O Les Échos de 4 de Março, em artigo de Dominique Moïsi, não lhe fica atrás: “Impensable. L’entrée d’un Berlusconi made in US à la Maison Blanche est désormais envisageable”, proclama a abrir. Para o autor, Trump é “un super macho, vulgaire, sexiste et presque caricatural (…) une anomalie, un dérapage, sinon une dérive mortelle de la démocratie américaine (…) certains vont même jusqu’à faire référence à Adolphe Hitler.” E remata: “L’élection de Donald Trump à la présidence des États-Unis marquerait une coupure brutale dans l’histoire des États-Unis et au delà du monde.”


Na América, devido à profunda clivagem que Trump desencadeou no seio do partido republicano, ele tem sido visto sobretudo como uma ameaça para o partido, e especialmente para o seu “establishment” tradicional, que encontra em Trump mais características de democrata do que de republicano, como a sua aversão à globalização e o seu apoio a medidas proteccionistas em comércio externo.  

Ou seja, uma dor de cabeça para os republicanos, benvinda para o partido democrata e para os seus simpatizantes, predominantes na imprensa americana, que encaram com esperança mal-disfarçada a ascensão de Trump - o candidato menos difícil de derrotar por Hillary em Novembro. (A maioria das sondagens continua a indicar que Trump perderia contra a Hillary, e 27 por cento dos eleitores republicanos dizem que se a escolha em Novembro fôr entre Trum e Hillary, preferem votar nesta.)  


Trump talvez fosse também o candidato republicano que levaria mais eleitores independentes a votar por candidatos democratas, na renovação de um terço dos lugares no Congresso, que estarão em jogo na mesma eleição. (Para os empenhados no movimento “Stop  Trump”, a segunda melhor opção, se não for possível impedir que ele seja eleito presidente, é impedi-lo de governar, através de um Congresso obstrucionista de maioria democrata.)    


A profunda cisão no partido republicano, causada por Trump, tem vindo a acentuar-se e atingiu o rubro há dias com um discurso arrasador anti-Trump de Mitt Romney (candidato republicano às últimas presidenciais, em 2012, e ex-governador do Massachusetts), logo seguido de outra declaração anti-Trump, não menos contundente, do senador John McCain, candidato republicano às presidenciais anteriores, em 2008. Ambos apelaram à rejeição de Trump pelos eleitores republicanos nas 41 primárias que restavam nessa data.

 

Além da diferença de tom entre os media europeus e americanos, menos estridente no caso dos segundos, outra divergência entre os dois lados tem estado na atribuição de responsabilidades pela ascensão de Trump: na Europa, o diabólico candidato é o único mau da fita, enquanto na América  a  fatia de leão da culpa é  frequentemente atribuída aos seus fãs, que são caracterizados, mas não desculpados, como menos instruídos e mais ignorantes,  económicamente mais desfavorecidos, mais zangados com o status quo e mais predispostos a uma vassourada radical, do que a maioria dos eleitores republicanos.

 

Numa coluna no The New York Times de 5 de Março, intitulada “A Besta Somos Nós”, Timothy Egan não perdoa: “É tempo de culpar quem deve ser culpado - o povo. Sim, vocês. Os apoiantes de Trump sabem exactamente o que ele representa.”   

A avaliação das possibilidades de Trump de conseguir a nomeação republicana é outra das diferenças entre a perspectiva europeia e a americana. Para muitos comentadores europeus, é um caso arrumado, enquanto os seus colegas americanos a encaram como uma possibilidade, até mesmo uma probabilidade, mas não uma certeza. Mais detalhes àcerca desta importante diferença, mais adiante.


A estas divergências prismáticas entre as duas margens do nosso oceano comum há que acrescentar a natural alegria que os “ratings” da cobertura de Trump trazem às estações americanas de TV - um maná dos deuses que tem multiplicado as audiências, sobretudo das estações noticiosas, mas que pouco ou nada tem beneficiado as estações europeias.


A diferença no grau de alarme com que o fenómeno Trump é encarado por comentadores europeus e americanos é em larga medida o reflexo da profunda diferença entre as experiências históricas e institucionais das duas culturas.


Desde a sua fundação há quase dois séculos e meio, os E.U.A. nunca conheceram um ditador, um coup d'état ou um golpe militar, ou qualquer suspensão no funcionamenro das instituições democráticas da república. Mesmo durante os quatro anos da guerra civil (1861-1865), que causou a morte de mais de 700 mil combatentes entre as forças do Norte e do Sul, o Congresso continuou em exercício, eleições legislativas continuaram a realizar-se, e o presidente Lincoln foi reeleito em plena guerra, em Novembro de 1864, embora a eleição só tenha incluído os 25 estados da União, por impossibilidade de realização nos 11 estados secessionistas.  


