O que se segue é uma série de pequenas histórias, algumas quase insignificantes, retiradas de uma experiencia pessoal sem grande relevo, mas que não deixou de ser marcada por estes casos, alguns com o seu toque pitoresco, de relacionamento com a antiga Censura, a dos tempos do Estado Novo. Não esperem encontrar aqui casos espectaculares, daqueles que marcam a vida de um jornalista. São episódios breves, uns com alguma relevância, outros não, que só têm o mérito de terem ficado na memória de quem os viveu na primeira pessoa.

Se houver uma “segunda pessoa” (um leitor) que lhes ache alguma graça, valeu a pena recordá-los.

 

Aqui ficam, então, algumas experiências pessoais  com a Censura de antigamente.

 

Censura na Rádio:

“A Invasão dos Marcianos”

 

A Rádio também tinha Censura, e este caso aconteceu em 1958. Por essa altura, o meu amigo Matos Maia e eu éramos devoradores de histórias de mistério, policiais e de ficção científica. Líamos tudo, trocávamos livros, revistas e opiniões. Ele fazia programas na Rádio Renascença (“Quando o Telefone Toca”). Encontrávamo-nos todas as tardes no “Café Gelo”. E foi aí que, em 1952, folheávamos uma pequena revista chamada “O Gato Preto”, - uma antologia de mistério e fantasia, dirigida por Francisco A. Branco e Manuel do Carmo, com ilustrações de Victor Palla – e, num dos escassos seis números publicados, deparámos com a transcrição do texto de Orson Welles, adaptado para o Mercury Theater e para a sua emissão de “A Guerra dos Mundos”, de H.G.Wells, na estação de Rádio CBS, de Nova Iorque. Esta emissão provocara grande pânico entre o povo americano, que acreditara na veracidade do que estava a ouvir, e viera para as ruas esperando encontrar aí os marcianos que estariam a invadir as suas cidades, tomando conta do planeta…

Dei alguma colaboração ao Matos Maia, na adaptação para a versão em português, que seria realizada através da Rádio Renascença (o que, por si só, já revelava uma notável abertura, por parte da emissora católica…)

A emissão foi minuciosamente preparada, e foi para o ar a 25 de Junho de 1958 – para ser exacto, a partir das 20 horas e 5 minutos – com a colaboração de alguns locutores da estação e outras vozes de fora (eu, por exemplo, seria um tal “Secretário das Relações Interiores”). Foram feitos avisos aos ouvintes, de que se tratava da adaptação da emissão americana, que causara tanta sensação, anos antes…

Pois bem: inesperadamente, e apesar dos avisos e explicações prévias, o público nacional levou aquilo a sério… e entrou em pânico! A transmissão começou e, pouco depois, saltaram muitas pessoas para as ruas, aterrorizadas com a invasão dos maléficos Marcianos de que a Rádio falava! A tal ponto que o Presidente do Conselho de Ministros, doutor Oliveira Salazar, foi alertado e mandou que se tomassem providências. A primeira das quais foi a rápida invasão das instalações da Renascença por polícias equipados com capacete e metralhadora, que quiseram saber o que se passava, quem era o responsável – e levaram o Matos Maia para o Governo Civil, onde permaneceria durante horas, a esclarecer o caso (mais tarde, passaria também pela PIDE).

A acção imediata da Censura consistiu, naturalmente, em suspender a emissão. Não foi preciso usar nenhum carimbo a dizer “cortado”, nem nenhum lápis azul. Foi só retirar radicalmente a bobine com a gravação que estava a ser transmitida, e apreendê-la.

 Depois, passámos, muitos de nós, horas ao telefone, a tranquilizar os ouvintes inquietos, que queriam saber onde, exactamente, é que podiam ver os tais Marcianos…

 

Complementando – Muito mais tarde, em 15 de Outubro de 1983, já sem Censura, foi emitida uma nova versão deste trabalho, na Rádio Comercial. Curiosamente, mesmo com todos estes antecedentes, já sabidos e bem explicados, também esta emissão provocou algum alarme entre os ouvintes da nossa Rádio… Mas, dessa vez, não houve Censura, e a emissão correu até ao fim.

