O crepúsculo dos deuses mediáticos americanos
Durante essas conferências de imprensa, o representante da Associated Press era sempre o primeiro apontado pelo porta-voz, e as primeiras perguntas seguintes sempre concedidas a outros jornalistas dos “mainstream media”.
Desde a investidura de Trump, numa clara manifestação da nova hierarquia mediática, as primeiras perguntas passaram quase sempre a ser concedidas por Spicer a representantes de órgãos digitais relativamente jovens, que ainda recentemente ou não existiam ou não tinham lugar sentado na sala, e que raramente tinham oportunidade de fazer uma pergunta.
É comum agora Spicer apontar primeiro para jornalistas de órgãos como o Independent Journal Review (site noticioso e de opinião fundado em 2012, propriedade do Media Group of America), LifeZette (site lançado há dois anos, parte do Ingraham Media Group), The Daily Signal (criado em 2014, associado à Heritage Foundation), The Hill (fundado em 1994, propriedade da News Communications), The Blaze (fundado em 2011), Breitbart News (fundado em 2007), Newsmax (lançado em 1998), Washington Examiner (fundado em 2005, parte do Clarity Media Group), The Daily Caller (fundado em 2010), etc. Além dos jornalistas presentes na sala, Spicer também tem possibilitado a intervenção por Skype de outros jornalistas, que aparecem em grandes monitores situados por detrás do porta-voz.
Se o leitor está algo familiarizado com os “mainstream media” americanos, mas não reconheceu qualquer das publicações acima - a cujos websites acorrem semanalmente, em conjunto, mais de 150 milhões de visitantes - não é caso para alarme. Está desfasado, ainda marca passo no mundo mediático americano do séc. XX , mas tem farta companhia - até na América! - especialmente se nasceu antes de 1970.
A revolução introduzida por Spicer, à semelhança da que o seu chefe trouxe para a classe política de Washington, deixou a velha guarda dos media históricos atordoada - e em muitos casos ressentida - e certamente contribui para o tom áspero de grande parte da cobertura de Trump por esses media, especialmente notório por parte das estações de TV tradicionais, como uma análise do Media Research Center (MRC) acaba de confirmar.
O estudo, divulgado em 2 de Março e intitulado “TV News vs. President Trump: The First 30 Days”, incidiu sobre os noticiários da ABC, CBS e NBC durante os dias úteis do primeiro mês após a tomada de posse de Trump, ou seja, entre 20 de Janeiro e 18 de Fevereiro. (A programação noticiosa ao sábado e domingo é diferente dos outros dias, por isso o estudo excluiu os fins de semana).
O relatório quantifica a “obsessão” (termo usado pelo MRC) das três estações pelo novo presidente: do tempo total de noticiário em horário nobre (“prime time newscasts”), mais de metade - 54 por cento, ou 16 horas de noticiário - foi dedicada a cobrir a nova administração Trump. Ou seja, durante esse período, toda a restante informação acerca do que aconteceu na América e no resto do mundo só mereceu 46 por cento do noticiário dessas estações em horário nobre.
Conclusão concordante com a de outra organização, a mediaQuant, segundo a qual Trump estabeleceu um novo recorde em Janeiro, ao conseguir cobertura grátis pelos media equivalente a 817 milhões de dólares em publicidade paga - o valor mais alto jamais alcançado por um indivíduo, nos registos da empresa. Hillary Clinton está em 2º lugar, com 430 milhões de dólares de publicidade gratuita, em Julho de 2016. Nos quatro anos anteriores a Janeiro, o valor da publicidade “oferecida” a Trump pelos media oscilou entre 200 e 500 milhões de dólares mensais, segundo a mediaQuant. “Obsessão” neste caso não é hipérbole.
Outra conclusão importante do estudo do MRC é a extraordinária animosidade com que o alvo dessa “obsessão” foi tratado pelas três estações: quase 90 por cento do conteúdo das 16 horas dedicadas a Trump e ao seu governo foram-lhe hostis, com 674 referências negativas contra 88 positivas. Para a maioria dos observadores e das audiências dessas estações, a hostilidade documentada pelo relatório do MRC não foi novidade; o que surpreendeu foi o seu grau de intensidade.
