Os desafios que o caso Rubiales representa para o bom jornalismo

Em Agosto de 2023, Luis Rubiales, à época presidente da Federação Espanhola de Futebol, deu um beijo não consentido à jogadora Jennifer Hermoso durante a celebração da vitória do campeonato mundial de futebol feminino.
As boas e más práticas da cobertura jornalística desse acontecimento são objecto de reflexão de Milagros Pérez Oliva, num artigo publicado no mais recente número dos Cuadernos de Periodistas, da Asociación de la Prensa de Madrid, com a qual o Clube Português de Imprensa mantém um acordo de parceria.
A autora começa por dizer que, “mais do que apontar as más práticas ocasionais ou continuadas nas manchetes ou abordagens de alguns meios de comunicação — que, por outro lado, tendem a ser aqueles que também violam padrões éticos noutros assuntos —, é interessante analisar os desafios que um caso tão notório e viral como este representa para o bom jornalismo”.
Critérios para avaliar e enquadrar a situação
“Muitos meios enganaram-se nas suas primeiras apreciações”, considera Milagros Pérez Oliva. A reacção, minimizando a agressão ou negando-a, revelou uma cultura enraizada que tende a desacreditar as vítimas e a proteger os agressores.
No entanto, as redacções em que havia uma boa formação prévia em questões de género reconheceram de imediato que o comportamento do ex-presidente da Federação Espanhola de Futebol tinha sido exemplo de um “gesto de poder” machista, e não uma “mera expressão de familiaridade espontânea”.
A própria resposta de Rubiales, negando o incidente e sugerindo que a jogadora o havia abraçado, evidencia uma estratégia comum de tentativa de inverter os papéis e de levantar dúvidas sobra as intenções da outra pessoa, tendo alguns meios acabado por aderir a esta narrativa. Nos casos mais graves, chegaram a ser publicados vídeos manipulados ou incompletos para corroborar essa versão.
A importância do contexto
“Os factos, por si só, não explicam a realidade. Necessitam de contexto. E esse contexto deve ser dado pelo jornalismo”, afirma a autora do artigo.
“A chave, neste caso, estava num conceito — o do consentimento”, continua. O tema foi objecto “de intenso debate político” em Espanha faz pouco tempo, a propósito da aprovação da lei da liberdade sexual, que ficou conhecida como “Só sim é sim”, e que define que qualquer interacção de natureza sexual sem consentimento claro é considerada agressão.
“O beijo de Rubiales aparecia de repente como um claro exemplo de falta de consentimento”, continua a jornalista, acrescentando que a denúncia das pressões posteriores exercidas pelas hierarquias desportivas veio reforçar que não estávamos apenas perante uma situação de um comportamento individual, mas sim de dinâmicas de poder mais estruturais.
Além disso, o caso permitiu dar sentido aos protestos anteriores de jogadoras da selecção, que nunca tinha sido “bem explicados” nem “aprofundados” pela imprensa, evidenciando falhas no jornalismo em compreender a complexidade destas questões.
Jornalismo de trincheiras e abordagem sensacionalista
A natureza polémica do caso “provocou uma polarização das posições” que passou “também para os meios de comunicação social”. Esta reflectiu-se não só na forma como o tema foi abordado, mas também numa “falta de moderação” dos comentários feitos pelo público.
Na descrição de Milagros Pérez Oliva, a situação tinha “todos os ingredientes” para ser explorada de um ponto de vista sensacionalista: “um conflito entre homens e mulheres, de natureza sexual e que afecta as estruturas de poder do desporto”.
E foi isso que acabou por acontecer.
Em situações destas, importa ter atenção redobrada. Neste caso específico, as notícias sobre o tema estiveram entre as mais lidas durante semanas. A disseminação das discussões nas redes sociais gerou uma cobertura exagerada pelo potencial para captar audiências, tendo por vezes sido feito um acompanhamento que resvalou para o “infotainment”.
Apesar das más práticas de alguns meios, a autora do artigo conclui sublinhando o papel da imprensa séria em dar centralidade às questões género e em contribuir para uma compreensão mais profunda das complexas relações de poder e de abuso no desporto e na sociedade em geral.
(Créditos da imagem: vectorjuice no Freepik)