Howard Kurtz denuncia a guerra entre Trump e os Media americanos
Uma recente sondagem Gallup/Knight Foundation, citada em artigo do The Washington Times de 23 de Janeiro, constitui reflexo eloquenteda extraordinária polarização do público destinatário dos media americanos.
- Respondendo à pergunta “Acha que dispõe de fontes noticiosas suficientes para apurar os factos”, 72 por cento de democratas acham que sim, contra apenas 31 por cento de conservadores - uma diferença colossal de 41 pontos percentuais.
- Solicitados a concordar ou discordar da afirmação “(A informação) é tão tendenciosa que é difícil apurar os factos”, 26 por cento de democratas discordam, enquanto 67 por cento de conservadores concordam - outra disparidade de 41 pontos.
A explicação para o fosso que separa as percepções dos dois grupos, àcerca da diversidade e fidedignidade das fontes noticiosas disponíveis, é simples: os democratas têem muito mais confiança nos media porque a maioria destes confirma e reforça a ideia que eles fazem sobre o que se passa, enquanto os conservadores acham que a maioria dos órgãos disponíveis não reflecte a verdade do que se passa, não é portanto fiável e tirando esses, não há muito por onde escolher. Por outras palavras, os democratas gostam dos media que têem e não vêem necessidade de vozes alternativas, enquanto os conservadores dispõem de menos opções e vêem-se cercados de fontes em que não confiam.
Não se pode dizer que o resultado desta sondagem, embora chocante, constitua grande surpresa, porque nos E.U.A., desde muito antes do início do processo em curso, de progressiva extinção dos media impressos, com especial impacto nos jornais diários, o domínio do sector por jornalistas democratas ou simpatizantes, era bem sabido e reconhecido - e em consequência, o descontentamento do público conservador com a diversidade e tendência das fontes disponíveis deixou de ser novidade desde há pelo menos três gerações de leitores.
O fenómeno tem vindo a agudizar-se, porém, proporcionalmente ao crescente desaparecimento das fontes impressas disponíveis. Há cada vez menos jornais – que continuam a ser a fonte da maioria das notícias, mesmo que difundidas pelas redes sociais - mas são ainda suficientes para satisfazer leitores democratas, enquanto os poucos que reflectiam pontos de vista conservadores são ainda menos, o que deixa os leitores republicanos ainda mais frustrados.
O domínio de agentes democratas não se limita à comunicação social americana. O mesmo acontece nas artes cénicas, mas a maioria dos cinéfilos conservadores não encontra na jeremiada anti-Trump de Meryl Streep durante a festa de entrega dos Globos de Ouro motivo suficiente para boicotar o filme “The Post”, só pela sua actuação no papel de Katharine Graham, dona do jornal. Talvez nem se tenham sentido incomodados com a diatribe, porque é natural que nem tenham sintonizado o programa, para escapar ao chorrilho de ataques anti-Trump, que se concretizou como esperado.
A mesma tolerância é menos viável quando um leitor conservador tenta, mas não consegue, encontrar nas páginas do The New York Times ou do The Washington Post, um desmentido à falsa alegação da líder da bancada democrata na Câmara dos Representantes de que a proposta da Casa Branca de legalização do estatuto dos 1,8 milhões de imigrantes em situação irregular, trazidos ilegalmente pelos pais para o país enquanto menores de 16 anos, é uma tentativa “racista” de “tornar a América mais branca” (95 por cento desses imigrantes, genéricamente conhecidos como “Dreamers”, não são brancos.)
A ascensão de Donald Trump à presidência dos E.U.A. não pode deixar de ser incluída na equação. É indubitável que a extraordinária ferocidade e constância dos ataques ao presidente pela quase totalidade dos media americanos tem contribuído para a crescente rejeição destes pelo público conservador, pela simples razão de que os seus apoiantes se sentem eles próprios alvo da permanente campanha anti-Trump. [Convém ter em mente que 63 milhões de americanos votaram por ele, e que Trump conta com mais de 100 milhões de fiéis seguidores dos seus “tweets”, não obstante as suas baixas percentagens de apoio, segundo as sondagens, antes e depois da eleição].
