Nesse artigo, Samuels descreve em detalhe a campanha de desinformação digital da Casa Branca, liderada por Ben Rhodes, um assessor e estreito colaborador de Barack Obama em segurança nacional, para “vender” ao Congresso, aos jornalistas e ao público americano o acordo nuclear com o Irão. Os comentários de Rhodes acerca dessa campanha de manipulação dão a entender que ele se orgulha da mesma, e do seu êxito.

 

Após ler o artigo, James Rosen, repórter da Fox News que cobre regularmente o Departamento de Estado, decidiu rever as suas próprias perguntas a Jen Psaki, porta-voz do Departamento de Estado em Dezembro de 2013, sobre as conversações com o Irão – e descobriu então que essas perguntas, e as respostas de Psaki, tinham desaparecido do vídeo oficial.    

 

A história do vídeo expurgado tinha começado em Fevereiro desse ano, quando Rosen perguntou a Victoria Nuland, ao tempo porta-voz do Departamento de Estado, durante um “briefing” regular para jornalistas, se estavam em curso conversações directas entre os Estados Unidos e o Irão, das quais Rosen soubera pelas suas fontes. Nuland respondeu que não. Sabe-se agora que mentiu: essas conversações tinham começado oito meses antes, no Oman, facto confirmado por Rhodes na entrevista com Samuels.

 

Em 2 de Dezembro de 2013, Rosen voltou à carga, perguntando a Jen Psaki, sucessora de Nuland, “se é política do Departamento de Estado mentir para preservar o sigilo de negociações secretas“. Psaki acabou por responder, após várias tentativas para fugir à pergunta, que “acontece por vezes que a diplomacia necessita de privacidade para poder avançar”. E acrescentou que “isto” (as conversações com o Irão) “é um bom exemplo disso”.

 

Os oito minutos de vídeo eliminados do registo oficial incluem esse diálogo entre Rosen e Psaki, cuja resposta obviamente constituiu uma admissão implícita  não apenas da existência das negociações como da inverdade da anterior negação da sua existência. O segmento eliminado foi agora reposto, e a totalidade dos 82 minutos desse “briefing” está disponível no site do Departamento de Estado http://video.state.gov/en/video/2886914568001. Os oito minutos que haviam sido expurgados começam a partir do minuto 28.

 

O diálogo entre Rosen e Psaki, que recomendo, é um clássico do eterno jogo de toca-e-foge entre um jornalista persistente e o representante (neste caso a representante) de um governo apostado em negar que mentiu, apesar de apanhado com a boca na botija.   

 

Kirby afirmou que já foram tomadas medidas para impossibilitar a repetição do triste episódio de censura, e que não foi possível determinar quem foi responsável pelo mesmo – declaração que foi recebida com compreensível cepticismo, para não dizer incredulidade.

 

Em entrevista posterior, Rosen afirmou: “Posso atestar directamente que a administração Obama, na pessoa de Victoria Nuland, porta-voz do Departamento de Estado em Fevereiro de 2013, me mentiu”, ao negar a existência de conversações em curso com o Irão desde oito meses antes. E acrescentou: “Há numerosos casos enganosos semelhantes, por parte desta administração.”                                                

 

A eliminação deliberada, agora finalmente assumida, dos oito minutos de vídeo, reforça a credibilidade do artigo de David Samuels no The New York Times Sunday Magazine de 5 de Maio, e das declarações de Rhodes no mesmo, que passaram largamente despercebidas na Europa, mas provocaram uma imediata tempestade entre os media americanos, com centenas de artigos e colunas de comentaristas acerca das suas declarações.

 

Lee Smith, “Senior Editor” do The Weekly Standard chamou ao artigo de Samuels “o mais importante dos últimos quatro anos na área de política estrangeira”.É uma caracterização excessivamente modesta. Como se verá mais adiante, o artigo não constitui apenas o  testemunho chocante de uma maquiavélica, bem urdida e bem sucedida manipulação da opinião pública, pela boca do seu principal arquitecto e mestre-de-obras, que trabalha diáriamente com o presidente americano.

 

É também um notável documento acerca da facilidade com que, na nova era da comunicação digital, e graças ao enorme enfraquecimento dos quadros dos media tradicionais, foi possível à administração Obama “vender” ao país uma falsa narrativa dos antecedentes do acordo com o Irão, e até mesmo do seu conteúdo, e assim facilitar a aceitação desse acordo. O próprio facto de terem passado quase dois anos e meio sem que a manipulação do vídeo fosse detectada constitui também uma lamentável demonstração prática desse enfraquecimento.  

 

Mas acima de tudo, o artigo faz luz sobre as prioridades geo-políticas de Obama, que desde há sete anos têm deixado muitos analistas perplexos, e que incluem o progressivo abandono de aliados tradicionais no Médio Oriente, como o Egipto, a Arábia Saudita e Israel.  Pode portanto ser considerado, desde já, como um extraordinário exemplo de jornalismo de revelação, neste caso com implicações não apenas à escala nacional como também global.     