As nove sucessões presidenciais provocadas pela morte de presidentes em exercício, entre 1841 e 1963, foram todas rápidamente resolvidas de acordo com a constituição, sem crises nem interrupções na continuidade do executivo.    


Além disso, para jornalistas americanos, a censura prévia praticada por todos os regimes autocráticos é uma figura de retórica de que nunca tiveram experiência directa. Desde 1791, quando os 10 artigos da “Bill of Rights” foram acrescentados aos sete artigos originais da constituição americana, o livre exercício do jornalismo tem estado protegido pelo First Amendment, que consagrou de forma engenhosa a liberdade de religião, de expressão e de imprensa, proibindo simplesmente o Congresso de legislar sobre essas matérias.


A prática do jornalismo nos Estados Unidos não está, nunca esteve, sequer limitada a posuidores de carteira profissional ou de qualquer outro documento restritivo equivalente, emitido por um organismo governamental ou associativo. Isto porque os jornalistas americanos têm sido unânimes em entender que tais documentos podem ser cavalos de Tróia para o controle do acesso à actividade pelo governo ou por associações proteccionistas, de profissionais da comunicação social, por exemplo através de quotas ou sob o pretexto de qualificações mínimas.


Para eles, o First Amendment - e a sua defesa, repetidamente confirmada por sentenças judiciais, até ao Supremo Tribunal, sempre que posto em causa - é a melhor garantia da liberdade de expressão e de imprensa, no mesmo plano que outros supremos “direitos inalienáveis” como o direito à vida, que dispensam comprovativo para serem exercidos.      


A experiência europeia, porém, é muito diferente. Numerosos jornalistas ainda em exercício, em países que só em decénios recentes deixaram de ser autocracias repressivas, conservam uma recordação vívida desses tempos, uma noção clara da fragilidade das liberdades nas democracias incipientes onde agora vivem, e um receio justificado da perda das mesmas em mais uma das reviravoltas políticas em que os seus países têm sido pródigos ao longo da história.

 

A liberdade de imprensa só chegou a Portugal e à Grécia há 42 anos, a Espanha há 38, à Roménia há 27, e aos países bálticos, Eslovénia, Eslováquia e República Checa entre 1990 e 1995, com a independência dos mesmos, 


Vários países europeus, incluindo membros da UE como a Bulgária, Croácia  e Hungria, ainda hoje não conseguem sequer classificar-se nas três primeiras categorias de países com imprensa menos reprimida, no índice da Reporters Without Borders.


Mesmo em França, Alemanha e Itália, os jornalistas em actividade pertencem apenas à primeira ou segunda geração posterior aos regimes autocráticos de Vichy, nacional-socialista ou fascista. Dos grandes países europeus, a Grã-Bretanha é o único cuja classe jornalística não sofre na sua memória institucional da lembrança de censura prévia, excepto em tempo de guerra para textos sobre operações militares.


É natural, por consequência, que uma grande parte dos jornalistas europeus avaliem a ascensão de Trump, e as suas declarações bombásticas, pelo prisma de um continente onde Slobodan Milosevic morreu há escassos 10 anos, depois de ter desencadeado, entre outras calamidades, o cerco de Sarajevo por tropas sérvias, que terminara apenas 10 anos antes, após quatro anos de assédio e 14 mil mortos; onde Lukashenko, Orbán,  Putin (depois de invadir um país vizinho europeu e de anexar pelas armas parte do seu território) e Recep Erdogan (cujo governo acaba de ocupar, em Istambul, o jornal mais lido da Turquia, Zaman, e de substituir os seus quadros por sicários do partido governamental) continuam a ir ao escritório e a assinar decretos; onde ex-cidadãos da república de Pankow continuam a descobrir e a estudar os dossiers que a Stasi compilou àcerca deles; e onde ainda há menos de quatro anos, François Hollande pediu desculpa, em cerimónia pública, pelo “crime cometido em França, pela França”, contra os 13 mil cidadãos judeus franceses arrebanhados em Julho de 1942 pela polícia parisiense no Vélodrome d'Hiver, e deportados para Auschwitz, alguns dos quais ainda vivos - episódio vergonhoso que a imprensa francesa varreu durante decénios para debaixo do tapete, muito depois de poder livremente divulgá-lo.   

