Do debate ao combate: a mediatizacão da política
A terceira fase inicia-se com a abertura da actividade televisiva à iniciativa privada. Multiplicam-se os suportes de comunicação. Acentua-se a competitividade entre Canais cada um dos quais procura ganhar mais peso numa esfera pública onde emerge o populismo, o anti-elitismo. Acentua-se o “princípio da precaução”, de que nos fala François Jost, ou o “efeito mimético” teorizado por Pierre Bourdieu, em que os diferentes órgãos de comunicação social preferem alinhar-se uns pelos outros no sentido de evitar correr riscos.
A comunicação política vai deixando de ser um exclusivo dos jornalistas políticos. A seu lado, surgem outros actores, com outros propósitos e outras linguagens. Para usar um conceito de Aurélien Le Foulgoc, desenvolvido em Politique & Télévision, à “comunicação centrípeta”, assente no jornalista político, sucede a “comunicação centrífuga” caracterizada pela multiplicação de actores no processo comunicativo: comentadores, apresentadores, animadores, moderadores, etc.
Assiste-se a uma porosidade crescente entre informação e entretenimento, dando origem ao chamado infortainement. Todos os meios são mobilizados para satisfazer os gostos imediatos de um público que se assume como mero consumidor. As hard news, que convocam a reflexão, cedem lugar às soft news, ligeiras, coloridas, de recepção instantânea. A “informação episódica” sobrepõe-se à “informação temática”, como sublinha Shanto Iyengar, citado por Le Foulgoc. Adopta-se uma nova retórica, mais fluida e menos sequencial. Adopta-se um vocabulário auto-referencial em que prevalece o “eu”, o “meu”, o “eu sou”, em detrimento de uma referência mais colectiva. O registo discursivo rodeia-se de contornos mais personalizados. Mais familiares. Constroem-se os cenários mais convenientes: “Os lugares, ao serem apropriados pela televisão”, sublinha François Jost, em Pour une éthique des médias, “deixam de ser aquilo que são, na verdade, para adquirirem uma outra dimensão semântica”. Criam-se pseudo-acontecimentos, no sentido dado à expressão pelo historiador Daniel Boorstin.
Por sua vez, o sucesso do animador, do entretainer, assim como o sucesso do programa dependem da sua aceitação pública. É o público que faz a carreira do comentador / apresentador / animador / moderador. A este propósito, diz-nos Pasquier Chalvron-Demersey:
“Sem o seu público, o animador não é nada… Com a forca do seu público ele é tudo… É o plebiscito popular que lhe permite manter-se na antena, justificar as suas pretenções, impor as suas vontades”.
O público faz a carreira do comentador/apresentador/animador/moderador e faz, igualmente, a carreira do programa.
Instala-se a ditadura do share.
E a grande maioria dos dirigentes políticos aceita jogar o jogo. Adaptam-se e reproduzem a linguagem e a postura que o contexto lhes aconselha: Promis, j’arrête la langue de bois, é o título de um livro publicado pelo dirigente político francês da direita moderada, Jean-Francois Copé, que se apressou a lembrar e a cumprir o prometido num dos talkshows televisivos em que participou. Riem. Gesticulam. Habituam-se a lidar com a câmara televisiva, olhando decididamente para a teleobjectiva numa tentativa de criar empatia junto do público espectador presente/ausente no estúdio. Sob pena de as suas palavras não atingirem o objectivo almejado.
Nas últimas eleições presidenciais norte-americanas, de 2012 o debate televisivo entre Barack Obama e Mitt Romney foi, segundo as sondagens então realizadas, ganhas pelo candidato republicano: Razão invocada pelos comentadores: Em vez de falar para a câmara, dirigindo-se a todos os telespectadores, ou olhar para o seu lado esquerdo, dirigindo-se directamente ao seu adversário, Obama ter-se-ia fixado insistentemente no moderador, situado fora do campo da representação, como se apelasse, desesperadamente, ao socorro deste. Um olhar vazio, um olhar errático, um olhar frágil. Um olhar nada convincente.
Tudo o que importava evitar, naquele momento.
Ficou para a história das Ciências da Comunicação o debate entre Richard Nixon e John Kennedy, nas eleições de 1960, o primeiro a ser transmitido para todo o país. Elegante, sorridente, descontraído, determinado Kennedy impôs-se facilmente a um candidato inseguro, pálido, a enxugar, com um lenço, a transpiração que lhe inundava a testa. Ao ponto de a mãe lhe telefonar, logo após o fecho da emissão, para lhe perguntar se ele estava bem de saúde.
