O 25 de Novembro e os Media
Em Abril de 74, caíra a Censura oficial – ou exame prévio – que fora uma das âncoras do regime derrubado pelo Movimento dos Capitães. Respirámos fundo e nós, jornalistas, descobrimos a volúpia de escrever sem mordaças.
Em Novembro de 75, muitos de nós voltámos a respirar fundo, depois de conhecermos, na prática, os mecanismos da nova censura imposta nas redacções pelos seguidores do PCP, zelosos vigilantes da ortodoxia editorial e persecutórios em relação àqueles que teimavam em não alinhar na doutrina que parecia dominante.
O ambiente na redacção do Diário Popular tornara-se irrespirável. E não era apenas por causa do tabaco, que se consumia, nervosamente, nas horas de ponta, até ao fecho da edição do jornal.
O predomínio dos jornalistas filiados - ou dos cristãos-novos - aparecidos à pressa no PCP (alguns deles migrados, directamente, das fileiras da União Nacional e dos jornais oficiosos do regime de Salazar e Caetano) só não era absoluto porque, além de um pequeno núcleo de jornalistas democratas, sem clube partidário, havia outros colegas identificados com a extrema esquerda – trotskistas e maoistas -, que já nessa altura se digladiavam com o PCP e tinham-no como adversário mais temível.
Como o “inimigo comum” era o PCP, fizeram-se as pontes possíveis à época, para evitar que os fiéis à obediência de Cunhal tomassem conta do jornal, como esteve à beira de acontecer. E teria acontecido se não fosse a vitória das forças democráticas no 25 de Novembro.
O ambiente revolucionário transbordara para as redacções, que viviam o dia-a-dia entre notícias contraditórias de golpes e de contra-golpes, de quartéis em armas, de aviões nos céus de Lisboa, de comandos sublevados, de forças populares nas ruas, sem rei nem roque.
Passei muitas horas agarrado aos telefones em contactos, desde a Presidência da República a fontes militares que conhecia de perto e que me pareciam fiáveis, a esclarecer boatos que desaguavam a todo o momento na redacção. O golpismo e a contra-informação disputavam o mesmo terreno.
Estava criada uma atmosfera densa, de cortar à faca, onde quem não quisesse partilhar do jargão marxista-leninista corria o sério risco de ser proscrito. E quem não aguentasse, a pé firme, os intermináveis plenários da redacção, poderia acordar no dia seguinte com as piores surpresas, vindas de moções aprovadas de braço no ar.
Estive por dentro de muitos plenários, eleito pelos órgãos representativos dos jornalistas, e sei bem do que falo.
Fiz uma aprendizagem dura e acelerada dos métodos usados pelo PCP para controlar e manipular uma assembleia de trabalhadores, desde convencê-los pelo cansaço a convencê-los pelo medo. Vi muita gente desistir por cobardia. Vi muita gente resignada ao silêncio amedrontado. Não duvido que é um modelo ainda hoje em prática, para atemorizar os trabalhadores, e que explica muitas greves sem sentido e que existem porque sim.
Ao evocar esses dias baços, faço questão em abrir um breve parêntesis e recuperar a memória de um jornalista prematuramente desaparecido, o José Manuel Rodrigues da Silva, um tribuno admirável vindo das lutas académicas, homem de esquerda combativo, inteligente e destemido perante plenários hostis, que borbulhavam em cada dia no Diário Popular.
Juntos, evitámos desgraças maiores no grande vespertino da rua Luz Soriano, onde tínhamos o Diário de Lisboa como vizinho, fortemente influenciado também pelo PCP, apesar de dirigido por Fernando Piteira Santos, um socialista e republicano, que fora afastado nos anos 50 das fileiras comunistas.
Costumávamos dizer que o Rodrigues da Silva ficara agarrado ao Maio de 68, pelo seu modo de vestir e de agir. Era generoso e brilhante. Várias vezes o encontrei, depois do encerramento do Diário Popular, cultivando o seu talento a benefício do “JL – Jornal de Letras”, onde terminou os seus dias. E recordávamos esses anos-brasa de 74 e 75, quando conseguimos, não poucas vezes, proteger o Diário Popular do assalto do PCP. Fecho o parêntesis e a homenagem singela a um companheiro desaparecido.
Volvidos 40 anos, fico novamente preocupado como cidadão e jornalista, ao ver o PCP levantar cabeça e ditar as regras do jogo, como pronto-socorro do PS de António Costa, e a extrema esquerda em estado de deslumbramento, gerida por um triunvirato feminino, ungido pelo ideólogo Francisco Louçã.
Preocupado, ainda, por ver no elenco do novo governo minoritário do Partido Socialista, dependente dessas esquerdas, alguns mentores das mais assanhadas diatribes contra a Comunicação Social.