O desapontamento dos “mainstream media”, povoados maioritariamente por simpatizantes dos democratas, pelos resultados das eleições de Novembro passado, que deram aos republicanos o controlo completo de dois dos três órgãos máximos de soberania (Congresso e presidência) e em breve do terceiro – logo que o Senado confirme a nomeação do juiz federal Neil Gorsuch para o Supremo Tribunal - conjugado com a ameaça existencial que a proliferação de sites noticiosos digitais põe a esses media históricos, resultou na aceleração de um processo já antes em curso de alienação dos mesmos da opinião pública em geral, e veio também exacerbar a crise de credibilidade de que sofrem, cada vez mais patente.
Segundo a mais recente sondagem anual da Gallup dedicada à confiança dos americanos nos meios de comunicação (“Americans' Trust in the Mass Media”), divulgada em Setembro passado, menos de um terço dos respondentes (32 por cento) declarou ter “grande” ou “bastante” confiança que as notícias divulgadas por jornais, TV e rádio sejam “completas, exactas e equilibradas”.
É o mais baixo nível de confiança do público nos órgãos de comunicação desde a primeira sondagem da Gallup sobre o tema, há 45 anos, e repetida anualmente desde 1997. O nível mais alto foi atingido em 1976, com 72 por cento; embora com altos e baixos ao longo dos anos, esteve sempre acima dos 50 por cento até 2005. Nos dez anos seguintes ainda se manteve acima dos 40 por cento, embora em declínio contínuo.
A evolução dos resultados da sondagem ao longo dos anos, quando analisados por faixas etárias e segundo as tendências políticas dos respondentes, são especialmente reveladores.
Em dois períodos relativamente recentes (2002-04 e 2009-11), a diferença de confiança nos media entre respondentes acima e abaixo dos 50 anos de idade era quase inexistente, enquanto na última sondagem 38 por cento dos respondentes mais velhos declararam ter “grande” ou “bastante” confiança nos media (sete pontos abaixo do ano anterior), contra apenas 26 por cento entre os mais jovens (10 pontos abaixo do ano anterior).
A diferença no grau de confiança entre respondentes democratas, republicanos e independentes é ainda mais acentuada. Ao longo dos anos, os republicanos têm sido sempre os mais cépticos e os democratas os mais confiantes (51 por cento destes ainda tinham “grande” ou “bastante” confiança nos media na última sondagem), como seria de esperar, dado que a maioria da informação que consomem é produzida por jornalistas simpatizantes, como eles, dos democratas. Os independentes têm estado entre ambos, conquanto mais próximos dos republicanos.
É patente, porém, que o fosso de 37 pontos percentuais que separa os escassos 14 por cento de respondentes republicanos que confiam nos media, dos 51 por cento no caso dos democratas, é o mais profundo desde 2005, quando a diferença atingiu 39 pontos. Ainda em 2000, havia apenas uma diferença de seis pontos entre os dois grupos.
A baixa de confiança na última sondagem, em relação ao ano anterior, é comum aos três grupos, mas muito mais acentuada entre os republicanos (18 pontos menos do que no ano anterior) do que entre os democratas (quatro pontos menos) ou os independentes (três pontos menos, de 33 para 30 por cento).
Como se explica esta chocante perda de confiança nos órgãos responsáveis pela informação acerca do mundo em que o público americano vive, ou julga viver? A questão não interessa apenas aos mais de 750 mil trabalhadores que ganham a sua vida nas estações de TV, jornais e revistas, rádio e media digitais, segundo números do Departamento de Estatística do Trabalho (Bureau of Labor Statistics). É uma questão que afecta o funcionamento da América como sociedade democrática, onde a opinião dos cidadãos determina decisivamente a direcção do País e os consensos que tornam aceitáveis, para a maioria e para as minorias, as soluções políticas propostas para os grandes desafios.
