Do que a carta trata é essencialmente de adequar o conteúdo do jornal às novas tecnologias. O leitor continua a ser a principal preocupação do jornal, o “leitmotiv” de todo o trabalho, pelo que não haverá que mudar muito nesse capítulo. Como diz Caño, “este novo espaço pretende continuar sendo o melhor lugar para publicar os mais importantes jornalistas, escritores, ilustradores, fotógrafos, designers e outros criadores de informação e cultura em língua espanhola, mas hoje o conteúdo é tão importante quanto a forma de fazê-lo chegar ao nosso público”.


Quer dizer: o jornalismo de “El Pais” não vai mudar muito, provavelmente tentará ser mais criativo, como sempre foi, de forma crescente no papel. O que muda é o negócio da comunicação e quem o gere sabe bem que nenhuma mudança terá sucesso se com ele mudar a essência do jornalismo, se o produto deixar de ser útil e credível para o leitor.

Vai para bem mais de 40 anos, um administrador do nosso velhinho “Diário Popular” clamava aos jornalistas mais novatos e, por isso mesmo, pensava ele, mais assustadiços, que para fazer o jornal lhe “bastavam dois ou três jornalistas, assim houvesse tesoura e cola”. Era o tempo de um jornalismo em crise económica e de valores – o “corta e cola”, ainda com os telexes barulhentos como principal fonte de informação. Esse jornalismo morreu breve, breves foram os tempos desses gestores de pacotilha que pouco sabiam de números e recursos humanos e nada de jornalismo.

Mas o tempo trouxe-nos outros vícios e outros administradores, os que esvaziaram as Redações de jornalistas, os que escolheram segundo o ordenado mais baixo, os que mataram os correspondentes, primeiro no estrangeiro, depois no País, até mesmo ao pé da porta (quantos jornais sabem hoje o que é ter um correspondente em Belém?). Os que em nome de uma qualquer modernidade impuseram grafismos fantásticos, desarrumando páginas e conteúdos que perderam unidade e coerência. Os que mataram os enviados-especiais aos grandes acontecimentos mundiais ou onde quer que interessasse haver um ponto de vista português. Os que reduziram o espaço para reportagem, para entrevista ou para notícias e respetivo enquadramento, porque “ninguém lê”, porque o “papel está caro”. Onde vão as crónicas dos jornais? Onde estão os cronistas? Boas ideias, como páginas de leitura rápida, passaram de exceções a regras, reduzindo os jornais a uma massa de textos incoerente, bastas vezes com informação menor do que aquela que muitos leitores detêm.

Depois, veio – estamos nessa fase – a voz do dono. Nunca como hoje, em democracia, os jornais foram tão servis ao mesmo interesse económico, tão diligentes a apoiar a austeridade mais austera. As críticas ao atual governo, desde a sua criação – na Assembleia, respeitando a lei da maioria - até aos maus augúrios orçamentais, passando pelo tom reverencial com que são reproduzidas classificações de agências que tratam o país como “Lixo” mostram-nos, com raras exceções, um jornalismo servil a lembrar as vozes que na salazarenta Assembleia Nacional sempre sublinhavam as observações do chefe com um sonoro e pesado “muito bem!”.

Também o “voyeurismo” entrou pela porta da transparência democrática, entregue a justicialistas e a uns quantos mais que confundem interesse público com interesse do público dando à estampa os maiores desmandos, sem respeito pela privacidade dos que atingem, sempre em nome desse direito maior à Informação. O “socialite” ganhou estatuto de secção, páginas e páginas que despiram os jornais de conteúdos sérios, agora vistos como chatos, que ninguém quer ler e que afastam a publicidade.

Em nome das boas contas, a publicidade invadiu as primeiras páginas, saltou dos rodapés para o meio das notícias e ganhou estatuto que bastas vezes lhe permite aparecer dissimulada de texto informativo.

“El Pais” prepara a mudança, mas não vai “renunciar aos valores de liberdade e independência que nos trouxeram até aqui. Incorporaremos – diz Antonio Caño - novas dinâmicas de trabalho que sejam capazes de aumentar a qualidade e a quantidade dos conteúdos e dos produtos que o EL PAÍS oferece e que hoje podem ser lidos em papel, por meio de aplicativos móveis, televisões inteligentes ou redes sociais. Mas estaremos vigilantes para que em todas essas plataformas a marca do EL PAÍS esteja presente.”

Em Portugal, a crise que a Imprensa atravessa precisa de uma mudança como esta. Mas antes disso, carece de outra não menos difícil que passa por uma reposição dos valores que credibilizam o jornalismo. Nos últimos 50 anos tivemos boas escolas desse jornalismo em Portugal. Não há como voltar aos clássicos. Com coragem para enfrentar os novos donos disto tudo e confiando e dando meios aos bons jornalistas que nas suas Redações anseiam por provar que não é o jornalismo que está em crise.