Trata-se de um comportamento susceptível de encorajar discursos e projectos populistas.

Em contrapartida, o comportamento autotópico é próprio dos sujeitos que se colocam na génese, no centro dos movimentos em que se envolvem, das dinâmicas que protagonizam. Conscientes dos problemas a resolver mas sem disporem, para eles, de uma solução imediata actuam em rede, sem projecto político nem enquadramento partidário, corporizando, assim, um fenómeno social a que Massimo Di Felice chama “netativismo”[2

O primeiro sinal deste comportamento autotópico, ocorreu a 15 de Fevereiro de 2003. Nesse dia, milhões de pessoas em todo o mundo invadem a rua. Subitamente. Sem que tal mobilização se deva a convocações partidárias tradicionais. Mas sim a mensagens, apelos e petições que fervilham em rede, essa marca distintiva e estruturante dos novos movimentos sociais. Em cada cidade, a causa unificadora é a mesma: “Não à guerra do Iraque”.

E os exemplos multiplicam-se:

15 de Maio de 2011. Na véspera das eleições municipais espanholas, milhares de pessoas respondem a um apelo difundido através do YouTube, por uma dezena de grupos de activistas: Anonymous, V de Vivienda, Hipotecados, Juventud sin futuro, etc. Concentrados nas Portas del Sol, os manifestantes insurgem-se contra os despejos de famílias incapazes de pagarem a rendas das suas habitações, denunciam o desemprego maciço da população jovem, clamam contra o poder da alta finança. Graças à Internet e às redes sociais, os efeitos desta jornada histórica – conhecida como o 15 de Maio ou, de uma forma mais abreviada, o 15 M -, espalham-se por todo o lado, como uma mancha de óleo.

INDIGNAI-VOS!, o grito de revolta lançado no ano anterior por um antigo resistente anti-nazi, Stéphane Hessel, num pequeno ensaio com o mesmo nome, encontra eco.

25 de Maio de 2011: militantes do movimento grego Aganaktismeni (Em Cólera), manifestam-se na Praça Sintagma, no centro de Atenas, contra a corrupção da classe política e contra a austeridade draconiana imposta pela Troika.

17 de Setembro de 2011: o movimento Occupy  assenta arraiais a dois passos da Bolsa de Nova Iorque. Os manifestantes definem-se como representantes dos 99% que não têm nada. Denunciam as desigualdades, a influência do dinheiro na política, o desvio de fundos públicos a favor das instituições bancárias[3].

15 de Outubro de 2011: é organizada uma jornada planetária dos Indignados com manifestações em Londres, Tel-Aviv, Montreal, Tóquio, Taiwan, Joanesburgo.

Julho de 2013: O movimento Black Lives Matter anuncia a sua determinação em lutar, com todos os meios ao seu alcance, contra a violência policial infringida a membros da comunidade negra norte-americana.

Setembro e Outubro de 2014, em Hong-Kong, operários intelectuais e estudantes opõem-se a um projecto de lei do Governo chinês impondo restrições ao sufrágio universal para a eleição presidencial de 2017. É a Revolução dos chapéus de chuva.

31 de Março de 2016: iniciam-se manifestações em cadeia por toda a França. O movimento que toma a denominação Nuit Debout, tem origem numa contestação à nova legislação do trabalho, elaborada pelo então ministro da Economia Emmanuel Macron mas, rapidamente, passa a contestar, globalmente, as instituições políticas e económicas do país. Sem líderes nem porta-vozes, propõe-se funcionar como ponto de «convergência das lutas». As decisões são tomadas por consenso, ao ar livre, em assembleias-gerais que, nalgumas cidades, chegam a reunir-se diariamente. Depois vão-se espaçando. Até desaparecerem por completo.

E é neste contexto que o movimento Que se lixe a troika! nasce e se desenvolve, em Portugal. «Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!»: a reivindicação, assim formulada, foi gritada em uníssono por meio milhão de pessoas,em Lisboa. Estávamos em 15 de Setembro de 2012.

