Utilização jornalística de vídeos judiciais provoca polémica mediática

São José Almeida sublinha, em primeiro lugar, que toma esta posição como “presidente do CD, mas a título pessoal”, justificando que o CD não tomou posição sobre esta matéria “porque não foi a primeira vez que esta situação aconteceu”. Dito isto, defende que as reportagens referidas são “legítimas” do ponto de vista jornalístico:
“As gravações [dos interrogatórios] são oficiais e chegaram à mão dos jornalistas. Ainda que haja aspectos que possam suscitar dúvidas por assumirem contornos que raiam o voyeurismo, é inegável que as reportagens divulgaram aspectos do processo de relevante interesse público e são, por isso, legítimas” - afirmou a também jornalista do Público, sobre as imagens divulgadas pela SIC, primeiro, e depois pela CMTV. (...)
São José Almeida defende ainda que informações como as que foram divulgadas são “de relevante interesse público”.
“No cumprimento da sua obrigação e compromisso com a sociedade, o dever de informar sobrepõe-se sempre, para os jornalistas, aos direitos de imagem e até a leis como a do segredo de justiça, que nem é o caso nesta situação” - disse.
Por seu lado, também no Público, Vicente Jorge Silva escreve, sob o título “Isto não é jornalismo”, que ficara surpreendido e depois estupefacto pela “divulgação de vídeos de interrogatórios judiciais ou escutas telefónicas” ocorridos, desta vez, “através de media considerados de referência”. E afirma:
“O folhetim da SIC e SIC-Notícias não é uma telenovela - embora alguns dos seus efeitos pareçam inspirados na respectiva fórmula - e pretende apresentar-se como uma Grande Reportagem, que os dois canais gémeos exploraram até à exaustão, na íntegra ou em excertos. Ora, o que vimos só remotamente poderia inserir-se num género jornalístico, a não ser que o jornalismo se tivesse tornado um género subsidiário do Ministério Público ou instrumento de acusação num processo ultramediatizado, convertendo-se numa telenovela triunfal nas guerras de audiências.” (...)
“Porque é de uma encenação que verdadeiramente se trata - de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si. Em contrapartida, estamos perante um exemplo acabado da promiscuidade entre o poder judicial e o jornalismo populista, de sarjeta, embora servido com aparências sofisticadas e imaginativas de mise-en-scène.” (...)
Por seu lado, Ricardo Costa, escrevendo na qualidade de director de Informação da SIC, responde no site da SIC-Notícias ao artigo de Vicente Jorge Silva, sob o título “Isto não é não jornalismo”. E não sendo os jornalistas juízes nem políticos, como afirma, “não se devem confundir com eles, mas não podem usar as limitações ou hesitações daqueles como argumentos para a sua confortável inacção, que, no limite, redunda numa profunda incompetência ou inutilidade”. (...)
Ricardo Costa declara-se feliz por trabalhar numa redacção onde vários jornalistas se deram ao trabalho de ler as quatro mil páginas da acusação, incluindo o próprio, e que, “no fim dessa leitura, decidimos, em conjunto, que se deviam fazer várias reportagens que enquadrassem jornalisticamente o que ali estava, tal é a gravidade e dimensão daquele documento. Podia ser feito de várias maneiras, mas escolhemos três ângulos: as entregas de dinheiro, a casa de Paris e o saco azul do GES”.
“Acho estranho que muitos tenham preferido a não-escolha. Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes, reduziram este caso a um assunto judicial. Ora este é um erro gravíssimo, porque este caso é judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo. Não dedicar tempo e recursos a este caso é uma omissão jornalística que, na minha opinião, não tem perdão nem justificação.” (...)
Mais adiante, põe em destaque os direitos à imagem e à informação, ambos fundamentais em democracia, afirmando que “o que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante. Como o interesse não justifica tudo, decidimos que só devíamos usar frases fundamentais para a compreensão da investigação, expurgadas de qualquer coisa que fosse da esfera privada ou íntima, gratuita, jocosa ou acessória. As reportagens foram editadas e reeditadas tendo isso em conta, cruzando a opinião de várias pessoas”. (...)
E adiante afirma:
“Este jornalismo, Vicente, não é um reality show, como não é um pedaço de cinéma verité nem uma versão uncut. É jornalismo por estar editado, enquadrado e escolhido, expurgado do acessório, gratuito ou privado. Por ser feito por pessoas que acompanham o caso desde o início, jornalistas altamente especializados, que leram tudo o que existe no processo, que já falaram com os envolvidos, que sabem distinguir o trigo do joio, que fazem escolhas, que editam e enquadram. Que fazem reportagem na rua, que fizeram dezenas e dezenas de trabalhos sobre este caso, que têm fontes, que contam histórias. Esta história só é maior e mais feia do que as que o jornalismo hoje nos conta.” (...)
