A leitura das crónicas que escreveu na qualidade de Provedor dos leitores do jornal Público, funções que exerceu, infatigavelmente, até às vésperas da sua morte, são elucidativas deste outro Paquete de Oliveira: já não o portador de uma bonomia por vezes desconcertante, mas antes o cidadão empenhado, o militante que denuncia, sem peias, a situação do jornalismo que se faz em Portugal; a intolerância que, segundo ele, vai grassando pelo país; o modo como por aqui se faz política, em particular a submissão do Governo da altura aos ditames da troika que, de 2011 a 2014, assumiu, de facto, as rédeas do poder.

Três aspectos merecem a sua atenção prioritária quando se debruça, criticamente, sobre o “fazer jornalismo” em Portugal:

 

  1. A importância crescente dos conteúdos produzidos no exterior das redacções, com a consequente estandardização de conteúdos e, logo, a diminuição da pluralidade de opiniões. Escreve a este respeito Paquete de Oliveira, numa crónica datada de 30 de Março de 2014:

“O novo contexto em que se move a comunicação pública não pode deixar de considerar os usos e abusos que se fazem das fontes “geralmente bem informadas”. Nem tão-pouco a utilização que os autores dessas fontes, conservando ou pedindo o anonimato, delas fazem. Não podemos ignorar que, hoje, governos, empresas, corporações, organizações dos mais diferentes sectores, do financeiro ao desportivo, têm gabinetes de informação com profissionais do ofício e com estratégias comunicacionais organizadas prosseguindo os mais diversos objectivos”

  1. A estas fontes externas, junta-se o papel dos chamados “comentadores”, contratados ao abrigo de interesses não raramente obscuros. “Comentadores” que suscitam, em Paquete de Oliveira, apreciações profundamente negativas. Vejamos o que ele diz, numa crónica de 25 de Outubro de 2015, ou seja, pouco tempo após as últimas eleições legislativas:

“A maior parte dos comentadores que oiço na rádio e na televisão e leio nos jornais […] fazem-se adivinhadores e arrogam-se ao devaneio de dizerem o que pensaram os seus leitores quando votaram: Não deixa de ser curioso verificar que mesmo aqueles que se diziam isentos, independentes, são abalados neste frenesim de clímax político e deixam emergir nos seus raciocínios o pavor do desconhecido, do tsunami que as águas de esquerda estão a remexer na Assembleia da República”.

  1. Terceiro aspecto, o medo. O medo que se apodera dos jornalistas no contexto de crise que atravessa o campo dos media em Portugal:

“O desemprego, sublinha Paquete de Oliveira numa outra crónica, esta de 15 de Fevereiro de 2016, não é um espantalho. É um pânico terrível e um compreensível propagador de medo”

 

A conjugação dos três aspectos que acabo de referir conduz à generalização de um falso conceito de transparência tornada, segundo Paquete de Oliveira, um mero “epíteto para deixar à vista de alguns o que se quer e para se esconder o que se quer dos olhos de todos”.

Conduz à assimilação pelos media, de uma forma “automática e quase inconsciente”, “da linguagem formal e técnica utilizada pelos burocratas da EU para descreverem a situação portuguesa”.

Conduz, enfim, a situações como esta que Paquete de Oliveira reproduz na sua crónica de 4 de Abril de 2016:

Um jornalista modera um painel na área da economia com dois convidados. Um destes, analisa o Orçamento de Estado de uma forma, citando Paquete de Oliveira, “completamente destrutiva, arrasadora e exibindo como é seu hábito o tom de uma ‘pitonisa’ que prevê para muito breve o caos, o tsunami da economia portuguesa”. E Paquete de Oliveira acrescenta: “O que mais me perturbou [porém] foi quando o moderador deu mais corda a este comentador e concluiu: pois é, brevemente, cá estaremos para o doutor comentar essa desgraça”.

Mas, apesar de todos os constrangimentos que pesam sobre os jornalistas, Paquete de Oliveira não esconde, aqui e ali, a esperança que nutre quanto a uma evolução favorável da profissão:

“Não há mais tempo para paninhos quentes”, declara numa crónica publicada a 17 de Dezembro de 2015 “[o jornalismo], sem falsas especulações e com boas pinças, tem de mostrar os enredos destas peripécias ocultas que sugam o país e o seu povo”. Tem de mostrar a “situação comatosa de grande parte do nosso sistema financeiro”.

 Noutras crónicas revela a mesma esperança num jornalismo melhor. Capaz de distinguir entre “interesse público” e “interesse do público”. Entre “informação” e “propaganda” que ele define, recorrendo a Lucien Sfez, como “um aspecto patológico da comunicação política”. Capaz de renunciar à “exaltação do grotesco”. Um jornalismo consciente do papel institucional que lhe cabe enquanto vigilante da actividade pública em contexto democrático. Daí que a sua conduta, acentua Paquete de Oliveira, não possa resumir-se a dar eco às lutas partidárias. “Registando-as, escreve em 19 de Julho de 2015, tem o dever de as desconstruir”.

Repito: “registando-as, tem o dever de as desconstruir”.

Internacionalmente, e é ainda Paquete de Oliveira que nos fala, o jornalismo tem de acompanhar de perto a problemática das migrações, “não só dando notícias das catástrofes ou do aumento desse fenómeno mas fustigando a Comissão Europeia, que não pode deixar de ‘corar’ pela delonga com que tem encarado este assunto”. “Ah! Se fosse um banco a falir…” exclama Paquete de Oliveira. Por outro lado, o jornalismo “tem de explicar o autoproclamado Estado Islâmico, a nova reconfiguração do Médio Oriente e os mais sofisticados métodos de fazer guerra”.