Depois dos plenários agitados da redacção do Diário Popular, vivi a ressaca do 25 de Novembro na redacção do Diário de Notícias, na qual ingressei, em Janeiro de 76, pela mão do saudoso Victor Cunha Rego, cumpliciado com o Mário Mesquita, aqui presente neste painel.
Felizmente que vinha habilitado do Diário Popular com uma razoável blindagem, o que me permitiu suportar as investidas da “tropa de choque” plantada pela direcção de José Saramago, onde pontificavam nomes de jornalistas veteranos, à mistura com jovens de sangue na guelra, saídos das fileiras da UEC – a união dos estudantes comunistas.
Eram Jornalistas que continuavam fiéis ao PCP e às notas incendiárias de Saramago na primeira página do jornal e que conviviam mal com o pluralismo noticioso e de opinião reaparecidos nas colunas do Diário de Notícias, com a nova direcção empossada depois do 25 de Novembro.
A gestão editorial não era fácil e a recuperação do jornal seria penosa, depois de quase soçobrar pela mão de Saramago, que destruíra, em pouco tempo, boa parte da circulação do Jornal, conduzindo as vendas a um patamar residual. Houve quem genuinamente temesse que lhe estivesse reservada a mesma sorte de outro matutino histórico, O Século, fechado por Manuel Alegre – então secretário de Estado da Comunicação Social -, quando estava à beira do centenário.
A esta distância será curioso recordar a justificação dada por Manuel Alegre para acabar com O Século e despedir 900 trabalhadores - "Todas as revoluções têm o seu período de festa e fantasia. Todas as revoluções têm também a sua hora da verdade. O nosso tempo de festa acabou. Chegou, para nós, a hora da verdade". A decisão de encerramento foi tomada no Governo da engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo “e não creio que tivesse alternativa" – dizia ainda Manuel Alegre. Estávamos em Fevereiro de 1977.
Por essa altura, o Diário de Notícias conseguia sobreviver à “festa” e à “hora da verdade”, não obstante a herança de Saramago, cujo radicalismo chegou a ser criticado por Álvaro Cunhal - embora sem o mencionar explicitamente -, ao declarar, numa curiosa entrevista publicada pós 25 de Novembro, que cito: “alguns órgãos de comunicação social tinham sido arrastados para uma propaganda sectária e esquerdista para a qual numerosas vezes chamámos a atenção, incluindo de camaradas nossos que trabalhavam em alguns deles”.
Toda a gente percebeu a quem se referia.
De facto, logo na tomada de posse, Saramago não escondia as suas inclinações, ao defender que o DN deveria assumirum papel de apoio à política do então primeiro-ministro Vasco Gonçalves, cultivando a ideia de um jornal como “instrumento nas mãos do povo português, para a construção do socialismo”. E foi assim, com esta visão instrumental, que o DN fez a travessia de todo o «Verão Quente» de 1975, até ao 25 de Novembro, com uma orientação editorial empenhada na agitação revolucionária que pulsava nas ruas. E nos quartéis.
Suspenso a seguir ao 25 de Novembro, o Diário de Notícias voltaria às bancas a 22 de Dezembro, quase um mês depois da sua última publicação.
O texto da nova direcção, publicado na primeira página, não consentia dúvidas sobre as diferenças conceptuais relativamente a Saramago, ao sustentar que o jornal “não pode ser feudo de nenhum grupo social, nem de qualquer organização política. Na sua prática diária – enfatizava - “há-de reger-se pelos grandes princípios já definidos, na Assembleia Constituinte, para a Imprensa Estatizada: pluralismo de opiniões e independência perante o Governo e a Administração Pública (…)” .
Note-se que, à época, o DN pertencia a uma empresa pública, depois de ter sido nacionalizado no auge do fervor revolucionário.
O programa da nova direcção do DN contrastava em absoluto com o monolitismo ideológico imposto por Saramago que, como um dia recordou o jornalista e, também, escritor Mário Zambujal, na altura na chefia da redacção do matutino, "a verdade é que, apesar de ser o Luís de Barros o director, era o Saramago que mandava".
Foram necessários 23 anos para Saramago - já laureado com o Nobel -, voltar às instalações do jornal, que quase aniquilara na sua cegueira ideológica.
A homenagem que lhe foi prestada por uma administração e direcção editorial em flagrante estado de amnésia passou uma esponja pelas suas responsabilidades na direcção do DN, saneando jornalistas e transformando o jornal numa folha panfletária, ao serviço da ortodoxia comunista e das esquerdas militares.
A avenida da Liberdade - sede do histórico edifício que querem vender agora à socapa -, nunca foi a sua.
Nos alvores de 1976, a redacção que encontrei no DN fervilhava de agitação e boa parte dos jornalistas, umbilicalmente ligados ao PCP - que continuaram ou voltaram ao jornal -, contava com os tipógrafos entre os seus aliados, um sector profissional historicamente ligado aos comunistas.