 

Censura na Emissora Nacional:

palavras proibidas

 

 

A então Emissora Nacional (agora RDP) sempre foi uma estação muito sóbria e muito cerimoniosa. Eram raros os casos em que ali se usava uma linguagem mais descontraída. Havia, no entanto, alguns programas ligeiros, com bastante popularidade, exactamente por não seguirem as fórmulas convencionais de contacto com os “estimados ouvintes”. Ainda assim, havia certos limites que não podiam ser ultrapassados.

Um desses programas era o “Domingo Sonoro”, um programa das manhãs de domingo, com uma linguagem um pouco mais aberta, onde, por exemplo, foram transmitidos os famosos diálogos do “Zèquinha” e da “Lelé”, com Vasco Santana e Irene Velez. Era realizado por Jorge Alves e este, sendo amigo de toda a equipa dos “Parodiantes de Lisboa”, convidou-os para uma participação naquele programa, com uma adaptação humorística de um romance conhecido... Autores do texto: Ruy Andrade e eu próprio (éramos, na época, os copywriters  principais dos inúmeros programas dos “Parodiantes”, muito populares e apreciados).

Escolhemos o romance “O Grande Industrial”, de Geoges Ohnet, então muito na moda, que rebaptisámos de “O Pequeno Industrial”, começando a escrever o respectivo texto e a acompanhar as gravações – e tudo corria muito bem até que, em certo episódio, escrevemos qualquer coisa como “o senhor conde pediu uma boleia na carruagem de…” Veio o aviso: a expressão “pedir uma boleia” teria de ser retirada e substituída por outra mais correcta, pois fora cortada pela Censura da EN – por ser uma expressão pouco digna e não conforme com “o estilo de textos usados numa estação oficial”.

E lá tivemos de reescrever aquela parte do texto. Segundo a Censura, as pessoas decentes não “pediam boleia”, porque parecia mal…     

 

Censura nos jornais de humor:

as curvas perigosas de Marilyn Monroe

 
A Censura era, por vezes, muito rigorosa e, sobretudo, muito moralista e muito chata. Os censores – que eram, como talvez saibam, uns senhores coronéis, sem queda para a tropa, mas com queda para o corte, escortanhavam artigos, notícias, títulos, fotografias, desenhos e outras coisas, não com tesouras, mas com os seus famosos lápis azuis. E nem sempre os cortes tinham a ver com matéria política. O caso pitoresco que contarei a seguir é daqueles que mostram bem o ridículo a que podiam chegar esses senhores, quando se punham a defender o que eles chamavam "a moral e os bons costumes".

         E isto explica por que razão surgiu, no primeiro número do "Picapau" (uma revista semanal de Humor que dirigi, em 1955) uma caricatura da então famosa Marilyn Monroe... sem curvas.

         Na verdade, sem a explicação, o fenómeno parece bastante esquisito, pois, se houve artista de Cinema que ficou conhecida por não ter, no seu corpo, um centímetro de superfície que não fosse em curva perfeita, essa artista foi a Marilyn.

         Então, a explicação é esta:

         Um dos colaboradores do "Picapau" era o João Martins, um excelente artista, que fazia muito bem caricaturas a "crayon". Por isso, resolvemos incluir, em cada número, a caricatura de uma figura famosa – e, para começar, pensámos na Marilyn, que estava então no auge da fama. O Martins fez o boneco – naturalmente, com as curvas apropriadas, nos sítios apropriados – e, é claro, lá teve de seguir a respectiva prova para a Censura prévia.

Quando a prova regressou, vinha "aprovada com cortes". E os cortes, sabem quais eram? Eram dois riscos a lápis azul, um deles ordenando a redução das generosas curvas peitorais da artista, e outro recomendando o mesmo quanto às curvas do rabo...


