A relação do Estado com os canais privados e o serviço público
Esta semana, num debate que decorreu no Congresso das Comunicações, representantes dos três operadores privados de televisão (SIC, TVI e Medialivre) defenderam o fim ou a redução da publicidade nos canais da RTP. Em resposta, Nicolau Santos, presidente da RTP, defendeu manter a publicidade e sugeriu que os poderes públicos apoiassem financeiramente os operadores privados, subsidiando o seu funcionamento.
Confesso que nem queria crer no que estava a ler quando vi esta notícia. De um lado os operadores privados pediam que a RTP não concorresse no mercado publicitário, do outro lado o responsável do serviço público defendia que o Estado devia subsidiar os privados como forma de atenuar a concorrência que a RTP exerce no mercado.
Infelizmente esta é uma ideia que se repete, de forma mais ou menos aberta, por muitos defensores da RTP actual — mas nenhum tinha, até agora, sido tão explícito como Nicolau Santos.
Devo começar por esclarecer que sou a favor da existência da RTP como operador de serviço público audiovisual, mas defendo que ela não deve concorrer com privados nem em matéria de conteúdos, sobretudo transmissões de desporto profissional e algumas formas de entretenimento, nem deve concorrer no mercado publicitário, quer nas emissões de televisão, quer nos canais online.
Ou seja, a minha posição, desde há muitos anos, é que a RTP tem de encontrar o seu caminho e justificar a sua existência num quadro de alternativa e complementaridade de conteúdos, em relação àquilo que os privados não querem (e muitas vezes nem podem) fazer dentro do âmbito comercial da sua actividade empresarial. A RTP não tem de entrar na guerra de audiências para angariar maiores receitas, creio firmemente que tem é de entrar na batalha de oferecer conteúdos informativos, de ficção, culturais, documentais e de entretenimento que a tornem numa referência no sector. Só nesse contexto, de efectivo serviço público, vale a pena o Estado manter a RTP. Propor manter a concorrência da RTP no mercado e sugerir que para isso o Estado financie os canais privados é distorcer por completo as coisas. E é um caminho perigoso em termos de independência e liberdade do sector.
Em Fevereiro de 2023 a Comissão do Livro Branco do Serviço Público de Media solicitou-me que elaborasse umas notas para o relatório que estava a preparar para o então Ministro da Cultura. O resultado final das conclusões desse Livro Branco está por descobrir. Mas retomo aqui algumas das notas que então enviei e se mantêm actuais.
Existem três princípios básicos para qualquer das expressões do serviço público audiovisual (TV, Rádio ou Digital): complementaridade em relação aos canais privados, foco na coesão do território nacional e clara necessidade das prioridades de investimento em termos de conteúdos. Acessoriamente existe a necessidade de uma redefinição de formato dos canais de TV e Rádio e do modelo de governação.
Neste momento existem na RTP oito canais de televisão e sete canais de rádio e ainda uma plataforma digital multicanal, a RTP Play, que aliás é das poucas coisas verdadeiramente complementares, fruto da gestão de Gonçalo Reis num anterior Conselho de Administração da RTP.
Na minha opinião a rádio e televisão públicas devem esforçar-se por criar conteúdos complementares e alternativos em relação aos operadores privados de televisão, e não ter, sobretudo no caso da RTP1 e RTP3, uma similitude tão grande como a que tem existido e se reflecte sobretudo nas áreas da informação geral e desportiva. Por outro lado o serviço de informação regional tem vindo progressivamente a diminuir, em parte por desinvestimento nas delegações. Sublinho a importância que a RTP Madeira e RTP Açores tiveram no reforço da coesão territorial e nacional daquelas regiões. Um dos papéis fundamentais do serviço público audiovisual é manter um foco apertado na coesão nacional, e isso tem sido subalternizado.
A informação, não só da RTP, diga-se, segue demasiado a trica política entre S. Bento, Belém e as sedes partidárias, e demasiado pouco o que se passa noutros pontos do país e no dia-a-dia das pessoas.
Vou tentar usar poucos chavões do sector, mas o que deve distinguir o serviço público dos canais privados é a relação entre a programação de fluxo e a de stock. Em termos muito gerais a programação de fluxo é aquela que se esgota praticamente no momento em que é emitida, como serviços noticiosos, transmissões directas de desporto e reality shows.