Em termos eleitorais, o resultado é conhecido.
É certo que alguns políticos tentam remar contra a maré, insurgindo-se contra uma estratégia comunicativa que os reduz ao perfil de meros figurantes. Que os reduz ao estatuto de comparsa numa relação que, pouco preocupada em explicar, procura sobretudo divertir. Assim, por exemplo, o dirigente socialista francês Vincent Peillon recusou, publicamente, participar na emissão À vous de juger emitida pelo Canal France 2 em Janeiro de 2010. Mais contundente, ainda, Arnaud Montebourg, também ele socialista, apelou, num artigo publicado na Revista Le Point, em Janeiro de 2006, ao boicote do programa 20h10 Pétantes:
“Fogiel [Marc-Olivier Fogiel, apresentador de televisão] destrói o debate político! Porque lhe falta a cultura, utiliza um microfone mais forte do que o do seu convidado e dispõe de uma arena à mão de semear para o manter sob o seu controle. Nunca vos deixa terminar uma frase. Submete-se aos poderosos e assassina os outros. Apelo, por isso, a todos os dirigentes políticos para que boicotem esse tipo de emissões”.
Em vão. A Sociedade Espectáculo, premonitoriamente desenhada por Guy Debord, nos finais da década de sessenta do século passado, não deixa alternativa.
Enfim, a quarta fase na evolução da comunicação política é um aprofundamento da anterior. É um adensar dos traços já observados nesta.
Recorrendo a Platão, Jacques Rancière enuncia, no seu livro intitulado Nas Margens do Político, os “títulos” que autorizam o exercício da arkhé (o governo da cidade): antiguidade, nascimento, riqueza, virtude, saber. É assim que se funda, acrescenta o mesmo autor, o poder dos pais sobre os filhos, dos velhos sobre os novos, dos mestres sobre os escravos, dos nobres sobre os vilões, dos fortes sobre os fracos, dos que sabem sobre os que não sabem. A democracia, como modelo impeditivo de qualquer forma de oclocracia – o poder da multidão, da turba - caracteriza-se, no entanto, pelo facto de a condução dos destinos da comunidade – e da regulação do médio e do ódio – ser entregue a quem não tem “título”. Neste caso, é a ausência de “títulos” que define o “título” de quem governa e que é obtido por delegação do poder do povo.
Com a mediatização da política, nomeadamente via neotelevisão, o debate visando o esclarecimento, enquanto condição indispensável a essa delegação, é substituído pelo combate. À livre troca de argumentos entre sujeitos que partilham o mesmo topos, logo, que reconhecem reciprocamente a legitimidade do outro, sucede a desqualificação do adversário, tornado inimigo que urge vencer.
Custe o que custar.
Recorre-se então à mentira, à ameaça, ao insulto, à provocação. Actualizam-se, em suma, os 38 estratagemas enunciados por Shopenhauer em A Arte de ter razão. A campanha que redundou no Brexit, e as prestações televisivas de Donald Trump e de Hillary Clinton, nas eleições para a residência dos Estados Unidos, ilustram, eloquentemente, esta passagem.
Em Julho de 2016, Katharine Viner publicou no The Guardian um Manifesto denunciando as manobras utilizadas para convencer os eleitores, no referendo relativo à posição da Grã-Bretanha face à União Europeia. Pouco tempo bastou, declara a jornalista Katharine Viner, para que os britânicos se apercebessem, brutalmente, de que o campo vitorioso não tinha qualquer estratégia para sair da União Europeia e que o discurso produzido por esses adeptos do Leave durante a campanha estava eivado de falsidades.
E dá exemplos.
Às 6 horas e 31 minutos da manhã de 24 de Junho, isto é, pouco mais de uma hora após o anúncio dos resultados definitivos, Niguel Farage, líder do Partido para a Independência do Reino Unido (Ukip), reconhecia que a saída da União Europeia, contrariamente ao que tinha sido largamente apregoado durante a campanha, não permitiria recuperar 350 milhões de libras por semana para as Caixas da Segurança Social. E, insista-se, este era um dos argumentos centrais da campanha. Algumas horas depois da confissão de Niguel Farage, um eurodeputado conservador, Daniel Hannan, admitia por seu lado que, apesar do que tinha sido incansavelmente repetido pelos apoiantes do Brexit, a saída da União Europeia não iria provocar nenhuma baixa sensível da imigração.
Dizer uma coisa hoje e dizer amanhã o seu contrário: eis o que não perturba o político envolvido num combate. É aquilo a que François Jost, referindo-se ao antigo presidente da República francesa e candidato anunciado às próximas eleições de Abril 2017, Nicolas Sarkosi, chama o “efeito ardósia”: apaga-se para se escrever de novo...
