últimos líderes carismáticos do nosso tempo. Líderes carismáticos que perduram, ao ponto de nomearem eles próprios os seus sucessores – uma das propriedades mais raras e mais destacadas por Max Weber.

Excepções á parte, os líderes neo-populistas duram enquanto duram as circunstâncias que os levaram ao poder. Duram enquanto dura o programa, eventualmente de ruptura, com que se apresentaram ao eleitorado. Duram, enquanto dura o apoio que recebem dos media, sobretudo da televisão. E este apoio, dos media, é função da popularidade de que desfrutam. Hoje são adulados. Amanhã serão personagens indesejáveis que importará afastar.

Alan Garcia, do Peru, fundador da Aliança Popular Revolucionária Americana, foi saudado, como um herói, no início da sua governação. Envolvido em escândalos financeiros, denunciados pelos media, terminou o seu mandato, em 1990, sem brilho nem glória, em 1990. Mais abrupto, ainda, foi o trajecto descrito por outro peruano, Alberto Fujimori: glorificado por ter destruído a guerrilha de inspiração maoista – o Sendero Luminoso – foi acusado de corrupção e de violação dos direitos humanos (teria ordenado a esterilização forçada de mais de 300.000 peruanas, a maior parte das quais indígenas). Em 2.000 fugiu para o Japão, terra dos seus antepassados. Entregou-se às autoridades peruanas em 2007, tendo sido condenado a seis anos de prisão.

Outro político que granjeou enorme entusiasmo popular, Fernando Collor de Melo: envolvido em casos fraudulentos que fizeram, igualmente, as delícias dos media brasileiros, renunciou à presidência da República do Brasil, em 1992, antecipando-se, assim, à condenação, no âmbito de um processo de impeachment que lhe foi movido pela Câmara dos Deputados.

Na Sérvia, Slobodan Milosevic, líder incontestado do Partido Socialista sérvio, passeou em triunfo pelas ruas e praças de Belgrado. Alterada a relação de forças, na antiga Jugoslávia, foi preso e acusado de genocídio, de limpeza étnica e de assassinato de dirigentes da oposição. Julgado pelo Tribunal Internacional de Haia, não chegou a ser sentenciado. Terminou os seus dias, em 2006, quando aguardava a condenação na cela de uma prisão reservada a Criminosos de Guerra.

Abordemos, por fim, o terceiro factor distintivo do neo-populismo. Refiro-me ao discurso praticado.


2. c. individuação da representação mediática

No neo-populismo, reforçam-se, discursivamente, os traços já observados no populismo clássico, isto é, a oposição entre povo autêntico e cosmopolitismo; entre sabedoria popular e saber das elites; entre cultura popular e alta cultura. Reforça-se o discurso apologético do senso comum. Endeusa-se o conceito de nacionalismo e da sua metamorfose discursiva – a Nação.

Criam-se factos alternativos em substituição da realidade vivida. É que, Donald Trump não inovou nesta matéria. Na Grande Bretanha, por exemplo, o jornal Daily Mail publicou, uma semana antes do referendo sobre a União Europeia, uma foto de imigrantes pendurados nas traseiras de um camião com o título: Vimos da Europa, deixem-nos entrar. Posteriormente, veio a saber-se que a foto, em questão, não era mais do que uma montagem com o intuito de atemorizar o votante. De o convencer de que a Grande Bretanha estava a ser invadida por hordas de africanos concentrados em Calais, junto à outra margem do Canal da Mancha. Cerca de oito décadas antes, a propaganda nazi anunciava uma conspiração mundial judaica preparando, assim, a opinião pública para o genocídio que viria a realizar-se e que Annah Arendt denunciou no seu livro La Nature du Totalitarisme.

Recorre-se a dados estatísticos supostamente objectivos. Recorre-se a múltiplas reportagens e documentários numa tentativa de atestar da veracidade do “dito”, como assinala Jean-Marie Domenach num livrinho traduzido para português e editado em 1975 com o título A Propaganda Política.