 

Vistas as coisas a essa luz, é natural que alguns jornalistas europeus receiem que uma versão americana da Kristallnacht e outros atropelos aos direitos humanos se sigam à temida investidura de um presidente Trump, embora não conste que o candidato já tenha encomendado quantidades bastantes de camisas castanhas e botas altas para equipar os seus destacamentos de Sturmabteilungen e respectivos Gauleiter.


A maioria dos jornalistas e comentadores americanos está também apreensiva, mas menos vocífera, porque tem menos razões para o ser: entre 43 presidentes em 240 anos, nenhum conseguiu produzir uma calamidade nacional ou desastre económico, ou desencadear um clima de repressão das liberdades civis. O sistema de “checks and balances” concebido pelos criadores da constituição não dá ao presidente poderes suficientes para causar grandes estragos ao país, o que constitui  um factor tranquilizante.


As maiores calamidades sofridas pela nação, depois das duas guerras da independência (entre 1775 e 1815) e da guerra civil de 1861-65, foram ou guerras longínquas em que a América foi participante tardia - desencadeadas na sua maioria por agressores estrangeiros, como a 1ª e 2ª guerras mundiais e a guerra da Coreia - ou ataques em território americano também perpetrados por actores externos, como o de Pearl Harbor em 1941 e o 11 de Setembro de 2001.    


Por outro lado, o “homem mais perigoso do mundo”, se eleito presidente, faria o “check-in” na Casa Branca com a maior bagagem de desconfiança de qualquer novo presidente, e muito provávelmente, com a mais reduzida margem de manobra de qualquer presidente à partida. Difícilmente beneficiaria sequer de uma curta “honeymoon” - o período de “photo-opps” sorridentes com os líderes do Congresso que se segue à tomada de posse, destinadas a criar uma impressão positiva sobre as possibilidades de colaboração entre os inquilinos das duas pontas de Pennsylvania Avenue.

 

Um presidente Trump teria previsívelmente ainda menos êxito em concretizar as ideias excêntricas e chocantes que tem verbalizado, do que Obama tem tido desde que os democratas perderam o controle do Congresso;  e um possível desfecho, após quadro anos frustantes para Trump, seria não se recandidatar e voltar a entreter-se com os seus projectos imobiliários.       


Quanto à impressão de inevitabilidade do triunfo de Trump que se desprende dos textos de muitos comentadores europeus, isso deve-se indubitávelmente à relativa complexidade das eleições primárias americanas, que se prolongam por cinco meses, e que podem fácilmente levar a conclusões prematuras nas suas fases iniciais. 

 

Para garantir a nomeação como candidato do partido republicano às presidenciais de Novembro, o vencedor necessita de um mínimo de metade-mais-um dos 2.472 delegados ao congresso do partido em Julho, ou seja, 1.237 delegados. Os delegados são atribuídos aos candidatos ao longo de 56 eleições primárias entre Fevereiro e Junho (há mais primárias do que os 50 estados, porque algumas correspondem a territórios como American Samoa, distrito de Columbia, Guam, Northern Marianas, Porto Rico e Virgin Islands, que não são estados).  

 

Mesmo com acesso a sondagens sofisticadas e fidedignas, não é fácil prever a conquista de delegados em eleições que medeiam 22 semanas entre as primeiras e as últimas. As intenções de voto dos eleitores estão sujeitas a debates, comícios, entrevistas, ataques de concorrentes, anúncios negativos na TV e um constante caudal de revelações e informações acerca dos candidatos, e por isso sofrem flutuações, especialmente entre os independentes.

 

Além disso, até as regras de apuramento de delegados variam entre primárias. Por exemplo, nas eleições conhecidas por “winner take all” ou “winner take most”, o vencedor conquista todos ou quase todos os delegados dessas primárias, enquanto noutras os delegados são atribuídos proporcionalmente aos votos de cada candidato. Em algumas destas últimas, candidatos que não consigam uma percentagem mínima dos votos não têem sequer direito a qualquer delegado.                                                                               

Eis o que pode dizer-se ao certo, à data do fecho desta coluna (5 de Março), concluídas as primeiras 19 de 56 eleições primárias:

 

* Donald Trump, vencedor de 12 primárias e 2º classificado nas restantes sete, é o candidato que mais delegados conseguiu acumular (382). Esse total, porém, é menos de metade dos 949 delegados já atribuídos nessas eleições, e menos de um terço dos 1.237 delegados necessários para garantir a nomeação republicana no congresso do partido em Julho.  