A recente ascensão estratosférica do tema das “fake news” (“notícias falsas” como tem sido geralmente traduzido, ou “fictícias”, que prefiro) também ocupa lugar de relevo no panorama e oferece um contraste elucidativo. Para a maioria dos democratas, um bom exemplo de “fake news” é uma das muitas afirmações exageradas ou inexactas de Trump, logo apelidadas de “mentiras” e fácilmente desmentidas como factualmente incorrectas. Para grande parte do público conservador, porém, um exemplo melhor e mais gravoso de “fake news”, porque mais difícil de detectar e de corrigir, consiste na omissão selectiva de informações, a qual cria uma realidade alternativa em que certos acontecimentos não chegam à categoria de “news”, isto é, não são sequer noticiados e portanto não existem. Para este público, as notícias não são “fake”, dado que não chegaram a existir, mas a sua supressão cria uma realidade “fake”, alternativa. É o equivalente a viver sob um regime de censura prévia, em que certos acontecimentos são simplesmente suprimidos.
Muito desse público leu interessadamente a mensagem do Papa Francisco dedicada ao tema das “fake news”, divulgada em 24 de Janeiro, por ocasião do Dia Mundial da Comunicação Social, mas ficou desapontado. Apesar de relativamente extensa - cerca de 2.500 palavras - a mensagem focou-se exclusivamente na versão mais inócua e facilmente desmontável de “fake news” e no valor da verdade como principal objectivo da actividade noticiosa. Incidiu particularmente na disseminação de informação através das redes sociais, excelentes propagadoras, multiplicadoras e deturpadoras de notícias genuínas, boatos e atoardas, mas que raramente geram quaisquer “news”, “fake” ou não. Não há na mensagem do Papa qualquer referência ao efeito pernicioso da criação de uma realidade alternativa através da omissão tendenciosa de informação, por motivos partidários ou ideológicos.
Um exemplo recente é o ensurdecedor silêncio da maioria dos “mainstream media” àcerca de um memorando confidencial do partido republicano sobre abusos e invasões à privacidade de cidadãos americanos, alegadamente cometidas pelo FBI durante o período eleitoral de 2016 - ou seja, durante os últimos meses do mandato de Barack Obama - que o “Permanent Select Committee on Intelligence” da Câmara dos Representantes restringiu, para consulta, apenas a 435 deputados da mesma Câmara, e a cuja disseminação os democratas e o Justice Department (órgão de tutela do FBI) se opõem veementemente.
Irónicamente, este episódio coincide com a exibição do último filme de Steven Spielberg, “The Post”, dedicado à saga da divulgação pelo The New York Times e The Washington Post, em 1971, dos Pentagon Papers, documento confidencial de análise da guerra do Vietname, preparado pelo Departamento da Defesa, que ambos os jornais obtiveram clandestinamente e publicaram, à revelia da administração Nixon.
No caso presente, esses jornais escassa cobertura têem dado ao memorando, o que levanta naturalmente a pergunta: será que manifestariam o mesmo desinteresse, se em 2016 o governo fosse republicano, quando os alegados actos ocorreram? Com quantas colunas e editoriais teriamos já sido brindados, defendendo o direito do público a saber o conteúdo do memorando? E quão difícil será obter cópia de um documento, ou propiciar fuga de informações sobre ele, quando pelo menos 435 deputados tiveram acesso desde há mais de duas semanas? A inevitável desconfiança entre o público conservador é que provávelmente pelo menos alguns media já possuem cópia do documento, mas têem abafado a sua divulgação para não manchar a imagem do governo Obama.
Num editorial introdutório de 2 de Janeiro, assinado pelo novo, recém-nomeado “Publisher” do The New York Times, Arthur G. Sulzberger, este reconhece que “a má informação aumenta e a confiança nos media diminui” e escreve mais adiante: “O Times compromete-se a aderir aos mais altos padrões de independência, rigor e equidade (“fairness”) [...] Continuaremos a valorizar acima de tudo equidade e exactidão em tudo aquilo que publicarmos”. Declaração de princípios inatacável, mas contraditória, por exemplo, com um artigo do mesmo NYT, publicado 21 dias depois, alegando que desde o princípio deste ano já teriam ocorrido, até essa data, nada menos do que 11 “tiroteios” (“shootings”) em escolas americanas.
