Quando os “conteúdos” esvaziam o jornalismo

Num artigo publicado no Nieman Storyboard, o jornalista Christian Wihtola alerta para os perigos de encarar o jornalismo e outros trabalhos criativos como "conteúdos".
Wihtola relembra que no jornal do Oregon onde trabalhava, a contratação de um novo editor transformou a redacção, quando uma das suas primeiras acções foi começar a chamar "conteúdo" ao jornalismo.
Segundo relata, nas reuniões dizia coisas como: “precisamos de produzir mais conteúdo para o nosso público” ou “precisamos de SEO para o nosso conteúdo”.
No artigo, o jornalista expressa preocupações sobre o uso generalizado do termo "conteúdo" para descrever e relata como, ao longo dos anos, a palavra "conteúdo" se infiltrou na linguagem do sector de media, representando uma mudança preocupante na percepção do jornalismo. Wihtola destaca como essa terminologia reduz o jornalismo a meros produtos de consumo, sem valor especial, desvalorizando o trabalho dos repórteres e criativos.
“A nossa redacção – que se tinha mantido orgulhosamente independente muito depois de outras terem sido absorvidas por cadeias de televisão e capitalistas de risco – tinha ficado para trás. Talvez as palavras da moda tenham ajudado estes líderes a manter os seus empregos, persuadindo os proprietários de que sabiam como combater o incêndio financeiro que estava a varrer o sector”, relembra.
Para o Wihtola, a palavra "conteúdo" sinalizava “um ponto de vista novo e cínico: o jornalismo tinha-se tornado apenas mais um produto de consumo – como a comida para cães, os sacos de plástico ou as folhas de contraplacado”.
Um perigoso desvio de linguagem
Wihtola argumenta que a transição para o termo "conteúdo" é sintomática de uma ameaça mais ampla ao jornalismo de qualidade, enfatizando a importância do jornalismo investigativo ou de profundidade.
“Para mim, as pessoas nas redacções são jornalistas, não produtores de conteúdos. Esforçamo-nos por informar e escrever artigos justos e baseados em factos ou fazer fotografias, vídeos ou gráficos para o importante trabalho de ajudar os nossos leitores a compreender o seu mundo local, nacional e global”, descreve.
Wihtola questiona ainda se a adopção dessa terminologia atrai ou retém talentos na área ou se convence leitores e anunciantes a valorizar mais o jornalismo: “Será que a introdução de jargão como ‘conteúdo’ nos ajudou? Convenceu os leitores e os anunciantes a pagar mais, agora que sabem que estão a receber conteúdo’? Será que levou mais jovens a considerar a ‘produção de conteúdos’ ou a ‘curadoria de conteúdos’ como uma carreira?”.
Além disso, o autor observa que os líderes da indústria, que usam o termo "conteúdo", podem estar a subestimar o próprio negócio que deveriam estar a promover.
O autor questiona ainda por que os jornalistas devem investir em entrevistas, investigações e narrativas, quando os editores os rotulam como simples "conteúdo". Para Wihtola, é desanimador que os líderes do setor adoptem esta terminologia, que considera contraproducente para a clareza e a integridade que os jornalistas devem preservar no seu trabalho.
E observa que a capacidade de realizar investigações mais aprofundadas foi o que atraiu muitos jornalistas para a profissão e que, apesar de o cumprimento de prazos apertados ser parte do trabalho, também é essencial ter tempo para investigar e produzir reportagens de qualidade. No entanto, a cultura da "produção de conteúdos" parece estar em desacordo com essa abordagem jornalística tradicional, colocando em risco a sua qualidade e integridade.
O jornalista reitera que, apesar de não ter sido a terminologia a deixar o jornalismo neste estado, esta foi claramente um sinal de alerta.
Outra das preocupações levantadas pelo autor é a necessidade de preservar a missão e os valores fundamentais do jornalismo, que envolvem a responsabilidade de informar com precisão e oferecer narrativas aprofundadas.
Wihtola acredita que a terminologia adotada pelos profissionais da indústria pode influenciar a percepção do jornalismo e sua importância para a sociedade, e que é essencial manter o foco na qualidade e na busca da verdade.
“Na altura em que o termo se espalhou no jornalismo, alguns jornalistas e ex-jornalistas foram rápidos a gozar com ele. A Slate criticou-o em 2016; dois anos antes, um ‘estratega sénior de marketing de conteúdos’, que por acaso era um ex-jornalista, alertou contra a confusão entre conteúdos orientados para a marca e jornalismo orientado para a missão”, refere, salientando que o alerta foi “em vão” já que, actualmente, as referências ao jornalismo passaram a ser substituídas pela expressão “conteúdos”.