Em termos gerais, todos estes movimentos contestam o que consideram ser um modelo de governação oligárquica em que um reduzido número de privilegiados deteria os poderes económico e político e determinaria as grandes orientações aplicáveis a toda a gente. A «Revolução democrática» característica da modernidade não teria significado mais do que a substituição de uma «aristocracia hereditária» por uma «aristocracia escolhida» cada vez mais afastada do povo[4]. A campanha de Jean-Luc Mélenchon, nas recentes eleições presidenciais francesas, espelha, de alguma forma, esta apreciação.

Para o filósofo francês Michel Serres estamos perante uma «mudança de mundo»[5] que as novas tecnologias de informação e comunicação, gerando redes sociais cada vez mais alargadas, vieram acelerar. «Existir numa rede social, considera Alain Kiyindou, é sinónimo de estar sempre pronto a reagir a situações que impliquem outros membros da rede, quer eles sejam conhecidos ou não». E o mesmo autor conclui: «Essas manifestações de solidariedade estão ligadas a valores partilhados, a crenças, a uma ética e a uma certa percepção da vida e do mundo»[6].

Na obra colectiva já evocada, o antropólogo indiano Appadurai, mundialmente conhecido pelas suas reflexões sobre a globalização, destaca o papel fundamental exercido neste processo de mudança pela Internet e pelos media sociais. Diz ele: «O facto de segmentos cada vez mais alargados da população utilizarem a Internet e os media sociais na sua prática quotidiana, o facto de ser possível mobilizar e difundir propaganda através da Internet, de construir uma identidade e de procurar parceiros na Internet, tudo isso cria uma ilusão: a de que poderíamos, todos, fossemos quem fossemos e fossem quais fossem os nossos objectivos, encontrar na Internet e nas redes sociais os parceiros, os aliados, os amigos, os colaboradores, os colegas, os convertidos à nossa causa»[7]. Uma ilusão que ele não deixa, contudo, de considerar «perigosa», em particular pelas falsas expectativas que pode criar.

Mudança de mundo, para retomar a expressão de Michel Serres que, nalguns casos mais radicais, se traduz, é certo, por uma ruptura total com o sistema.

Mas mudança de mundo que se traduz também, por tentativas de melhorar esse mesmo sistema, nomeadamente através da adopção de novos modelos de representação e de participação política.

E a engenhosidade não falta.

Em França, e no sentido de possibilitar a qualquer cidadão apresentar-se às eleições presidenciais de 2017 e de permitir aos franceses escolherem livremente o seu candidato sem passar pelo crivo dos partidos políticos, um grupo de internautas lançou uma estrutura organizativa denominada La Primaire.org. O processo é tecnologicamente muito simples. Uma aplicação carregada num telemóvel permite a cada pessoa votar por telemóvel ou, também por telemóvel, anunciar a sua intenção de se candidatar. Para ser concretizada, tal intenção de candidatura exige que o pretendente receba o apoio de 500 outras pessoas e que insira uma mensagem, do tipo SMS, com o seu programa.

Numa segunda fase, os candidatos à candidatura são distribuídos, aleatoriamente, em lotes e cada pessoa terá que votar num dos candidatos incluídos no lote que lhe tiver calhado.

Apuraram-se, assim, 4 ou 5 candidatos com maior número de votos que se apresentaram a uma votação final para seleccionar aquele que, efectivamente, se apresentaria às presidenciais.

Tudo isto por telemóvel, insisto.

Uma vez encontrado o candidato, a organização La Primaire.org encarregar-se-ia dos trâmites necessários à sua validação pelo Conselho Constitucional; de lançar uma colecta, via Internet, de modo a financiar a campanha; de escolher, de entre os membros da comunidade envolvida, e em consonância com o candidato, os membros que viriam a constituir o seu staff.

De tão complexa que era, a tarefa não chegou a materializar-se. E, La Primaire.org, não conseguiu ter o seu candidato.

Também por iniciativa de um grupo de internautas, um novo partido político surgiu na Argentina, mais concretamente em Buenos Aires, em Agosto de 2013. Chama-se Partido de la Red e o seu objectivo consiste em impedir que os eleitos se desviem do mandato que lhes foi confiado. Segundo os Estatutos do novo partido, os eleitos são obrigados a aplicar em permanência aquilo que resulta da vontade expressa pelos seus eleitores que, para isso, se manifestam numa plataforma especificamente construída para o efeito: a plataforma Democracy OS. Dito de outra forma: os eleitos estão impedidos de decidir seja o que for em seu nome pessoal.

