Vítor Bento: “O ajustamento feito foi mais uma vez enviesado”

Na sua palestra integrada no ciclo “Portugal pós-Troika: que Moeda, que Economia, que Futuro?”, Vítor Bento começou por descrever o período de estabilidade, crescimento económico e desenvolvimento no comércio mundial, que vem desde o terceiro quartel do séc. XIX até à I Grande Guerra:
“Foi um período que deixou uma nostalgia enorme. E há quem entenda que para esse sucesso muito contribuíu a estabilidade cambial produzida pelo padrão ouro, que então vigorava. Isto é discutível, mas há muito esta convicção. (…/…) De tal forma que a restauração do padrão ouro foi vista por muitos como o remédio que permitiria regressar aos tempos áureos daquele período glorioso.”
O padrão ouro foi restabelecido em 1925 mas, com as paridades antigas já desajustadas, e países com inflações muito elevadas - que mantinham por questões de dignidade e de prestígio - ele mesmo “acabou por ser um instrumento de aprofundamento da Grande Depressão”. Depois da II Guerra Mundial, a preocupação dos vencedores foi desenvolver um sistema monetário internacional sem a rigidez do padrão ouro, mas que mantivesse uma estabilidade monetária: “Esse sistema baseava-se na ligação fixa do dólar ao ouro, e as demais moedas estavam ligadas ao dólar, com paridades fixas.”
Em Bretton Woods deixou-se uma válvula de escape que permitia realinhamentos das paridades, que podiam flutuar numa pequena banda entre si. Depois de mais períodos de turbulência, foi criado um mecanismo particular para a Europa, a chamada “serpente”, onde as moedas flutuariam numa banda mais pequena entre si, embora pudessem flutuar depois numa banda maior fora da Europa.
Também este sistema revelou instabilidade, resultando dois tipos de comportamentos: de um lado, países que afirmaram uma grande disciplina financeira e uma baixa inflação - obviamente a Alemanha, mas também o Benelux, a Dinamarca e a Noruega; e países que mantiveram inflações e défices externos elevados e tiveram de desvalorizar sucessivamente as suas moedas, como a França, o Reino Unido e a Irlanda. “E o sistema aqui começou logo por ser dependente do marco alemão, que se afirmou como a moeda mais forte e como o principal contraponto ao dólar americano em termos da economia mundial.”
Como explicou Vítor Bento, para evitar que o marco se tornasse dominante, quando se avançou para a construção do Sistema Monetário Europeu procurou-se que o seu centro fosse uma espécie de moeda artificial, o Écu, que seria uma espécie de média das outras moedas todas:
“Só que os alemães não aceitaram este princípio. (…/…) O que significa que o sistema, mais uma vez, saíu da ideia original e convergiu para um sistema baseado no marco alemão, à volta do qual gravitavam todas as outras moedas, e os demais bancos centrais (…/…) ou seguiam a política monetária do Bundesbank, ou teriam que desvalorizar a sua moeda sempre que houvesse divergências.”
“Os alemães pretendiam começar a União com um número muito pequeno de países, os que já tinham atingido uma convergência elevada, enquanto os franceses entendiam que devia ser uma União muito mais alargada, até porque tinham receio de ficar num grupo germânico onde seriam os únicos outsiders… Para mal dos nossos pecados, e talvez essa seja uma das razões porque as coisas depois se complicaram, foi que venceram as duas perspectivas…”
“Em Maastricht, os países assinaram o mesmo contrato com interpretações diferentes: de um lado, a Alemanha entendia que, definindo regras comuns, obrigaria os outros países a convergir para o que considerava serem as melhores práticas; os outros países entendiam que, obrigando a Alemanha a ter que negociar com os demais, o seu poder seria diluído e, portanto, a média acabaria por prevalecer.” (…/…)
“Portanto, em 2007, quando a crise rebenta, de facto tínhamos em presença dois grupos de países, um com défices externos consideráveis, o outro com excedentes externos consideráveis. Mas apenas se entendeu que os países que tinham défices externos tinham um problema, e que ele residia fundamentalmente nas finanças públicas. As finanças públicas, de facto, eram o instrumento desta debilidade toda, mas também a sua deterioração foi uma consequência do processo de ajustamento geral que veio a seguir.”