«O senhor não me mace!»
Como comecei por dizer, passei os dias das cerimónias fúnebres em casa a fazer zapping entre os vários canais de informação, e nunca vi a repetição destas imagens (ou semelhantes), que, no entanto, encheram as nossas televisões em finais de 2014 e princípios de 2015. Não estou a dizer que nenhum canal repetiu estas imagens agora - estou a dizer que eu pelo menos não as vi. Se, de facto, não as passaram, ainda bem. Significa que os responsáveis pelas televisões tiveram um assomo de consciência... Porque, a meu ver, elas nunca deveriam ter ido para o ar, pelo menos assim, em bruto e em directo, sem qualquer espécie de edição jornalística. E porquê? Porque era evidente - para os repórteres que o “assaltaram”, para os editores e diretores dos jornais online, das rádios e televisões, para toda a gente minimamente informada, - era evidente, repito, que Mário Soares já não estava bem. Todos sabíamos que estivera internado em janeiro de 2013. Que tivera uma gravíssima encefalite, de que nunca recuperou. Quando saiu do hospital passou a andar na companhia de uma enfermeira. Bastava falar com ele um ou dois minutos para se perceber - e estou a medir as palavras - que deixara de estar no pleno domínio de algumas das suas faculdades, que o seu discurso deixara de ter filtros. Todas as redacções sabiam disso.
No entanto, quando ele decidiu ir à cadeia ver Sócrates, os media transformaram essas visitas num autêntico festim. Portámo-nos que nem abutres, como este e muitos outros vídeos que estão no YouTube documentam e nos deviam, a todos, fazer corar de vergonha. Não apenas os repórteres que o interrogaram, mas sobretudo os editores e as chefias que os escalaram e instruíram, e os diretores que decidiram meter no ar, sem mais, esta e outras peças idênticas. Ao ver isto, eu tenho vergonha. Vergonha de ser jornalista. Não é agora que o digo, no rescaldo da morte de Soares. Já o disse várias vezes e em público, designadamente em abril passado, numa sessão de homenagem ao Oscar Mascarenhas. E que falta ele nos faz, para zurzir forte e feio, como só ele era capaz de fazer, sobre este tipo de comportamentos.
A simples decência recomendaria que não se tivesse feito assim. E se acaso houvesse dúvidas, bastaria dar uma olhadela a qualquer código de conduta ou livro de estilo. A começar pelo nosso próprio Código Deontológico. Não apenas no seu espírito, mas na própria letra. Veja-se o artigo 7º: O jornalista "deve proibir-se de humilhar as pessoas". Leia-se também o número 9: "O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos". Mais claro ainda, no mesmo artigo: "O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade (…) das pessoas envolvidas."
Sei bem que a visita de um ex-Presidente da República a um ex-primeiro-ministro preso preventivamente por suspeita de corrupção (ou de qualquer outro crime), é notícia, e até manchete, em qualquer país onde haja liberdade de informação. Então se é notícia, há que a dar. E como a dar? A solução é muito simples: editar, editar, editar, que é um trabalho que parece haver cada vez menos nos nossos média, onde o que mais importa é ser o primeiro a dar a notícia, mesmo que à margem das regras mais elementares.
O que mais impressiona - e nos deve, repito, envergonhar - é que o próprio Mário Soares também ia tendo a noção das suas crescentes debilidades e limitações. Consciente ou inconscientemente, ele próprio apontou a solução ou o caminho ao jornalista que o abordou. Como se pode ver neste outro curtíssimo vídeo, sobre uma das suas várias incursões a Évora.
