Jornalismo de “encomenda” ….
A Entidade Reguladora (ERC) divulgou uma deliberação em fim de mandato do actual executivo que, a serem verdadeiros os pressupostos em que se baseia, como se presume, deveria envergonhar jornalistas e os media onde se empregam, e exigir uma vigorosa intervenção tanto do Conselho Deontológico do Sindicato, como da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ).
No seu comunicado, a ERC refere ter analisado uma série de textos jornalísticos que têm subjacentes contratos comerciais.
O texto da ERC vai mais longe e especifica que “a participação de jornalistas em conteúdos que resultam do pagamento de contrapartidas por entidades externas compromete não só o seu direito à autonomia e independência, como o seu dever correspondente”.
Infelizmente, a ERC reconhece mesmo que tal constitui “uma prática que parece cada vez mais comum em muitas redacções”, o que viola flagrantemente os normativos em vigor para o exercício da profissão.
Neste contexto, de pouco adiantará mencionar, como a ERC sinaliza, os “os constrangimentos estruturais financeiros que enfrentam atualmente as empresas de comunicação social”, ou, tão pouco, “a necessidade de diversificação de fontes de receitas”, porquanto, como a própria Entidade conclui “quando os jornalistas deixam de fazer jornalismo é a sua credibilidade junto do público que fica em causa”.
Por estranho que pareça, esta deliberação arrasadora para o bom nome da comunidade jornalística - e não apenas para os envolvidos nestes esquemas -, passou quase despercebida, e até a reacção do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas foi parcimoniosa, apesar de lembrar que “quando os temas das notícias são definidos em primeiro lugar por critérios comerciais, o estatuto de independência do jornalista já está comprometido. Se a isto se juntar, como tem sido noticiado, a definição prévia de perguntas e de entrevistados, poderemos perguntar se ainda estamos a falar de jornalismo”.
Há muito que se sabe, sem haver grande eco publico, que alguns jornalistas acumulam a actividade editorial com uns “biscates” nas chamadas agências de comunicação, onde desempenham funções de “lobby” junto de colegas, “plantando” noticias que são frequentemente “encomendas” favoráveis aos interesses de políticos ou de agentes económicos.
Entre esses profissionais, com “duplo emprego”, alguns há que já desempenharam ou ainda desempenham funções editoriais de relevo.
Talvez por isso, e porque o trabalho da ERC está fundamentado, estranha-se que as reacções tenham sido tão tímidas, ou mesmo inexistentes, como no caso da Comissão da Carteira de Jornalista, que tem obrigação institucional de zelar pelas boas práticas na profissão e de actuar perante eventuais incompatibilidades.
Não basta, também, ao Conselho Deontológico dizer que “repudia a tendência crescente de as empresas jornalísticas transformarem os jornalistas em produtores de conteúdos”, sem condenar, abertamente, os profissionais que se deixaram instrumentalizar, pondo em causa a sua independência e credibilidade.
De facto, a tendência tem antecedentes, tratados, até, em Congressos de Jornalismo. Já no terceiro, realizado em 1998, se referia, nas conclusões finais, que “uma maioria clara (66%) entende que é possível fazer publicidade e jornalismo. A mesma maioria já considera que o jornalismo e a assessoria de imprensa são incompatíveis”.
Pior : no mesmo documento lia-se que “a maioria dos estagiários (51 %) olha para o jornalismo como um negócio”. E ninguém se alarmou?
Os sinais, que já eram detectáveis há um quarto de século, confirmaram-se desde então e passaram a ser um modo de vida, como ficou claro no relatório da ERC. Uma lástima, cuja erradicação deveria ser uma prioridade para a Comissão da Carteira e para o Conselho Deontológico do Sindicato, em vez de se repetirem as mesmas queixas e lamurias, de Congresso em Congresso. Com a condescendência do costume.