O edifício-sede do DN vai ser sacrificado à especulação imobiliária que domina aquela zona nobre da cidade – no caso de ser consumada a operação de venda  - , para,  em seu lugar,  surgir um conjunto residencial  de luxo ou mais um hotel de charme. Pouco importa o destino.

Suprema infâmia: para tentar tapar o sol com a peneira, os agentes  do negócio prometem manter o lettering gótico do cabeçalho do jornal na fachada, a qual ficará de pé a fingir que nada aconteceu no interior.  


Julgam assim, uns e outros, lavar as mãos (e a consciência), habilitando  o Ministério da Cultura e a Câmara Municipal de Lisboa com argumentos (de fachada…) para fecharem os olhos à devastação  de um edifício  classificado,  desde 1986, como Imóvel de Interesse Público.


Se for por diante a transacção, o Diário de Notícias ficará  desapossado não apenas do edifício-sede, onde pontificam painéis de Almada Negreiros, como de uma casa-forte, que guarda – ou guardava -   um espólio documental único.


Essa  casa–forte é (ou foi) uma peça nuclear  do arquivo e centro de documentação - um dos mais importantes da Imprensa portuguesa -, englobando um acervo imprescindível para historiadores e outros estudiosos dos séculos  XIX e XX, incluindo a colecção do jornal desde a  fundação em 1864, imagens e gravuras  dos primórdios da fotografia, e originais  de  escritores ilustres  como Ramalho Ortigão, Eça de Queirós e Pinheiro Chagas, ou do poeta Cesário Verde.


Tem ainda à sua guarda (ou teve…) centenas de trabalhos  de artistas como Stuart Carvalhais, desenhador e caricaturista notável, que deixou um legado invulgar  nas páginas do DN  - e fora delas, por não terem sido  publicados ( se exceptuarmos o livro-álbum, “Stuart Inédito”, editado em 1989, no âmbito das comemorações   do 125º aniversário do jornal) . 


Ao contrário do que  aconteceu no dobrar do milénio -  quando houve uma primeira tentativa de alienação do edifício -, desta vez caiu um manto de silêncio sobre o negócio, perante a passividade da direcção  editorial e do Conselho da Redacção. Mesmo a comunidade cultural, tão dada a sobressaltos por coisas menores, nem se mexeu.


Convirá recordar, a propósito, que, logo  em 2005, foi outra a posição do  Conselho da  Redacção do jornal , que não hesitou em  emitir um parecer no qual exigia  a garantia da  "preservação do património histórico" e do edifício do DN. 


Por essa altura, já a PT tinha pretendido desalojar o jornal, só recuando perante um  expressivo movimento de opinião, que chegou a reunir um  abaixo-assinado, com a participação de  numerosas  personalidades.


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. E para que não sobejem dúvidas, foi o próprio director editorial quem veio já manifestar a sua  concordância  com o despejo, ao defender, num texto recente, sem corar, que “essa alma do DN continuará nas Torres de Lisboa”. Ridículo.  


Como é possível tratar toda uma memória histórica, com tamanha ligeireza e conivência ?


O  desapego é grande e as fraquezas muitas. Procura-se, afinal, encobrir um  atentado contra  “o primeiro edifício construído de raíz para albergar os serviços de um jornal” – conforme se pode ler no site do Município.  


Este  realça, ainda, que o edifício “sobressai no contexto da arquitectura portuguesa contemporânea pela original solução de compromisso entre a linguagem  monumentalista  da época e as tendências inovadoras e modernistas, traduzindo a procura de equilíbrio entre os vectores estético, funcional e construtivo”.


Falta saber se João Soares, enquanto ministro da Cultura -  de quem depende o “visto” para o despejo -,  dará “ luz verde” ao negócio.


E  se Fernando Medina, enquanto presidente do Município - a quem cabe emitir as respectivas licenças -, consentirá neste assalto ao património cultural  edificado da cidade.


E,  já agora, conviria saber-se, também,  se o  bastonário da Ordem dos Arquitectos, João Santa-Rita, nada terá a dizer sobre a planeada sujeição deste Prémio Valmor à febre imobiliária.


Se todos  ficarem calados – Governo, Município  e Ordem dos Arquitectos -   será legítimo concluir, que a alma do DN  será trocada por um prato de lentilhas.  

 

Nota: Este texto foi originalmente publicado, na coluna “Pátio das Cantigas “, do semanário SOL.