O Partido de la Red apresentou-se às eleições legislativas de 2013 recolhendo, apenas, 20.000 votos o que não lhe permitiu eleger qualquer deputado. Mas os seus inspiradores não desistem e preparam-se para tornar a concorrer às eleições previstas para este ano.

De todas as iniciativas conhecidas avulta sem dúvida a criação, em Espanha, do partido Podemos e, na Suécia, do Partido Pirata.

Algumas breves notas sobre estas duas formações políticas que adoptam práticas que as colocam entre a democracia directa e a democracia representativa.

Lançado em Janeiro de 2014 por um grupo de universitários, na sequência do movimento do 15 de Maio, o Podemos teve um progresso fulgurante: durante os primeiros 20 dias da sua existência registou mais de 100.000 inscrições assumindo-se, assim, como terceira força política espanhola, em número de aderentes. «Quando há uma ocasião histórica para tomar o poder não a podemos falhar, isolando-nos na contestação ou limitando-nos à experimentação» explica um dos seus fundadores[8]. Daí, o lema claramente enunciado no Manifesto do partido: «converter a indignação em mudança política».

Lema que as performances eleitorais parecem legitimar. Nas eleições municipais e regionais de Maio de 2015 as listas do Podemos, ou apoiadas por ele, ganharam as Câmaras Municipais de cidades tão importantes como Madrid, Barcelona e Saragoça. Nas legislativas de Junho de 2016, o partido obteve 21% dos sufrágios expressos o que lhe permitiu eleger 71 deputados e ombrear, na oposição, com o histórico Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE).

Tal sucesso deve-se, em grande parte, ao recurso às novas tecnologias, como instrumento de contacto directo e permanente entre eleitos e eleitores. «Através da Internet, sublinha o líder do partido Pablo Iglésias, vimos aparecer um novo sujeito político, um “nós”, que dispensa a existência de delegados. Com efeito, prossegue o mesmo dirigente, «as novas tecnologias da informação facilitam a participação de todos, sem outra mediação que não seja a do suporte tecnológico»[9].

Através do fórum PlazaPodemos, os militantes e simpatizantes são convidados a transmitir propostas de solução para os problemas em debate.

Através da aplicação Appgree respondem, regularmente, a sondagens de opinião.

Através da aplicação WhatsApp, recebem mensagens e propostas dos dirigentes, locais, regionais ou nacionais.

Vejamos, agora, o caso do Partido Pirata, fundado na Suécia em 2006 como forma de contestar uma legislação do Governo sueco proibindo a partilha de ficheiros nas redes peer-to-peer. No início, o projecto consistia em questionar a legitimidade do copyright e em abrir caminho a novas disposições legais adaptadas às mutações tecnológicas e culturais duma sociedade de partilha.

Logo em 2009, isto é, três anos após a sua constituição, o Partido Pirata da Suécia elege dois deputados para o Parlamento Europeu. Deputados que, em Bruxelas, consagram toda a sua energia à reforma da propriedade intelectual.

Rapidamente, porém, o exemplo é seguido noutros países. Na Alemanha, um Partido Pirata realiza um score superior a 5%, nas eleições regionais da cidade-Estado de Berlim. Em 2014, elege um deputado europeu.

Na Islândia, um Partido Pirata alcança 14,5% dos votos, nas legislativas de 2016, e ameaça conquistar o poder.

Actualmente, os Partidos Pirata estão presentes em cerca de 40 países. Claro que, entretanto, os seus objectivos alargaram-se. Não se trata já de questionar os princípios que regem o copyright. Trata-se, agora, de por em prática mecanismos que promovam formas de democracia directa e de transparência política.

A sua actividade assenta em dois pressupostos:

1. As principais decisões devem estar sujeitas a referendo;

2. Os cidadãos eleitores não têm que estar aptos a responder a todas as questões que lhes forem colocadas.

Deste segundo pressuposto resulta um procedimento extremamente original, chamado «democracia líquida» que consiste no seguinte: cada cidadão pode delegar o seu voto noutro cidadão da sua confiança e que julgue mais habilitado, de que ele próprio, para responder à questão referendada. Para agilizar tal procedimento, o Partido Pirata alemão criou uma plataforma chamada LiquidFeedback: as pessoas, registadas na plataforma e habilitadas a votar delegam o seu voto num outro membro da rede julgado mais competente para se pronunciar sobre o assunto em discussão.