Durante meses, a imprensa britânica eurocéptica deu cobertura, com enormes manchetes, aos principais argumentos da campanha pela saída da UE, sem verificar, minimamente, a sua veridicidade. Foi o caso do Daily Mail que, uma semana antes do voto, publicou uma foto de imigrantes pendurados nas traseiras de um camião com o título: Vimos da Europa, deixem-nos entrar”. Em contrapartida passou praticamente em claro o homicídio da deputada trabalhista Jo Cox, favorável à manutenção da Grande Bretanha na União Europeia. No dia seguinte, o próprio Daily Mail, acompanhado pelo Sun que havia, igualmente, publicado a foto, viram-se compelidos a inserir um desmentido: os tais imigrantes tinham vindo, directamente, do Iraque e do Koweit, e não da Europa.
Nem a BBC escapou à tentação manipuladora. Mesmo que 99 especialistas previssem um desastre económico, a haver Brexit, bastava um afirmar o contrário, como nota Katharine Viner, para que o Canal, expoente suposto da neutralidade jornalística, nos explicasse que “cada campo faz uma análise diferente da situação”. Nivelação artificial de posições, pois. Posições colocadas face a face, como expressões de uma mesma mas ilusória pluralidade.
Mas o cúmulo do desplante é atingido por Arron Banks, grande financiador do Ukip assim como da campanha do Leave. Entrevistado pelo Guardian, não hesitou em afirmar que os seus camaradas sabiam, desde o princípio, que uma campanha baseada apenas em “factos” não conduziria a nada de bom:
“Era preciso fazer uma abordagem mediática ao estilo americano” (…) Os partidários do Remain não perceberam isso. Pior para eles. É indispensável criar um laço emocional: chave, aliás, do sucesso de Trump”.
Trump, a estrela do reality-show que dá pelo nome de O Aprendiz, em que ele desempenhou o papel do “Bom Patrão”. O comportamento de Trump e de Hillary Clinton, principais protagonistas das presidenciais norte-americanas, é detalhadamente analisado num artigo publicado na Revista do Expresso, de 8 de Outubro, assinado por James Fallows, um dos redactores dos discursos pronunciados pelo antigo presidente Jimmy Carter.
Tal como determina a Constituição e a prática política nos Estados Unidos, Donald Trump teve, num primeiro momento, que vencer os restantes candidatos republicanos à candidatura presidencial. Não faltou violência, nessas Primárias, por parte do candidato que, do alto do seu 1,90, olhava de esguelha, com manifesto desdém, para os restantes concorrentes. A resposta destes foi, porém, de uma confrangedora timidez: “Todos pensávamos que o Verão de Trump não iria durar. Por isso, a nossa estratégia inicial não consistiu apenasem ignorá-lo. Consistiu, também, em evitar ofender os seus apoiantes, de modo a sermos alternativa quando a sua inevitável queda se verificasse”, reconhece Alex Conant director de comunicação da campanha de Marco Rubio.
Erro estratégico que os concorrentes de Trump, à investidura republicana, pagaram caro.
Desde a sua primeira intervenção televisiva, a linguagem de Trump revelou-se de grande simplicidade. Uma linguagem rústica para um discurso redondo. Submetida a um aparelho que analisa o grau de complexidade de leitura, o discurso de Trump foi equiparado ao de uma quarta classe, para usar a antiga hierarquização dos estudos em Portugal.
Rusticidade de linguagem e aposta em frases-choque, daquelas que suscitam aplausos imediatos e que Kerbrat-Orecchioni e Maurice Mouillaud estudaram em Le Discours Politique: “Se está tudo a ficar um pouco aborrecido, se vemos que as pessoas talvez estejam a pensar ir-se embora, posso dizer ‘Vamos construir o muro’ e elas ficam loucas” observa Donald Trump numa entrevista ao New York Times. Noutra ocasião proclama “Vamos fazer grandes negócios”, inscrevendo, assim, o seu público, no universo do empreendedorismo e no mito da riqueza ao alcance de todos, de que ele seria o melhor exemplo.
À linguagem verbal extremamente limitada acrescenta-se uma impressionante imobilidade corporal. São raros aqueles sinais que ou enfatizam ou desvalorizam o discurso. Rosto impassível: apenas um ligeiro arquear de sobrancelhas. Braços corridos ao longo do corpo: apenas um dedo indicador em riste, ou unido ao polegar, numa espécie de círculo.
E é tudo.
Imperturbável.
