Finalmente, uma entrevista realmente exclusiva…
Durante seis meses, Guzmán, chefe do cartel de Sinaloa, considerado o maior narco-traficante do mundo e responsável por metade do tráfico de drogas nos E.U.A., foi o fugitivo mais procurado do México e alvo da maior caça ao homem de que há memória nesse país.
A “entrevista”, acessível na íntegra em http://www.rollingstone.com/culture/features/el-chapo-speaks-20160109, é na realidade um artigo de 10 mil palavras sobre o encontro de Penn com Guzmán em 2 de Outubro, em que a entrevista em si - isto é, o texto das perguntas, enviadas por escrito, e das respostas, recebidas em video - representa menos de uma quinta parte do total. O resto é uma narrativa dos preparativos para o encontro e das sete horas que o mesmo durou, em que Penn usa a primeira pessoa do singular “I” (“eu”), e os possessivos “my” ou “mine” (“meu”) exactamente 240 vezes.
Ou seja, o artigo é bastante mais um exercício de narcisismo do autor, plenamente confiante no interesse do leitor pela sua pessoa e pelas suas cogitações sociológicas e antropológicas, do que um esforço de esclarecimento jornalístico em primeira mão, acerca de um dos maiores criminosos da história. Segundo algumas estimativas, o cartel de Sinaloa seria responsável por cerca de metade dos 120 mil mortos nas guerras da droga do último decénio, no México.
Dessas sete horas de amena conversa, Penn extraiu conclusões iluminadas acerca do carácter de Guzmán, que resume em expressões como “este homem simples vindo de um lugar simples, rodeado do afecto dos seus filhos para com ele, e do seu afecto por eles.” Este é o “homem simples” que é citado por Penn no mesmo artigo dizendo “forneço mais heroína, metanfetaminas, cocaína e marijuana no mundo do que ninguém. Tenho uma frota de submarinos, aviões, camiões e barcos.” E ao qual Penn faz perguntas acutilantes como “Como é a sua relação com a sua mãe?”
Por essa e por outras razões apontadas por comentadores nos últimos dias, que resumirei adiante, não é de esperar que o artigo de Penn seja candidato a um Pulitzer, mas merece apesar disso algum reconhecimento. Por exemplo, eis finalmente uma entrevista - por mais tépida que seja - que tem realmente direito à reivindicação de “exclusiva”, tão usada e abusada pelos media, que de há muito passou a ser sinónimo de não haver mais nenhuma entrevista com o mesmo entrevistado, na mesma edição da mesma publicação. Ao menos neste caso, não há registo de Guzmán ter dado qualquer outra entrevista. Jamais.
Além disso, devem caber nos dedos de mãos ambas, as vezes em que o autor de uma autêntica cacha de primeira grandeza, citada e comentada durante dias pelos media do mundo inteiro, não foi sequer um jornalista, mas um actor de cinema.
Também não consta que jamais uma entrevista de um criminoso, mesmo do calibre de Guzmán, feita por um actor famoso, tenha merecido uma menção do mestre de cerimónias dos Globos de Ouro, Ricky Gervais, na noite seguinte à publicação da entrevista. Depois de prevenir a crème de la crème de Hollywood, presente no Beverly Hilton para a atribuição dos prémios deste ano, Gervais avisou que se preparassem para uma cascata de piadas ofensivas e insultuosas, acrescentando que, a seguir, se esconderia tão bem que “nem o Sean Penn conseguirá encontrar-me.”
Entre outros comentários arrasadores da entrevista, destaca-se o de Steven Brill, jornalista veterano e ex-professor de jornalismo em Yale, que caracterizou o artigo de Penn como “simplesmente mau jornalismo”, a começar pelo facto de a revista ter concordado que Guzmán tivesse a última palavra sobre o conteúdo do artigo. Embora Guzmán não tenha feito qualquer alteração, a concessão é óbviamente imperdoável.
A justificação de Jann Wenner, fundador e “publisher” da Rolling Stone foi “um pequeno preço”, para conseguir a entrevista com Guzmán. Em contraste, muitos jornalistas entenderam que esse “pequeno preço” é mais uma mancha na reputação da revista, enxovalhada, há pouco mais de um ano, por uma reportagem acerca da alegada violação de uma estudante da Universidade da Virgínia, que se provou ser falsa.
Não obstante, as razões que levaram Wennera declarar que considera a entrevista “no topo, ou próximo do topo” das melhores cachas de sempre da revista, são fáceis de entender. Hiperbólicamente, “haveria quem trocasse um filho” pela entrevista, disse.
David Folkenflik, o correspondente de media da NPR (National Public Radio), depois de criticar o artigo como “limitado, pouco revelador e auto-elogiativo” do autor, e “inábil em expôr a actividade mortal e destruidora de Guzmán no seu país e no nosso”, reconheceu que o benefício para a Rolling Stone “não pode ser subestimado”, porque criou um interesse tremendo pela revista (“It’s getting a ton of traffic for them”).
Kelly McBride, numa análise detalhada, publicada na edição de 11 de Janeiro da revista do Poynter Institute for Media Studies, proprietário do Tampa Bay Times, opina: “O problema não é Sean Penn. É o seu editor.”
Segundo ela, cabe ao editor relembrar ao jornalista que nunca deve permitir que o entrevistado possa rever o texto, e que a “lealdade do jornalista é devida aos leitores, e não ao sujeito da entrevista”. As perguntas a fazer são aquelas para as quais os leitores gostariam de ver resposta. O editor deveria ter preparado Penn para “pôr de lado o seu próprio ego e abordar a entrevista do lado dos seus leitores.”
Quanto ao texto final, aponta como principais lacunas no trabalho de Penn, além da falta de dados sobre a economia regional em que o cartel de Sinaloa se insere, a ausência de comentários de um sociólogo ou economista (em vez de expôr as suas próprias ideias acerca de factores societários na criação do império de Guzmán), de um especialista na criminalização das drogas, de vizinhos de Guzmán na sua área de operações, de familiares das suas vítimas, e de jornalistas mexicanos, dada a frequência com que muitos destes têm sido assassinados pelos cartéis da droga. McBride considera como principal responsável por essas falhas, além de Jann Wenner, o editor Jason Fine, que participou na preparação do rascunho final, e afirma, a terminar, que a Rolling Stone parece ainda não ter aprendido a lição da infeliz reportagem falsa de 2014.
Nota Final: Segundo a TMZ, a camisa com que Guzmán aparece na foto com Sean Penn, publicada no artigo da Rolling Stone, está esgotada na loja Barabas de Los Angeles. As vendas dispararam após a publicação do artigo, e segundo o gerente da loja, o acesso ao site foi tal que este entrou em colapso. A camisa custava 128 dólares antes de desaparecer, mas a notícia da TMZ não indica quando voltará a estar disponível…