Sendo conhecida a posição de apoio do NYT aos movimentos restritivos do porte de armas, o escritor Daniel Lee, de Indianapolis, decidiu averiguar e descobriu que os autores do artigo incluiram na contagem incidentes como a descarga acidental, sem vítimas, de uma arma durante uma aula de manejo de armas no Texas, dois suicídios sem outras vítimas (um deles no parque de estacionamento de uma escola encerrada, por um antigo soldado com problemas psiquiátricos), disparos de arma às duas da madrugada depois do embate de um carro contra o muro do parque de estacionamento de uma escola, etc. “Rigor” e “exactidão” não são os primeiros substantivos que ocorrem relativos ao artigo.
Paradoxalmente, tornou-se lugar comum entre comentadores, nas últimas semanas, à mistura com o balanço do primeiro ano de governação da nova administração Trump, a tese de que Trump tem sido uma dádiva celeste para os media americanos, muito especialmente para as estações de TV exclusivamente noticiosas, até recentemente em erosão e julgadas “casos perdidos”, como a CNN, MSNBC, Bloomberg Global News e Fox News - que mantém folgadamente a liderança nas tabelas de audiência, entre as suas congéneres - e para os “late night shows” como os de Stephen Colbert (CBS), Jimmy Fallon (NBC), Jimmy Kimmel (ABC), Greg Gutfeld (Fox News), James Corden (CBS), Trevor Noah (Comedy Central), etc., para os quais os “tweets” de Trump têem constituido um inesgotável maná de inspiração.
Os “ratings” de ambos os grupos têm batido antigos recordes considerados inigualáveis até há um ano, invertendo o declínio registado, principalmente desde o aparecimento de plataformas de comunicação electrónica como YouTube, Facebook, Instagram, Twitter, etc. No ano passado, a MSNBC, por exemplo, pela primeira vez em 17 anos, conseguiu liderar entre as audiências-chave nocturnas dos 25 aos 54 anos. O renascente apetite das audiências de TV tem sido tão voraz que os ratings dessas estações nem foram afectados pela perda de “star hosts” como Bill O'Reilly (Fox News), Matt Lauer (NBC) e Charlie Rose (CBS), todos demitidos no maremoto das revelações de assédio sexual do último ano.
O jornalista e escritor Howard Kurtz não está entre os que vêem na feroz animosidade mútua entre Trump e os media uma benesse para estes últimos, a médio e longo prazo, e o seu livro mais recente, lançado pela Regnery na última semana de Janeiro, constitui, pelo contrário, uma advertência aos seus colegas sobre os riscos à sua credibilidade criados pelo estado de guerra entre os dois lados, que eles têem alimentado.
Kurtz, de 64 anos, é doutorado em jornalismo pela Universidade de Columbia (Nova Iorque) e jornalista profissional desde a sua formatura. A sua carreira inclui três decénios no The Washington Post - para onde entrou aos 28 anos, a convite de Bob Woodward, e onde, a partir de 1990, se especializou na cobertura e análise dos meios de informação. Em 1998, 12 anos antes de deixar o The Washington Post, foi responsável na CNN pelo programa semanal “Reliable Sources” (“Fontes Fidedignas”), de análise e crítica dos media, posição que manteve durante os 15 anos seguintes. Depois de sair do The Washington Post, em 2010, assumiu a chefia da delegação do diário digital The Daily Beast , em Washington, de onde saiu há cinco anos para lançar “Media Buzz” na Fox News, outro programa semanal de análise e crítica dos media, que continua a apresentar ao domingo de manhã.
Desde 1993, publicou até agora seis livros dedicados a diferentes aspectos da comunicação social, incluindo o que acaba de sair, “Media Madness: Donald Trump, the Press, and the War Over the Truth”.