Muito mais coisas haveria a dizer sobre o posicionamento de Paquete de Oliveira em relação aos media. Um posicionamento que marcou indelevelmente a sua carreira como professor durante a qual procurou, insistentemente, denunciar as pseudo-evidências.

Mas o tempo urge e gostaria de deixar aqui duas ou três notas sobre as suas preocupações mais de natureza política. Preocupações que marcaram, aliás, a última Conferência que proferiu, organizada no dia 3 de Março de 2016, pela Associação de Estudos Comunicação e Jornalismo, da qual é o Sócio Nº1.

Nessa Conferência, em que nos transmitiu o teor de algumas notas alinhadas em catadupa, “não sistematizadas, ordenadas, dispostas quantitativa ou qualitativamente, como mandariam as regras metodológicas de um estudo científico”, devido, como confessou, ao seu estado de saúde, nessa Conferência abordou a agonia do modelo encabeçado por Pedro Passos Coelho. E cito-o:

“[…] um Governo ‘acorrentado’, sem respiração nem decisão política próprias [que] obedece servilmente e com exagero cego e desmesurado ao pacto assinado entre PS, PSD e CDS. Obedece a Merkel e a um grupo de chefes burocratas que mandam nos desígnios europeus explanados em regras puramente financeiras, mas sem qualquer perspectiva política”.

E abordou o modelo que se lhe seguiu: o da chamada “geringonça”, expressão que Paquete de Oliveira acha “interessante e apropriada”, até por designar aquilo que ele entende como sendo uma situação política de “instabilidade periclitante”.

“Pela primeira vez nos quarenta anos de democracia, observa Paquete de Oliveira, os partidos de esquerda (BE, PCP e PEV) dão sinais de terem deixar de ser apenas simples comparsas contestatários na AR, para se tornarem actores actuantes nas determinações do país”.

Tal mudança fez com que, e permitam-me que cite de novo Paquete de Oliveira, “os ‘empenhados’ habituais na distribuição do poder executivo do país”, comparsas do dito “arco da governação”, tenham acordado em “sobressalto”.

A este propósito, assinala Paquete de Oliveira:

“Seria interessante, e quiçá revelador, que um grupo de investigadores procedesse a um estudo da linguagem utilizada para referenciar este momento. Expressões tiradas do baú, tais como, vem aí ‘um novo PREC’, estamos perante um ‘golpe de Estado’, ‘cuidado, vêm aí os comunistas’, saem da boca de personalidades políticas tidas até aí por recatadas e surgem menções de referência à insólita situação, mesmo entre os mais consagrados ‘opinadores’ do reino”.

E a terminar, duas citações. Uma sobre Cavaco Silva e outra sobre o seu sucessor, Marcelo Rebelo de Sousa.

Sobre Cavaco Silva, diz Paquete de Oliveira:

“[…] despede-se de nós um presidente despeitado, inconformado e rancoroso com o curso dos acontecimentos. Um Presidente que teve o desplante (valeu a sinceridade) de dizer que, apesar de tudo e das cores do actual Governo e daqueles partidos que lhe dão suporte, resolveu manter o protocolo de cumprimentos natalícios em Belém, aos ministros. Tenho pena, repito, de me despedir de um Presidente deste modo”.

E sobre Marcelo Rebelo de Sousa? Oiçamos, ainda, Paquete de Oliveira:

“Marcelo será com certeza, uma personagem toda diferente daquelas que têm habitado aquele palácio. Marcelo ‘criou’ o candidato vitorioso. Agora vai criar o presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Centro-direitista e constitucionalista por formação, mas anticonvencional e pouco formalista, vai baralhar os costumes mumificados daquele palácio. Que continue a dormir pouco para ter tempo de rasgar um caminho de um Portugal com amor-próprio deprimido, sem perspectivas de um mundo novo que desponta, e rume para combater toda esta descrença que consome este país, todo curvado e ajoelhado aos ditames dos seus ‘sitiadores’. Internos e externos. E já não seria pouco.”

E Paquete encerra a sua Conferência com esta frase, tão irónica quanto lapidar: “Até eu me reconverteria à criação desta criatura”.

Na crónica em que celebra o quadragésimo aniversário da Revolução de Abril, Paquete de Oliveira interroga-se sobre a sua própria função de Provedor.

Estamos perante um autêntico meta-discurso, do qual respigo dois parágrafos essenciais.

Primeiro parágrafo: “Porventura todos os que funcionamos no ‘sistema dos media’ acomodámo-nos ao modo rotineiro de funcionar do sistema. Somos por demais tautológicos. Estamos de boa-fé, de irrelevante consciência crítica, autoconvencidos de que somos bons ‘cães de guarda’ do sistema, dos Estados, dos governos […] Temos medo de ofender o poder. Andamos encantados com a liberdade de dizer tudo que nos vem à cabeça, mas não usufruímos, por negligência, medo ou ignorância, da condição livre de procurarmos entender e explicar o que se está a passar, o que estamos a passar, e porquê.

Foi assim, que Paquete de Oliveira quis recordar Abril. Chamando a atenção para algumas “questões de fundo”, como ele frisou, que configuram o sistema global de dispositivos mediáticos, incluindo o provedor.

“Questões de fundo” às quais ele entende que urge responder. E dou mais uma vez a palavra a Paquete de Oliveira: “Isto se não quiser ficar para a História como arguido. Acusado de inépcia. De não ter prestado serviço”.

Paquete de Oliveira singulariza esta responsabilidade social e política. Mas a responsabilidade dele, é a responsabilidade nossa. Ao interpelar-se, Paquete de Oliveira interpela-nos a todos. É parte da herança que nos deixa.


(Intervenção proferida  no X Congresso do Sopcom)