Que balanço fazer de todas estas iniciativas, de todas estas experiências que contestam as formas tradicionais da política e buscam alternativas mais ou menos imaginativas, mais ou menos exequíveis?

É verdade que a memória colectiva pouco guarda do movimento espanhol do 15 de Maio; do movimento grego Aganaktismeni; dos movimentos norte-americanos Occupy e Black Lives Matter, do movimento francês Nuit Debout, da Revolução dos chapéus de chuva, em Hong Kong, do movimento Que se Lixe a Troika, em Portugal.

É verdade que todos esses movimentos se esbateram, tão depressa quanto despontaram.

É verdade que tentativas de fazer do eleitor um cidadão activo, libertado das contingências partidárias e apto a controlar o trabalho dos eleitos, se revelam efémeras ou meramente simbólicas. Provam-no os dois exemplos aqui referidos, em França e na Argentina.

E, mesmo no que toca às iniciativas de maior alcance, como a criação do Podemos ou dos Partidos Pirata, os riscos de desvio aos objectivos iniciais não param de aumentar.

No Podemos, Pablo Iglésias reforça, gradualmente, o seu estatuto de chefia. Fortemente mediatizado e rodeado por uma equipa que vai tomando as rédeas do partido, assume-se, cada vez mais, como catalizador de uma centralização antes recusada com todo o vigor. A necessidade de ganhar batalhas eleitorais, o que implica a procura de maior eficácia de funcionamento interno, provoca a inevitável profissionalização dos principais actores. A emergência duma nova «elite» ou a regeneração de «elites» anteriores pode estar em curso.

Nada garante, por outro lado, a transparência da «democracia líquida» em que se baseiam os Partidos Pirata.  Há fossos digitais que não podem ser ignorados. Há sujeitos mais aptos a navegar na Internet e que, por isso, ganham preponderância no momento da tomada da decisão via referendo. E há a corrupção, a compra de votos, as ameaças e as chantagens que nenhum dispositivo tecnológico conseguirá evitar.

Significa, isto, um balanço negativo? Um posicionamento disfórico relativamente às consequências sociais e políticas das novas tecnologias de informação e comunicação? Um descrédito, relativamente aos méritos de um «mundo novo» organizado em rede?

Nada disso.

Este vai-e-vem de acções, de experimentações deixa lastro, deixa um resíduo que reconfigura, mesmo que imperceptivelmente, o real ou a sua representação. Contribui, decisivamente, para a construção de um Lebenswelt, para utilizar um conceito filosófico de Husserl e trabalhado sociologicamente por Habermas, que marcará o devir.

 

(Comunicação apresentada no Colóquio “Notícias Falsas e Algoritmos: Responsabilidade Editorial e Liberdade de Expressão no Mundo On-Line”, organizado, em parceria, pela Internet Society, pelo Centro para a Investigação em Comunicação, Informação e Cultura Digital, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, e pela Associação de Estudos Comunicação e Jornalismo, a 24 de Maio de 2017)  

       



[1] Edições Premier Parallèle, Paris, 2017.

[2] “Netativismo: novos aspectos da opinião pública em contextos digitais”, Revista FAMECOS – mídia, cultura e tecnologia, v. 19, n. 1, pp. 27-45, Porto Alegre, Janeiro/Abril 2012.

[3] Cf. de Noam Chomsky, Occupy, Antígona, Lisboa, 2013.

[4] Cf. Elisa Lewis e Romain Slitine, Le Coup d’État citoyen,La Découverte, Paris, 2016, p. 19.

[5] Entrevista ao Journal du Dimanche, 30 de Dezembro de 2012.

[6] Cf. “Réseaux Socionumériques et solidarité”, Hermès – Ces réseaux numériques dits sociaux,  nº59, CNRS Editions, Paris, 2011, pp. 117-122.

[7] Op, cit, p. 27.

[8] Cf. Elisa Lewis e Romain Slitine, op. cit. p. 27.

[9] Idem, p. 31.