Como seria de esperar, os 25 anos de carreira de Kurtz como analista e comentador dos media, e a sua independência, acarretaram-lhe algumas controvérsias e ataques de colegas, nomeadamente por críticas suas ao trabalho das próprias estações onde trabalhou (CNN e agora Fox News), mas é possível que essas experiências empalideçam em comparação com as previsíveis reacções ao seu novo livro, que certamente será mais aplaudido pelas críticas a Donald Trump do que pelas críticas à cobertura deste pelos media.
Segundo a revista digital Politico, que teve acesso aos capítulos iniciais do livro, Kurtz escreve dos jornalistas que cobriram a campanha eleitoral de 2016, que “falharam em reconhecer aquilo que estava acontecer perante os seus próprios olhos. Foi o fracasso mais catastrófico dos media numa geração”.
Entretanto, em artigo da autoria do próprio Kurtz, publicado na edição de 23 de Janeiro do The Hollywood Reporter - em que ele procurou simultâneamente despertar o apetite pelo seu livro, com algumas revelações, e também definir a mensagem essencial do mesmo, numa interessante iniciativa de antecipação, antes que outros definam o livro por ele - o autor escreve que “Nenhum presidente jamais foi alvo do grau de incessante ridicularização, comentário cáustico e ataques insultuosos arremessados contra Trump”.
Depois de referir que existe “um estado de guerra constante entre o novo presidente e os seus conselheiros mais chegados [por um lado] e o mundo da comunicação – não apenas jornalistas mas também actores, cantores, comediantes e celebridades, muitos dos quais o vêem com puro desprezo”, acrescenta: “Como durante a sua campanha, Donald Trump está a apostar a sua presidência em nada menos do que a destruição da credibilidade dos media, e os media estão apostados em fazer-lhe o mesmo. Isto não é apenas uma briga, uma rixa ou uma batalha. É uma guerra de terra queimada, da qual só um dos lados pode sair vitorioso”.
No artigo, Kurtz faz questão de realçar riscos que a seu ver os jornalistas correm na prossecução da sua guerra contra o presidente: “Os 'mainstream media' […] estão a cortejar uma base de audiência anti-Trump, sem se darem conta de quão desacreditados estão perante grande parte do país. […] Aquilo de que muitos jornalistas não se apercebem é que muitos dos apoiantes de Trump gostam da sua linguagem de rua […] pouco se importam com os seus erros. Por paradoxal que pareça, a cobertura negativa ajuda Trump, porque o aproxima dos que se sentem desrespeitados por comentadores arrogantes”.
No artigo, Kurtz faz uma confissão e um desabafo: “Isto não é fácil para mim escrever. […] Sempre acreditei em jornalismo agressivo e em responsabilizar os políticos. Mas os últimos dois anos radicalizaram-me. Estou cada vez mais perturbado pela desistência de muitos dos meus colegas de aparentarem ao menos algum equilíbrio (“fairness”), em resultado da convicção de terem que livrar o país de Trump”.
Dada a sua longa experiência, é de prever que Kurtz esteja preparado para qualquer das duas reacções mais prováveis ao seu livro, por parte dos seus colegas: o tratamento silencioso, para ajudar o menos possível à sua publicidade, e o aproveitamento selectivo e intencional de certas passagens do livro, em apoio das leituras preferidas que cada comentarista entenda fazer do mesmo.
Desta última abordagem já há exemplos, antes mesmo do livro ter sido posto à venda: Aaron Blake, no The Washington Post de 23 de Janeiro, tentou demonstrar, logo no título do seu artigo, que “Este Novo Livro Sobre Trump Pode Causar Ainda Mais Estrago Do Que O Livro de Wolff”, e no artigo selecciona sobretudo passagens do livro negativas para Trump e para a Casa Branca, ignorando em grande medida que o livro é sobretudo uma análise do comportamento de ambos os lados. A edição americana do The Observer vai na mesma direcção, desvalorizando o conteúdo do livro por constituir nada mais do que “outro 'Fire and Fury'” (o livro de Wolff).
Dos comentários que vi até agora, o mais equilibrado, surpreendentemente é o da CNN (tendo em conta as constantes críticas de Trump à estação), intitulado “O Novo Livro de Kurtz Sobre A Casa Branca de Trump Critica Fortemente Os Media”.
Às vezes a verdade aparece onde menos se espera.