Entre os comentadores que têm proposto explicações, Derek Thompson, na revista centro-esquerda The Atlantic, inseriu o fenómeno num panorama mais vasto, documentado em sondagens, de crescente descrença do público americano em instituições tradicionais como a Igreja, o sistema de saúde, as escolas, o sistema de justiça criminal, o Congresso, etc., à semelhança do que tem vindo a acontecer noutras democracias industriais desenvolvidas.
Mollie Hemingway, “senior editor” de The Federalist (revista digital conservadora), entrevistada em 3 de Janeiro no programa “Media Buzz” da Fox News Sunday, sobre como a imprensa pode reconquistar credibilidade depois da fracassada cobertura da eleição de 2016, sugeriu outra explicação: “Muitos jornalistas tentam provar uma tese em vez de reportarem os factos (…) Dizem às pessoas o que querem que elas pensem, em vez de ouvirem o que elas têm a dizer (…) Nenhum observador objectivo podia deixar de notar como a imprensa procurou ajudar Hillary, minimizando os seus escândalos e problemas, e amplificando dramaticamente coisas acerca de Trump com pouca importância para os eleitores. Depois da eleição, esperava que eles reflectissem e pensassem 'Como é que consegui estar tão enganado?' Mas nada mudou … têm simplesmente continuado a insistir no mesmo erro”.
Jonathan Ladd, professor de ciência política na Universidade de Georgetown (Washington, DC), colaborador de várias revistas da sua especialidade e autor do livro Why Americans Hate the Media and How it Matters, num artigo de Gretel Kauffman no jornal The Christian Science Monitor acerca deste tema, destacou a “crescente polarização dos partidos políticos” como outra das causas do problema, pelos seus “ataques à imprensa tradicional e encorajamento aos seus apoiantes para que usem fontes partidárias”.
No mesmo artigo, outro professor de ciência política, David Jones, da Universidade James Madison (Virginia), considerou que a proliferação de fontes noticiosas digitais, “algumas mais credíveis do que outras”, contribui para a impressão de que todos os media são suspeitos. Também citado no artigo, Jim Kuypers, professor de comunicação na universidade Virginia Tech, concordou com o papel negativo da polarização partidária dos jornalistas, alguns bem conhecidos. Segundo ele, “A confiança está relacionada com a percepção de objectividade transmitida pelos media. Confiança e imparcialidade sobem ou descem em paralelo.”
A vitória de Trump na eleição de Novembro passado não é responsável pela incongruência latente de uma imprensa e TV históricas, predominantemente de esquerda, a oferecer os seus serviços a um público muito mais centrista, mas veio acentuar o contraste e acelerar a procura, por parte desse público, de conteúdos noticiosos que correspondam melhor às suas prioridades e expectativas – mais fáceis de encontrar entre os novos media digitais.
Veio também expôr a dificuldade estrutural dos “mainstream media” em fazer o que é preciso para atrair o público que têm vindo a perder. Jornais, revistas e estações de TV esforçam-se de há muito por conseguir que a composição dos seus corpos redactoriais reflicta o mais possível a diversidade étnica e cultural da sociedade americana, mas nunca fizeram qualquer esforço para atenuar a uniformidade ideológica dos mesmos, antes pelo contrário: na maioria das redacções dos órgãos históricos, os raros jornalistas de tendência conservadora ou centrista sabem que devem guardar as suas opiniões para si próprios, sob pena de serem ostracizados pelos colegas. Na primeira oportunidade mudam-se para os novos media digitais, onde felizmente para eles a escolha é mais ampla.
A ascensão da nova administração Trump veio também tornar ainda mais patente a influência ideológica no tratamento do conteúdo noticioso por parte dos órgãos tradicionais. Alguns episódios recentes são especialmente significativos.
A suspensão temporária no processamento de vistos de entrada na América, anunciada em Janeiro, inicialmente aplicável a visitantes de sete países com populações predominantemente muçulmanas e inviabilizada por via judicial, e mais recentemente substituída por uma suspensão mais flexível, aplicável a seis países, foi consistentemente caracterizada pela imprensa tradicional como uma medida anti-muçulmana.