Bem, que remédio! – o Martins lá retocou o desenho e lá seguiu nova prova, com a Marilyn menos exuberante. Só que... também essa veio censurada. As curvas ainda eram evidentes de mais, e o lápis azul mandava reduzi-las mais um pouco. Irritado, o caricaturista lá se dispôs a fazer as emendas, mas aquilo já não era bem a Marilyn, já se parecia mais com a Katherine Hepburn...


Enfim, terceira prova... e terceira nega! Sempre o maldito lápis azul a cortar as curvas! E o chefe da oficina aos gritos, que a revista tinha de entrar na máquina!...

Não havia tempo para mais emendas e mais provas. A solução só podia ser uma: compôs-se o desenho, com a Marilyn a tomar banho de chuveiro e com a cortina a deixar ver apenas... a cabeça e os pés!

E assim saíu, sem curvas, mas muito decente, a nossa querida Marilyn, no número um do "Picapau". Na altura, é claro que não foi possível explicar aos leitores (provavelmente espantados com aquilo que viam) a razão de ser do "fenómeno".

E não é que o senhor coronel-censor teve a lata de me telefonar, a dar-me os parabéns pela solução? "Está a ver como a caricatura até ficou com mais piada? " dizia ele.

Não vale a pena dizer qual foi a resposta que lhe dei. Mas acho que todos vocês imaginam a resposta que eu gostaria de lhe ter dado...

 

 

 


 

 

Censura interna nos jornais:

a “Censura futebolística”

 

Algum tempo depois de ter acabado o "Picapau", em 1956, eis que, num certo dia, em conversa com o Carlos Pinhão, ele me propõe: "Não quererias fazer uma secção humorística na ‘Bola’? Fazias o texto, e os bonecos podiam ser feitos pelo Natalino. Que achas?"

Claro que achei uma maravilha, e lá fui falar com o Natalino, para combinarmos as coisas.

Ora bem, quem era o Natalino? Era um artista já com muito trabalho publicado, principalmente no jornal "Os Ridículos" – que, por sinal, tinha a redacção a uma dúzia de metros da redacção da "Bola", na esquina da Travessa da Queimada com a Rua da Barroca, no Bairro Alto. Aliás, nesse tempo, a maioria das redacções dos jornais diários (excepto o "Diário de Notícias") eram ali mesmo, no Bairro Alto,

Voltando ao Natalino (que também fora colaborador do "Picapau"): chamava-se ele Natalino Melquíades, era pequenino, de bigodinho preto e olho brilhante, sempre divertido e bem disposto. Era dono das tabacarias da estação do Rossio e passava os dias na tabacaria do piso superior, à entrada da gare. Era uma loja pequeníssima, com um balcãozinho de meio metro e, lá dentro, apenas o espaço suficiente para o Natalino ter um banco e uma pequena prancheta. Dizia ele: "Não me peçam bonecos grandes, que eu não posso fazer coisas maiores que uma folha de papel de máquina!" E era mesmo assim. Isso não o impediu de produzir uma torrente caudalosa de capas, caricaturas e anedotas para diversas publicações.

Então, encostado ao balcão minúsculo da sua minúscula tabacaria, ambos envoltos no cheirinho bom das cigarrilhas que ele fumava, lá combinei com o Natalino o que deveríamos fazer para a ‘Bola’. O título da secção seria "Off-Side". E, daí a dias, tínhamos o material pronto e fomos entregá-lo. O Carlitos Pinhão apresentou-nos ao administrador, o dr. Vicente de Melo, que tinha uma cara suficientemente fúnebre para ficarmos de pé atrás, quanto ao apoio que poderia dar a uma secção de humor... Mas, enfim, lá acertámos as coisas – e a secção começou a sair.