 

* Os três opositores de Trump ainda em campo (Cruz, Rubio e Kasich) acumularam até agora 567 delegados, mais 185 (ou 48 por cento mais) do que Trump, porque este, embora o mais votado, foi escolhido, em média, por menos de 40 por cento dos eleitores. Ou seja, mais de 60 por cento desses eleitores, em média, escolheram um dos outros candidatos.

 

* Nas 17 primárias que se seguem, entre 6 e 22 de Março, estão em jogo mais 684 delegados, entre os quais 276 delegados de quatro estados “winner take all” ou “winner take most”, cujos resultados poderão alterar grandemente a actual repartição de delegados pelos  candidatos. Ainda assim, mesmo que Trump conseguisse conquistar todos esses 684 delegados em jogo até 22 de Março - o que é manifestamente impossível - ainda lhe faltariam 171 delegados para  os 1.237 de que necessita.

 

*  Em resumo, é matemáticamente inevitável que só durante as 20 primárias finais, entre Abril e Junho, fiquemos a saber se Trump vai atingir o número mínimo de delegados para garantir a nomeação antes do início do congresso republicano em 18 de Julho, em Cleveland.

 

A manter-se o mesmo ritmo de conquista de delegados das 19 primeiras eleições, Trump adicionaria, nas 37 primárias que restam, uns 609 delegados aos 382 de que já dispõe, atingindo portanto 991 delegados - ou seja, menos 246 do que precisa para garantir a nomeação. Claro que até lá a sua progressão tanto pode acelerar como abrandar, sobretudo em resultado das 14 primárias “winner take all” ou “winner take most” que começam a partir de 15 de Março, e que incluem alguns pesos-pesados como a Flórida (99 delegados), a Pennsylvania (71) e a Califórnia (172).     

 

A probabilidade de Trump não atingir os indispensáveis 1.237 delegados é cada vez mais mencionada, porque o seu lugar dianteiro é bastante menos sólido do que parece à primeira vista.


No Texas - o segundo estado mais populoso, onde acorreu à eleição de terça-feira passada o dobro dos eleitores da primária republicana de 2012 - Trump teve apenas 27 por cento dos votos, contra 44 por cento para Ted Cruz, e recebeu 25 por cento menos votos do que Romney em 2012. Além disso, perdeu na primária do Oklahoma, única das 11 realizadas na passada terça-feira em que só eleitores republicanos podiam votar, e perdeu duas das quatro eleições de 5 de Março.

 

Trump tem alegado que graças a ele, o número de eleitores que tem acorrido às primárias republicanas tem excedido largamente os números de há quatro anos, Por exemplo, a afluência de eleitores às 11 primárias de terça-feira passada foi 81 por cento mais alta do que em 2012 (8,5 milhões, comparados com 4,7 milhões há quatro anos), e em 14 das 15 primárias já concluídas, o número de votantes estabeleceu novos records absolutos.

 

São factos, mas também é provável que essas afluências record se devam ao grande número de eleitores empenhados em evitar que Trump consiga a nomeação, e que por isso fazem questão de votar num dos seus concorrentes. Esta tese parece ter algum fundamento, dado que, segundo uma sondagem da CNN, 74 por cento dos eleitores republicanos se declaram insatisfeitos se ele fosse nomeado.

 

O que acontece se nenhum candidato conseguir chegar aos 1.237 delegados? O cenário mais provável é uma "brokered convention", em que os delegados ficam livres do compromisso de votar pelos candidatos que representam, e podem votar por qualquer dos outros - e até mesmo por um candidato que não tenha concorrido às primárias ... por exemplo, Mitt Romney, Michael Bloomberg (ex-mayor de Nova Iorque, que declarou estar a ponderar candidatar-se) ou Paul Ryan, "speaker" da Câmara dos Representantes, aquele que provávelmente reuniria mais fácilmente o consenso dos delegados. A mais recente "brokered convention" do partido republicano ocorreu em 1948, em que Thomas Dewey foi eleito para concorrer contra o democrata Harry Truman, e perdeu.

 

Do lado democrata não há suspense. A Hillary continua destacada na dianteira e já acumulou quase metade dos delegados de que precisa para garantir a nomeação, enquanto Sanders tem apenas um terço dos delegados de Hillary e uma candidatura sem futuro. Os eleitores democratas têem tratado as suas primárias com um grau de interesse na razão inversa dos republicanos, antes de voltarem a adormecer.