Destes programas, com sorte, guardam-se apenas para o futuro material e imagens para arquivo. Ninguém quer ver a repetição da final de um reality show que já se sabe quem ganhou, nem de um jogo de futebol de que já se conhecem o vencedor e as peripécias. Ou seja, menor investimento em programação de fluxo como transmissões de desporto profissional e reality shows, maior investimento em produção de conteúdos de stock como ficção, programação infantil, documentários, e gravações de concertos e espectáculos. Uma meta aceitável seria estabelecer que o investimento em programação privilegiaria a produção de stock com a maior fatia do investimento público, em detrimento do fluxo. Não se consegue de um dia para o outro, mas é uma meta e um objectivo.
Por outro lado faria todo o sentido redefinir o papel e posicionamento de cada um dos canais de televisão e rádio, reduzindo redundâncias e procurando formas alternativas de programação. A título de mero exemplo a programação da RTP1 poderia ter menos transmissões de desporto profissional, menor programação de fluxo, mais informação, debate, documentários e ficção nacionais. Na RTP2 deveria ser fomentada a produção infantil nacional, a produção de documentários sobre grandes figuras portuguesas da cultura, ciência ou desporto e prosseguir o bom trabalho que tem sido feito na programação de produção europeia, quer de ficção, quer documental, quer de gravações de espectáculos.
Passemos às notícias: tocar na informação é tocar num ninho de vespas de interesses e influências, mas creio não ofender se sugerir que os serviços de informação podiam ser mais sintéticos, com foco mais equilibrado entre nacional, regional e internacional e maior atenção a questões de ambiente, diversidade e igualdade. A RTP3 deveria ser o canal regional por excelência, e não o palco de comentários partidários repetitivos com outros canais. Em vez do modelo actual de debates fanatizados sobre desporto profissional podia ser o canal de modalidades de desporto amador, com notícias, reportagens e transmissões. Há muito que defendo a fusão da RTP Internacional e da RTP África num só canal e confesso que tenho dúvidas sobre a manutenção da RTP Memória.
Da mesma forma, na rádio era oportuno estudar a redefinição programática da Antena 1, com maior atenção ao noticiário nacional e regional, aumento de programas de autor e mais debate sobre temas fora da agenda político-partidária. Na Antena 2 é há muito urgente a reformulação completa da emissão com uma divulgação mais dinâmica e contemporânea da música clássica, e uma presença maior do jazz e da música do mundo. Complementarmente, extinguir a RTP África, e manter a RDP Internacional e a Antena 3 com modificações de conteúdos a efectuar em função da redefinição dos outros canais. Quanto ao serviço digital, a que por comodidade chamarei RTP Play, e que é exemplar no universo do operador público, o cuidado a ter é mantê-lo actualizado do ponto de vista tecnológico.
E chego agora ao outro elefante no meio da sala — a questão da governação. O primeiro ponto, sem o qual aliás quase nada vale a pena fazer, é a extinção do Conselho Geral Independente (conhecido na gíria por Conselho Geral Inútil), cuja actuação prática tem sido verdadeiramente nula e sem reflexos em mudanças e evoluções do operador público de mídia. Defendo o regresso ao modelo parlamentar de escolha da administração, se possível com um perfil mais técnico e menos político.
E, finalmente, para que seja possível coordenar de forma efectiva o universo dos canais e conciliar os sectores da informação e da programação, alteração dos estatutos da empresa e seus reflexos no contrato com o Estado, permitindo a nomeação de um Director Geral com efectivo poder e que responda apenas ao CA, com mandato inamovível durante um período a determinar, e que siga um caderno de encargos e estratégia indicados pelo accionista Estado - afastando do CA a perversa tentação de interferir diretamente nos diretores de programas e de informação, mesmo que de forma velada. Seria mais transparente interna e externamente.
E, por fim, o papel do Estado em relação aos operadores privados: mais vale criar modelos de incentivo aos produtores privados de programas de televisão, nomeadamente na ficção e documentário, do que atirar dinheiro para cima dos canais. Cria de certeza maior diversidade, estimula a criatividade e facilita a dinâmica do diálogo e contratação entre canais e produtores.
(Jornalista, foi presidente do Instituto Português de Cinema, administrador dos Estúdios Valentim de Carvalho, presidente da Associação de Produtores Independentes de Televisão e director do canal 2: da RTP)