 

 

Quem É Ben Rhodes?

 

Após o artigo de Samuels, intitulado “O Aspirante a Romancista Que Virou Guru de Política Estrangeira de Obama”, não é exagero descrever Ben Rhodes, de 38 anos, cujo título oficial é “Assessor do Presidente e Conselheiro-Delegado Nacional para Comunicações Estratégicas e Discursos”, como o conselheiro mais influente de Obama em política estrangeira, de que quase ninguém sabia fora de Washington.

 

A sua importância parece ter passado despercebida mesmo aos que sabiam da sua existência, apesar de ter sido incluído em 2011 na lista da revista Time dos 40 profissionais mais destacados e poderosos da América, com menos de 40 anos.  

 

Rhodes tinha 30 anos quando começou a trabalhar com Obama, em 2007, portanto desde antes deste ser eleito presidente, tendo iniciado a sua carreira como “speechwriter” de política estrangeira. Natural de Nova Iorque, formou-se em 2000 em inglês e ciência política na Rice University (Texas) e doutorou-se em “creative writing” na New York University, em 2002. Um irmão, David Rhodes, cinco anos mais velho, é presidente da CBS News.

 

Recém-doutorado, Rhodes começou por integrar a equipa do congressista democrata federal Lee Hamilton, como “speechwriter”, cargo que desempenhou durante cinco anos, até se transferir para a equipa do senador Obama, que então preparava a sua candidatura presidencial. Hamilton, citado por Samuels, achou que Rhodes, em reuniões, revelara um talento para “decidir o que fora decidido”.  

 

No seu cargo actual, além de escrever os discursos de Obama, Rhodes é responsável pelo planeamento das viagens do presidente ao estrangeiro e dirige a estratégia de comunicações da Casa Branca. Samuels, no seu artigo, comenta que essa “job description” é insuficiente para avaliar a importância de Rhodes. Segundo ele, “no entender de dezenas de actuais e antigos “insiders“ da Casa Branca, Rhodes é a voz com maior influência na política estrangeira, a seguir à do presidente”.

 

Citando Denis McDonough, chefe de gabinete de Obama, Samuels acrescenta que Rhodes e Obama, além manterem contacto entre si durante o dia por email e por telefone, também se reúnem diariamente durante duas ou três horas. Segundo o jornalista, a influência de Rhodes deve-se àquilo que vários “insiders” descreveram como a sua “fusão mental” (“mind meld”) com Obama: “Não pensa pelo presidente, mas sabe o que o presidente pensa (…) Um dia confessou-me, 'Já não sei onde eu começo e o presidente acaba'”.   

 

No retrato que Samuels faz de Rhodes, este nutre um profundo desprezo pelos media tradicionais como o The New York Times e o The Washington Post e está à vontade no novo mundo da comunicação social, em que 40 por cento dos jornalistas profissionais perderam os seus empregos nos últimos 10 anos.

 

É citado por Samuels dizendo: “Todos esses jornais costumavam ter delegações no estrangeiro. Agora não têm. Pedem-nos que lhes expliquemos o que está a acontecer em Moscovo e no Cairo. A maioria deles escreve sobre o mundo a partir de Washington. O repórter típico com quem falamos tem 27 anos, e a única experiência de reportagem que tem é a que adquire em campanhas eleitorais.  (…) Não sabem nada, literalmente”.       

 

Como foi “vendido” o acordo com o Irão

 

Rosen, o correspondente da Fox News no Departamento de Estado, esteve entre os poucos jornalistas que não se limitaram a reproduzir passivamente a versão da Casa Branca acerca do processo que culminou no acordo nuclear com o Irão, e tentaram furar a desinformação  servida aos media, arquitectada por Ben Rhodes.  

 

A maioria, sem se aperceber da sua instrumentalização, ajudou a difundir a ideia de que as conversações se iniciaram em 2013, aproveitando a eleição do novo presidente Hassan Rouhani, apresentado pela Casa Branca como representante de uma alegada “ala moderada” do regime iraniano, aberta para um compromisso sobre o seu programa nuclear.

 

A ficção da “ala moderada” foi habilmente usada para preparar o terreno para o acordo, tornando mais difícil aos seus opositores combater uma possibilidade de entendimento com um suposto grupo distinto dentro do regime iraniano, desejoso de fazer as pazes com a América. A eleição de Rouhani era uma nova oportunidade que não se podia desprezar e a única alternativa ao acordo (“a paz”) era “a guerra”. Samuels atribui a Rhodes a autoria desta última ideia, a que chama o “argumento chave” na aprovação do acordo.