Porém, Victor Cunha Rêgo era um homem determinado e sem medo. E o Mário Mesquita tão pouco. Ambos impuseram uma orientação pluralista, derrubando muros e tabus, não obstante as ameaças que se ouviam pelos corredores, nem sequer em surdina.
Socorro-me a esse respeito das palavras de Mário Mesquita. Dizia eleque se confrontara com “um puzzle extremamente complexo”, pois os redactores que se mantiveram no DN “estavam treinados num tipo de jornalismo que era um jornalismo militante, revolucionário”.
Para além da redacção, a Comissão de Trabalhadores era uma força activa, com poder, e cujo objectivo fundamental consistia em contrariar a orientação imprimida pelos novos directores ao conteúdo noticioso do jornal.
A pouco e pouco, o Diário de Notícias conseguiria recuperar credibilidade, prestígio e vendas, reerguendo-se dos escombros onde Saramago o deixara. Foi um processo demorado e espinhoso.
As direcções sucederam-se, seguindo a mesma linha de orientação editorial, que mudou pouco em 15 anos, até à reprivatização do DN, comigo em director do jornal, depois do Mário Mesquita ter optado por ser académico, trocando Lisboa por Lovaina.
Chegados à reprivatização do DN, no início da década de 90, já os ânimos revolucionários se tinham aquietado. Fizera-se, entretanto, uma ambiciosa informatização de toda a produção editorial, dos conteúdos à paginação electrónica, e o jornal apresentava-se de cara lavada, editado num formato mais moderno. As nuvens pareciam afastadas do horizonte.
Mas essa é outra história que um dia será contada. A história que hoje nos trouxe aqui teve o seu epicentro no 25 de Novembro, quando os media voltaram a ser libertados de censuras e coacções, permitindo aos jornalistas escrever em liberdade, sem temerem o desemprego por “delito de opinião”, ou por não terem o cartão do partido.
Num momento em que despontam novos medos, com a maioria dos jornais em dificuldades por causa da quebra de vendas e das receitas de publicidade, as tentações de enfeudamento a interesses de origem diversa, políticos e económicos, são obviamente de ter em conta .
A diminuição das receitas não é amiga da independência. Não há almoços grátis. E não faltará quem espreite a oportunidade de domesticar as vozes incómodas, como já sucedeu no passado recente.
A Imprensa não está hoje, felizmente, sujeita à ganga ideológica que a condicionou durante o período revolucionário, até Novembro de 75. Mas começa a ter as suas restrições, que lembram, irresistivelmente, os tempos em que as chefias de redacção dispunham de uma lista das empresas e pessoas intocáveis, relacionadas com os seus accionistas principais.
Antes do 25 de Abril, a Banca chegou a ter uma forte presença na propriedade dos jornais. O que presenciamos hoje é que se têm formado novos conglomerados, a que não são estranhos os objectivos de influência política e económica.
No Bairro Alto, antigo “bairro da tinta”, sobrevive um único jornal, A Bola. Chegou a albergar sete títulos, se descontarmos o Diário de Notícias e A Bola. Quase todos desaparecidos: Diário Popular, Diário de Lisboa, A Capital, República, Diário da Manhã, (mais tarde, Época), Record, Jornal do Comércio e ainda algumas revistas pontuais.
O definhamento dos vespertinos, vítimas da concorrência do audiovisual, desertificou o Bairro Alto. Antes disso, o Diário de Notícias fora o primeiro a sair do perímetro do Bairro Alto, deixando apenas a rua com o seu nome, e instalou-se no topo da Av. da Liberdade, num edifício construído de raiz, sob projecto do Arq. Pardal Monteiro, inaugurado em 1940, com magníficos painéis de autoria de Almada Negreiros a guarnecerem os seus átrios generosos.
Foi Prémio Valmor, é um edifício classificado, mas que é dado como quase vendido pelos actuais detentores da empresa proprietária do jornal, para fins diversos da sua vocação matricial, o que, a consumar-se, constituirá um verdadeiro atentado contra o património cultural edificado da cidade.
Depois de ter sobrevivido, quase por milagre, ao desvario revolucionário, o Diário de Notícias arrisca-se a perder a casa e a identidade, perante a indiferença das autoridades que deveriam zelar pela preservação do património, desde o Município de Lisboa à Ordem dos Arquitectos e ao novo Ministério da Cultura.
O silêncio é ruidoso e, pelos vistos, ninguém se importa. O edifício emblemático do Diário de Notícias, fundado por Eduardo Coelho há 150 anos, está à venda. Quarenta anos depois do assalto do PCP, o seu destino volta a ser incerto. O 25 de Novembro não resolveu tudo.
(Comunicação apresentada na Fundação Gulbenkian, em 4 de Dezembro, num painel constituído por Francisco Sarsfield Cabral, Maria João Avilez, José Manuel Fernandes e Mário Mesquita, além do autor deste texto, integrado na sessão de encerramento do Ciclo comemorativo dos 40 Anos do 25 de Novembro)