Daí, talvez, a sua facilidade em mentir. Daí, talvez, a facilidade em se contradizer. Daí, talvez, a facilidade com que reage às investidas. Daí, talvez, a sua desfaçatez: não pagou impostos durante mais de uma década? É sinal de que conhece bem o sistema fiscal. Daí, talvez, a naturalidade com que produz afirmações timoratas ou inexequíveis: “Eles [os mexicanos] vão pagar o muro”, “Vou meter a China na ordem”. Daí, talvez, a forma sistematicamente positiva como avalia as suas prestações televisivas: “foi maravilhoso”, “grande triunfo”. As sondagens vão no sentido inverso? Que importa? Ao dizer, Trump como que converte o seu dito em feito, num simulacro de acto performativo, para recorrermos ao conceito de John Austin.
Por desconhecimento das questões, ou para não tomar posição Trump desvia-se das perguntas embaraçosas.
Por vezes, refugia-se numa postura metadiscursiva, questionando a própria pergunta. À pergunta: “A partir de quê é que alguém se pode considerar rico”, responde: “Mas o que é ser-se rico?”. Doutras vezes, provoca um deslizamento de sentido. Pergunta: “O que pensa sobre a tríade nuclear?”. Resposta: “Para mim, nuclear só o poder”. A expressão “tríade nuclear” remete para os três sistemas que transportam armas nucleares – bombardeiros, mísseis terrestres e submarinos. Trump ignora-o? A hipótese é verosímil. O que se observa, em todo o caso, é que ele se empenha no deslizamento de sentido da palavra “nuclear”.
“Não basta que eu seja um vencedor. É preciso que cada um dos outros seja um derrotado”.
Frase lapidar esta, de um Donald Trump que exprime o seu propósito de esmagar o interlocutor: pela humilhação, pelo ridículo. Ainda as estratégias de Shopenhauer. A Bush, chama “Jed de baixa energia”; a Marco Rubio, o “Pequeno Marco; a Ted Cruz, “Ted o mentiroso”.
Marco Rubio tentou ainda responder no mesmo campo, ao chamar a atenção para as mãos pequenas de Trump. Que lhe respondeu de imediato, subindo a parada. Significativamente, neste campo, Trump é imbatível.
Na série de três debates finais, com Hillary Clinton, Trump esgota o seu arsenal de diatribes, numa última tentativa de inverter a tendência para a descida da sua quota de popularidade que todas as sondagens indicam.
Acusam-no de tratar mal as mulheres. De as ofender. De as desprezar. Então, que dizer de Bill Clinton e das suas aventuras com Mónica Lewinsky, interroga-se e interroga, sem para ela olhar, a sua opositora, justamente a mulher atingida por tal traição. E remata, peremptório: “No meu caso são palavras, no caso dele são acções”.
“Quando ganhar, vou dar ordens ao Procurador-geral para nomear um Procurador especial para indagar sobre a sua situação. Vou mandá-la prender”: No confronto de domingo para segunda-feira, da semana passada, Donald Trump ultrapassou, assim, todos os limites admissíveis num regime democrático.
E do lado de Hillary?
Do lado de Hillary, a preocupação está em exibir tranquilidade, mostrando, por contraste, o sobressalto que Trump corporiza. Em escapar à armadilha de ser vista como “insultuosa” ou como “zangada”. Com efeito, o insulto e a zanga são actos ou características que a sensibilidade sexista aceita e compreende no homem. Mas que rejeita na mulher.
Paternalista, deixa escapar um “Lá está você outra vez!”, expressão celebrizada por Ronald Reagam num confronto com Jimmy Carter em 1980.
Condescendente, cita Michelle Obama para retorquir os desvarios do candidato republicano: “Quando alguém baixa o nível da discussão, é preciso elevá-lo”. Citação que envolve um duplo objectivo: situar-se num plano superior e suscitar um processo de legitimação através da figura simpática, para um segmento significativo do eleitorado norte-americano, como é a da mulher do ainda presidente.
Liberal, aceita partilhar, com o outro, o espaço da discussão política. Liberalidade e aceitação apenas aparentes já que, subtilmente, emprega, por vezes, a preposição isto para designar esse outro. “Como é que isto poderia chegar a residente da República?”
Voz cuidadosamente colocada. Gestos estudados com rigor. Queixo erguido. Olharem frente. Altivo. Frases curtas e lentamente pronunciadas para denunciar o falso milionário, o falso empresário de sucesso. Para evidenciar o ridículo de tudo quanto ele diz.
Para o provocar até ele explodir.
Daqui a dias, saber-se-á o resultado da contenda.