 

Na realidade, Obama já tinha escrito secretamente ao Ayatollah Khamenei pelo menos duas vezes, em 2009 e 2012; as negociações tinham começado durante a presidência de Mamoud Ahmadinejad; Rouhani era um dos candidatos à presidência aprovados por Khamenei; a ”ala moderada” é uma invenção; uma proposta preliminar do acordo ficou pronta três meses antes da eleição de Rouhani; e o acordo com o Irão era um objectivo de Obama desde o início do seu mandato, parte integrante do seu plano de retirada dos E.U.A. do Médio Oriente.

 

Tanya Somanader, de 31 anos, directora de “digital response” na Secção de Estratégia Digital da Casa Branca, descreve no artigo como foi gerida a informação fornecida directamente, em primeira mão, aos  vários públicos alvos da campanha – incluindo jornalistas e colunistas dos media impressos - através das modernas plataformas digitais como Facebook, Twitter, Instagram, etc.

 

Samuels também descreve no artigo como a campanha dirigida por Rhodes atingiu o auge  há um ano, quando forneceu a dezenas de analistas e peritos em armamentos dados de que só a Casa Branca tinha conhecimento, que eles partilharam com repórteres leigos na matéria, os quais frequentemente solicitam as suas opiniões, criando assim aquilo a que Rhodes chamou “uma câmara de eco”. Ou seja, “eles confirmavam aquilo que nós lhes tínhamos dito” - e os opositores foram cilindrados.       

 

Rhodes justifica a campanha pela nobre “urgência em reorientar radicalmente a política americana no Médio Oriente, para reduzir grandemente a probabilidade de envolvimento da América em futuras guerras na região”. É concebível que essa “urgência” também justifique na sua mente mentiras àcerca do próprio conteúdo do acordo, como quando afirmou na CNN, o ano passado, que a América teria acesso “em qualquer momento e em qualquer sítio” às instalações nucleares, afirmação que tanto Rhodes como o próprio Secretário de Estado, John Kerry, tiveram que desmentir mais tarde, reconhecendo que tal acesso nunca foi sequer solicitado nas negociações. 

 

Em resumo, como disse James Rosen, “a questão é se houve intenção enganosa na 'venda'  por Ben Rhodes, ao público americano, do acordo com o Irão … e a resposta é inquestionavelmente afirmativa.” 

 

Epílogo

 

O artigo de Samuels desencadeou uma torrente de comentários, como seria de esperar -  muitos deles de crítica ao seu autor e não apenas a Ben Rhodes e aos seus métodos, o que não é inteiramente surpreendente.

 

Jennifer Rubin, numa coluna no The Washington Post, que advoga em título que “O Congresso Deve Responsabilizar Ben Rhodes”, escreveu que se um conselheiro de George Bush tivesse feito algo semelhante, os democratas no Congresso teriam certamente exigido a sua destituição e teriam obrigado “os gabarolas” a testemunhar sob juramento.

 

Eric Terzuolo, na revista Foreign Affairs, menciona a “arrogância e cinismo” manifestados pela Casa Branca, lamenta o declínio dos verdadeiros profissionais de política estrangeira, aqueles que “se preocupam com a substância das políticas, e não apenas com a maneira como elas são apresentadas ao público”, e conclui que os especialistas em comunicar políticas (como Rhodes) estão hoje em vantagem sobre os especialistas nessas políticas.    Ou seja, a “ficção mascarada como facto” impera.

 

Mortimer Zuckerman, chefe da redacção da U.S. News & World Report, concluiu um editorial intitulado “Ficção em Política Estrangeira” escrevendo: “Dentro de oito meses haverá uma nova administração e Rhodes pode regressar à sua vida anterior (…) Presumivelmente escrevendo mais ficção.”

 

Outros colunistas e comentadores digitais, porém, sem disputarem a veracidade do artigo de Samuels, optaram por acusá-lo de ser “um ardente opositor” do acordo com o Irão, acabando por forçá-lo a defender-se dessas acusações em artigo publicado na edição seguinte do The New York Times Sunday Magazine.    

 

Muitos se têm interrogado acerca dos motivos de Rhodes para fazer uma confissão tão completa e detalhada da campanha. A melhor explicação é provavelmente a de Lee Smith no “The Weekly Standard”: “Porque a Casa Branca conseguiu fazer aprovar o acordo, e quer os louros dessa vitória.”       

 

Mais interessante ainda, porém, do que aconteceu depois da publicação do artigo é aquilo que não aconteceu. O “Oversight Committee” da Câmara dos Representantes convocou Rhodes para depor. A Casa Branca invocou “privilégio executivo” e não o autorizou a comparecer. Obama não fez qualquer comentário ao assunto. Rhodes continua no seu cargo e não há qualquer indício de que ele ou os seus cúmplices tenham os seus cargos em risco.

 

Ao famoso aforismo de Lincoln acerca de ser possível enganar todos durante algum tempo, ou enganar alguns durante todo o tempo, mas não ser possível enganar todos todo o tempo, falta provavelmente um acrescento: E é possível ficar impune em qualquer dos casos.