Usam-se as técnicas mais elaboradas do marketing pessoal em que o líder, ou o candidato a líder, é, como diz  Pierre-André Taguieff em L’Illusion Populiste, “o homem de todas as promessas que aponta, idealmente, para todos os públicos” 

Para Ernesto Laclau, um dos maiores teóricos do neo-populismo, sociólogo e filósofo argentino, de formação gramsciana que exerceu até à sua morte, em 2014, as funções de professor emérito da universidade de Essex onde leccionava a disciplina de Ideologia e Análises do Discurso, o discurso neo-populista é a “articulação discursiva de uma visão sintética e antagonista do povo contra os poderes estabelecidos”.

Só que, despojados de carisma e sujeitos às regras impostas pelo mundo dos media, os novos líderes vêem-se compelidos a mudar de postura. No populismo clássico o poder político dominava, manipulava os media a seu bel-prazer. Os media constituíam o suporte dócil ou domesticado do poder ou de quem o exercia. No neo-populismo a relação inverte-se. Inverte-se, pela multiplicação de canais de televisão pública e comercial que estabelecem, entre si, relações de concorrência, frequentemente sem limites éticos nem deontológicos e apoiados em grupos financeiros cujos interesses nem sempre coincidem com os do Governo. Inverte-se pelo desenvolvimento das novas tecnologias de informação e de comunicação que deram origem a redes sociais cada vez mais densas, cada vez mais entrelaçadas. Logo, cada vez mais dificilmente controláveis.

Neste mundo dos media, afirma o investigador francês Patrick Charaudeau, assiste-se “à aproximação entre a esfera política e a esfera civil. O discurso político passa a englobar o discurso da vida privada”. O dirigente neo-populista tenta apresentar-se como uma réplica do homem comum. Como um de nós. Com os mesmos problemas. Com igual forma de viver. De se divertir. É vê-los em talk-shows. É vê-los em programas humorísticos, procurando desenvencilhar-se, o melhor possível, do incómodo entrevistador. É o dirigente político envolvido num espectáculo, enquanto actor desse mesmo espectáculo. É Beppe Grillo, do Movimento 5 estrelas e Berlusconi, da Força Itália, agindo no mesmo plano, ao mesmo nível: o primeiro como comediante que é; o segundo não enjeitando a ocasião de o ser. Pierre-André Taguieff alcunha-os de “demagogos telepopulistas”.

São personagens como estas que protagonizam uma nova ecologia da comunicação televisiva: o infotainment, tema de uma tese de doutoramento actualmente em curso no ISCTE.

Tal individuação da representação política, enquanto nova lógica mediática, agrada muito especialmente à televisão que lida melhor com a imagem do homem ou da mulher que fala. Que diz. Que desafia. Que ousa. Agrada mais à televisão que explora, assim, o sensacional, o insólito, na procura incessante das mais elevadas audiências.

A campanha para as eleições presidenciais de Marcelo Rebelo de Sousa é um exemplo perfeito desta individuação da comunicação mediática. Nada de longas caravanas de automóveis. Nada de gigantescos comícios. Apenas ele. Ou melhor: ele e o motorista de táxi, seu amigo, que o conduz pelas estradas do país. Ele que toma o pequeno-almoço no café do bairro. Como todos os dias. Ele que entra, desenvolto, na Sede de campanha do candidato rival. Ele que beija. Que abraça. Que cumprimenta. Sempre com o mesmo sorriso que lhe ilumina o rosto. Sorriso e rosto avidamente captados pela atenta câmara de televisão que, embora discretamente, não o larga, nem por um minuto.

A cara que se mostra na TV é a narrativa metonímica do acontecimento que dispensa, assim, uma abordagem plural e aprofundada. A antropomorfização do acontecimento simplifica-o. Banaliza-o.

Decididamente, o neo-populismo constitui um dos principais dinamizadores da cultura tablóide.


       


Comunicação apresentada num Colóquio que teve lugar no dia 19 de Abril de 2017, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Organização conjunta do Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação dessa Faculdade e da Associação de Estudos Comunicação e Jornalismo (AECJ).