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"O senhor não me mace!", diz Soares. Diz, não - pede. Com uma enorme dignidade. Ao jornalista cabe perceber que, quem assim fala não é o ex-Presidente da República, é, muito mais, um homem vergado ao peso dos seus 90 anos e da óbvia doença, e que tem todo o direito de pedir para não ser incomodado, que o deixem em paz, que tenham um pouco de dó... Só que os media não quiseram respeitar o apelo de Soares: "não me macem". Nem os recados, ou avisos, ou sugestões que os filhos, amigos e colaboradores foram fazendo chegar às redacções. Dominados pela lógica desumana da concorrência, vergados à ditadura do directo, apanhados no ciclo infernal da informação-espectáculo, sujeitos à pressão dos cliques, dos likes, das visualizações e das audiências, os media não quiseram saber de conceitos “ultrapassados” como o decoro, o respeito, o bom senso ou a decência. Ignoraram algumas das regras básicas da ética profissional. E Soares continuou, durante semanas e meses, a ser uma espécie de bobo da festa.
Neste caso, como em muitos outros do quotidiano jornalístico, a solução está em editar. De forma séria e responsável. Ou, como se lê no nosso código, com "honestidade" e "sem sensacionalismo". Será assim tão difícil?
Caramba: ser jornalista não é ser um simples pé de microfone ou de câmara de vídeo ou de telemóvel. Como também não é escrever o primeiro comentário ou reação que nos vem à cabeça no Facebook, no Twitter ou noutra rede social. Sejamos jornalistas. Regressemos ao jornalismo, seja qual for a plataforma que utilizemos. E ser jornalista continua a ser, antes de mais, mediar entre os acontecimentos que testemunhamos ou investigamos, e o público. Tirando ao máximo partido dos fabulosos instrumentos tecnológicos que temos à nossa disposição - de rapidez, proximidade, interacção -, mas nunca deixando de cumprir os princípios sagrados desta profissão maravilhosa e que, acredito, são eternos. Estarei a ser ingénuo? Provavelmente. Mas deixem-me ser ingénuo...
Tal como aconteceu nos anteriores congressos - e participei em todos eles -, a deontologia ocupa o centro dos nossos debates. Já há 19 anos, quando tive a honra de presidir à comissão organizadora do 3º Congresso, afirmei que o nosso código tem omissões importantes - inevitáveis, dado o contexto em que foi feito, debatido e aprovado em 1993. Que tem imperfeições, como a de não prever sanções. Que o Conselho Deontológico não pode nem deve ser um órgão do sindicato, mas sim de todos os jornalistas, sindicalizados ou não. Que a auto-regulação é absolutamente indispensável, a não ser que aceitemos que outros nos regulem. O congresso de 1998 aprovou uma série de sugestões e recomendações, que infelizmente as organizações de jornalistas ignoraram. Uma delas era a "criação de um organismo auto-regulador, uma espécie de Conselho de Ética".
E é de auto-regulação que estamos a falar, quando há um entendimento tácito e generalizado, em como não se mostram as imagens mais macabras disponibilizadas pelos loucos do Daesh. Ou, como aconteceu no funeral de Mário Soares, quando não foram exibidas imagens do caixão aberto. Ou quando, há um bom par de anos, houve um acordo entre os principais canais de televisão portugueses, de reduzir a um mínimo estritamente necessário as imagens dos devastadores incêndios florestais de Verão. Em Agosto ultimo, quando o país voltou a arder, muitas vezes me perguntei porque razão não foi retomado esse acordo. Os pirómanos, como se viu, agradeceram.
Não tenhamos dúvidas. Na caótica floresta mediática, acredito que haverá sempre lugar para o verdadeiro jornalismo. Que nada tem a ver com o tom geral das redes sociais, marcadas, como se tem visto, por campanhas de toda a espécie, e pelo anonimato como forma de destilar o ódio, a inveja, o obscurantismo e a mentira - ou a "pós-verdade".
"Não me macem!", foi um dos últimos apelos de Mário Soares aos jornalistas. Nós, que tanto lhe devemos, como um dos construtores do regime democrático, mas que também tivemos com ele uma relação extremamente conflituosa quando foi primeiro-ministro, deveríamos ponderar seriamente neste seu apelo. Que mais não é que um apelo a uma informação norteada pelos limites do bom senso e da decência.
(Comunicação de José Pedro Castanheira para o 4º Congresso dos Jornalistas, lida por Adelino Gomes)