Nenhum desses órgãos procurou tornar claro que esses seis países representam uma população combinada de cerca de 175 milhões de pessoas e que os vistos para visitantes de outros 45 países com populações maioritariamente muçulmanas e um total combinado de mais de mil milhões de habitantes continuam processar-se normalmente.
Se o objectivo fosse impedir muçulmanos de entrar na América, porque razão teriam sido excluídos da suspensão temporária países como a Indonésia (205 milhões), o Paquistão (178 milhões), o Bangladesh (145 milhões), o Egipto e a Turquia (cerca de 75 milhões cada um), e uma dúzia de outros com populações superiores a 10 milhões cada um? Na realidade, a medida deveu-se à dificuldade em verificar as identidades de visitantes desses países, devido à paralisação ou destruição dos seus arquivos – casos do Iémen, Líbia, Síria, Somália e Sudão – e, no caso do Irão, à recusa do seu governo em prestar as informações necessárias ao processamento dos vistos.
A explicação era acessível a leitores interessados, mas mais fácil de encontrar nos media alternativos do que nos tradicionais. Estes últimos continuaram uniformemente a criticar a medida, por não ter havido até agora ataques terroristas na América perpetrados por cidadãos desses países, dado irrelevante para o caso.
A forma como foram apresentados os resultados de uma sondagem conjunta da NBC/Wall Street Journal acerca do desempenho da nova administração Trump, conduzida entre 18-22 de Fevereiro, constitui outro exemplo eloquente da razão porque grande parte do público não confia na imprensa tradicional.
Jornais como o The Washington Post destacaram resultados da sondagem especialmente negativos para o presidente como uma maior percentagem de respondentes que desaprovam o seu desempenho do que aprovam (48 contra 44 por cento) e uma maior percentagem que atribui aquilo que correu mal a erros do que a dificuldades inerentes ao arranque de uma nova administração.
Os resultados contêm, porém, outras conclusões que foram largamente ignoradas pela imprensa tradicional. Por exemplo, 53 por cento dos respondentes concordaram com a afirmação “Os media e outras elites exageram os problemas da administração Trump”, contra 45 por cento que discordaram; as mesmas margens de concordância e discordância ocorreram também na reacção à afirmação “Os media e outras elites exageram os problemas da administração Trump porque se sentem inconfortáveis e ameaçados pela mudança que Trump representa”; 77 por cento responderam afirmativamente à pergunta “Trump vai mudar o país?”, contra 21 por cento que discordaram; e mais significativamente, 48 por cento concordaram que a mudança será “para melhor”, contra 23 por cento que responderam “para pior”.
Para uma interpretação completa dos resultados da sondagem seria necessário a um leitor interessado, que não tivesse acesso ao relatório original na íntegra, consultar media online como Townhall, onde uma análise de Guy Benson lhe permitiria descobrir que 60 por cento dos respondentes se dizem “esperançados e optimistas” acerca da América, contra 40 por cento que se declaram “preocupados e pessimistas”; que os respondentes que esperam que a economia melhore durante o próximo ano superam em 20 pontos percentuais os que pensam que vai piorar, e que estes representam apenas um quinto dos respondentes; que 52 por cento confiam na liderança dos republicanos, contra 37 por cento que confiam mais nos democratas; e que o político mais impopular da América é Nancy Pelosi, líder da minoria democrata na Câmara dos Representantes. (Enquanto a diferença entre os que aprovam e desaprovam Trump é de quatro pontos percentuais em desfavor do presidente, no caso de Pelosi a diferença é de 25 pontos em seu desfavor).
Exemplos como estes, de segregação noticiosa ao sabor de preferências partidárias, dariam para encher um livro por dia, e são no entender deste comentador a razão principal da crise de credibilidade dos media tradicionais. Enquanto não existir entre os jornalistas desses órgãos uma massa crítica consciente do problema e da necessidade de restabelecer a imparcialidade, objectividade e equilíbrio noticioso que caracterizaram esses órgãos em outras eras, cada edição só aprofundará a cova que têm vindo a cavar para si próprios.