“O grande dilema do jornalismo, nos próximos anos, será” procurar “uma maneira complexa de abordar questões” controversas. “Por enquanto, a única coisa que se sabe é que a técnica de ouvir os dois lados” já “não funciona”, diz Carlos Castilho, na sua mais recente publicação no Observatório de Imprensa do Brasil, com o qual o CPI mantém parceria.

O autor, começa por referir o que se passa à volta da polémica sobre a degradação ambiental no planeta, que “se arrasta há, pelo menos, uns 50 anos, sem que até agora se tenha universalizado a redução das emissões de CO2 por veículos automotores. Todo o mundo conhece as consequências, mas os avanços foram milimétricos por uma razão simples: é um problema complexo, onde conceitos como bom ou mau, justo ou injusto e certo ou errado não conseguem dar as respostas e promover as mudanças que desejamos”, relata. 

“O jornalismo é parte desta frustração porque é através dele que as pessoas recebem os dados, factos e eventos”, que influenciam a forma “como vemos o mundo em que vivemos”, diz Castilho.

Em qualquer país, o jornalismo “ainda está profundamente contaminado por uma abordagem da realidade baseada numa visão dicotómica, ou seja, que uma notícia tem, basicamente, dois lados. Quase todos os manuais de redacção existentes actualmente, preconizam a consulta aos dois lados de uma questão, na hora de produzir uma reportagem jornalística”, refere o jornalista. 

“Só que temas como a questão ambiental apresentam-se, cada vez mais, como complexos, ou seja, com mais de um lado e todos os lados a influenciarem-se mutuamente”, afirma.

Na opinião do autor, “a avalanche informativa na internet” está a generalizar a complexidade noticiosa, ao disponibilizar inúmeras versões e interpretações diferentes sobre um mesmo dado, facto ou evento. Estamos mergulhados num ambiente de super oferta de informações onde conceitos dicotómicos já não conseguem dar as respostas desejadas”. 

Um outro exemplo mais recente, indicado por Castilho, é o da “polémica sobre a regulamentação das plataformas digitais que abrigam redes sociais, o Projecto de Lei 2630”, no Brasil.

“Num mesmo texto, pretende-se buscar soluções para as notícias falsas, para a concentração de poder económico e político nas mãos de poucas empresas de alta tecnologia, para a sobrevivência da imprensa tradicional, para a remuneração dos jornalistas e de quem vai fiscalizar a regulamentação do funcionamento de conglomerados que controlam Facebook, Youtube, Twitter, Instagram, Telegram e Whatsapp, só para citar os veículos online mais conhecidos”, expõe o autor.

Para Castilho, “a única coisa que se sabe”, por agora, é que “a técnica de ouvir os dois lados já não funciona”, porque não consegue “dar a real dimensão e consequências do tema de uma reportagem” e porque “contribui para lamentáveis desdobramentos maniqueístas”, como aconteceu durante a cobertura da Lava Jato, no Brasil, “em que os telejornais dedicavam fartos minutos para denunciar supostas práticas de corrupção e escassos segundos para divulgar burocraticamente uma nota da parte acusada”, refere. 

O jornalista diz que “a imprensa, em quase todo mundo, está acostumada há décadas, a abordar a maioria das notícias como um conflito entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, onde um ganha e outro perde. Nas campanhas eleitorais, predomina o espírito da corrida de cavalos, pois a grande preocupação é quem está à frente nas pesquisas. Os temas envolvidos na disputa por votos ficam em segundo plano. Tenta-se aprisionar a realidade na camisa de força da visão dicotómica correndo o risco de comprometer a confiabilidade, exactidão, relevância e pertinência de uma notícia”, refere. 

“A imprensa sempre se colocou na posição de quem precisa estar do lado certo para poder orientar o público na direcção correta. A preocupação é louvável, mas a realidade é outra”, afirma o autor. “Ela precisa também abandonar o dogma informal de que tem as respostas que as pessoas procuram”, o que já não tem, “porque a compreensão da realidade” já não “depende de poucas pessoas geniais ou de poucas empresas omniscientes, mas de colectivos sociais, em que os diferentes projectos jornalísticos são parte integrante”, acrescenta.  

“Assim, as coberturas jornalísticas, na era da complexidade informativa”, já não têm como “fugir ao facto de que a diversificação na publicação de diferentes percepções, passa a ser a prioridade absoluta no quotidiano dos jornalistas”, considera Castilho. “A preocupação” já não é entregar um produto pronto e acabado para que as pessoas incorporem a receita jornalística à suas visões de mundo”, acrescenta. 

Carlos Castilho diz que esta situação “vai exigir uma profunda mudança de hábitos, regras e valores tanto do jornalismo, como das empresas de comunicação e do público consumidor de notícias. Temos informação demais, logo é impossível saber tudo. Se não sabemos tudo, precisaremos da ajuda de quem sabe o que desconhecemos, se estivermos empenhados em resolver um problema complicado”. 

O autor diz que “um dos desafios mais importantes” para o jornalismo, “é a necessidade de identificar, detalhadamente, a diversidade de interesses e motivações ocultos nos dados, factos e eventos publicados. Esta preocupação já existe, hoje, nos manuais de redacção”, indica, “mas a prática” utilizada, normalmente, pelos repórteres e editores, já não consegue “dar conta da diversidade e complexidade das notícias, diante das pressões por imediatismo e ineditismo”.

“Nestas circunstâncias, o individualismo passa a ser contraproducente, criando a necessidade do trabalho colectivo e integrado no exercício do jornalismo”, afirma Castilho.

“Outro desdobramento da abordagem complexa das notícias é a incorporação do público como parte integrante do processo de produção de informações. Na era da comunicação baseada em notícias, qualquer pessoa com acesso a um blogue, rede social ou seguidor de algum influenciador tem, potencialmente, acesso ao espaço público de debates, contribuindo para complicar a já difícil tarefa jornalística de ver o mundo como algo que não se limita à regra dos dois lados”, conclui o autor.