Ora, já se sabe que o Humor, sem umas "bicadas", sem uma pontinha de má-língua, não tem graça nenhuma. Logo à segunda ou à terceira edição, começaram os problemas. Se a gente dava uma piada ao Benfica, apareciam logo reclamações dos leitores benfiquistas, protestando porque o jornal se estava a virar para o Sporting... Se a piada era para os "leões", estes rugiam que o jornal estava cada vez mais encarnado...

Resumindo: por acordo mútuo, acabou-se a secção de humor futebolístico, ao fim de poucos números. E aprendemos que o futebol é uma coisa muito, mas mesmo muito séria, que também exige Censura!

 

 

 

 

Macaquices:

a Censura operária 

 

         Estava o vinte-e-cinco-de-Abril ainda fresquinho e ainda existia o "Diário Popular", quando fui convidado para organizar e dirigir um novo jornal de humor – que se chamaria “O Macaco”.

         O projecto tinha a sua piada: tratava-se de fazer um jornal com o mesmo formato e as mesmas características gráficas do "Diário Popular", só que a cores. Esse jornal serviria para testar uma nova máquina de impressão, na qual, depois, o próprio "DP" seria impresso. Era, assim, uma espécie de cobaia, do ponto de vista da execução gráfica.

         E lá vamos ocupar uma nova redacção, numa dependência daquele jornal, na Rua Luz Soriano.

         Foi elaborado um "número zero", a ser distribuído gratuitamente ao público, com a edição do "Diário Popular" de 29 de Novembro de 1974. Depois, na semana seguinte, devia sair o número um, que custaria cinco escudos.

         Foi tudo muito bem preparado, em alegres reuniões, na redacção algo fria que nos fora destinada. Mais fria ainda ficou, quando começámos a ouvir os boatos que se espalhavam por todo o edifício. Era a época das manifestações, dos plenários, dos saneamentos, enfim, daquilo a que se chamou o PREC - Processo Revolucionário Em Curso. E nós acabámos por apanhar com ele! Os senhores tipógrafos do "Popular", vá-se lá saber por quê, meteram nas cabecinhas a ideia de que a criação daquele jornal se destinava a prejudicar-lhes a vida! Por isso, fizeram um plenário, prepararam uma manifestação, ameaçaram com saneamentos e disseram à administração que não queriam que o "Macaco" saísse do galho.

         Resumindo: o tal "número zero" foi impresso, mas não foi distribuído. Os trabalhadores aplicaram-lhe a Censura Operária…

 

Também tu , Magazine?

o caso do biquíni

 

Durante largas dezenas de anos, fez parte das minhas funções, na grande empresa Regisconta, ser o Editor, e depois o Director, do jornal da empresa, o “Magazine Regisconta”, uma revista muito bem apresentada, que durou desde 1957 até 1996, e servia como veículo de promoção da empresa, e das máquinas, equipamentos e sistemas que esta comercializava.

Por se tratar de uma revista dedicada, especificamente, a temas deste género, ficou dispensada, desde o seu primeiro número, de apresentação prévia aos serviços de Censura – apenas estava obrigada a enviar, de cada número publicado, exemplares para arquivo.

Bem… para arquivo mas, também, para exame minucioso! Ora, para além dos temas comerciais, sempre inseri alguns artigos de tom mais ligeiro, para que a revista não se limitasse a ser “um catálogo mais ou menos ilustrado”… E foi assim que, em certo número publicado em 1964, o tema “magazinesco” que animava as páginas se referia a férias, praias, concursos de beleza, etc. e incluía uma foto, aliás discreta, de uma banhista em biquini … Pois bem, foi logo recebido um telefonema, muito severo, do seguinte teor: “Está lá? É da redacção do Magazine Regisconta? Aqui fala da Direcção dos Serviços de Censura. É para avisar que, se voltarem a publicar imagens indecentes como aquela que saíu na última página do último número, terão de passar a enviar-nos provas de todas as páginas, antes da publicação respectiva! Senão, a revistinha será suspensa!

Claro que nunca mais houve biquínis no “Magazine Regisconta”…