Finalmente, no Público, e sob o título “Falemos, então, das imagens da SIC”, João Miguel Tavares põe a questão, sobretudo, em termos de “colocar o interesse colectivo acima do interesse individual”:
“Quando olhamos para as reportagens da SIC, onde são expostas pessoas a serem interrogadas, eu não tenho dúvidas de que essa opção atenta contra os interesses daqueles indivíduos. A questão está em saber se o interesse colectivo o justifica. Que aquelas reportagens acrescentaram muito à informação disponível na sociedade portuguesa não me parece que haja dúvidas.” (...)
“O trabalho da SIC teve, pois, o mérito de unir todas as pontas, de uma forma muito compreensível para o grande público. Mais: a voz e postura corporal dos arguidos são elementos fundamentais para a formação de uma convicção. Tenho dúvidas sobre certas opções tomadas - penso, em particular, que testemunhas e arguidos não deveriam ser tatados da mesma forma, e acho essencial todos serem informados de que estão a ser filmados - mas não alinho no desprezo acerca da importância que aquelas imagens têm para o esclarecimento da opinião pública quando estão em causa crimes de corrupção.” (...)
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Os quatro textos aqui citados, na íntegra:
Presidente do Conselho Deontológico dos Jornalistas defende divulgação dos interrogatórios a Sócrates
São José Almeida diz que “é inegável” que as reportagens televisivas da SIC “divulgaram aspectos do processo de relevante interesse público e são, por isso, legítimas”.
São José Almeida - Público de 24Abr.2018
A presidente do Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas, São José Almeida, defende que as reportagens que revelaram na passada semana imagens dos interrogatórios a José Sócrates e a outros arguidos e testemunhas no Processo Marquês e dos inquéritos do universo GES, são “legítimas” do ponto de vista jornalístico.
“As gravações [dos interrogatórios] são oficiais e chegaram à mão dos jornalistas. Ainda que haja aspectos que possam suscitar dúvidas por assumirem contornos que raiam o voyeurismo, é inegável que as reportagens divulgaram aspectos do processo de relevante interesse público e são, por isso, legítimas”, afirmou a também jornalista do Público, sobre as imagens divulgadas pela SIC, primeiro, e depois pela CMTV.
São José Almeida frisa que toma esta posição como “presidente do CD, mas a título pessoal”, justificando que o CD não tomou posição sobre esta matéria “porque não foi a primeira vez que esta situação aconteceu”. A jornalista lembra o caso das audições no processo dos Vistos Gold, em que foram mostradas pela CMTV imagens das audições a Miguel Macedo, ex-ministro da Administração Interna, e de Manuel Palos, ex-director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
“É importante que este debate se faça, mas a obrigação e o compromisso dos jornalistas é com o público e com a sociedade. E têm o dever de revelar informações verídicas como as que foram mostradas”, acrescenta a presidente do CD.
São José Almeida defende ainda que informações como as que foram divulgadas são “de relevante interesse público”. “No cumprimento da sua obrigação e compromisso com a sociedade, o dever de informar sobrepõe-se sempre para os jornalistas aos direitos de imagem e até a leis como a do segredo de justiça, que nem é o caso nesta situação”, afirmou.
A ministra da Justiça afirmou na passada semana que a divulgação de imagens de interrogatórios da Operação Marquês “constitui crime” e que o Ministério Público tomará “as iniciativas necessárias” para “reprimir a ilegalidade”. “Aquilo que está em causa é uma divulgação não-autorizada de peças de um processo e, portanto, isso constitui crime e estou segura de que o Ministério Público tomará as iniciativas necessárias para reprimir a ilegalidade neste caso, tal como faz em outras questões de matéria criminal”, disse Francisca Van Dunem.
Já o Ministério Público anunciou a abertura de inquérito. “Embora o processo em causa já não se encontre em segredo de justiça, a divulgação destes registos está proibida, nos termos do art.º 88.º n.º 2 do Código de Processo Penal, incorrendo, quem assim proceder, num crime de desobediência (artigo 348.º do Código Penal)”, referiu o Ministério Público numa resposta à Lusa. A Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, também manifestou o seu desagrado com a publicação das imagens, lembrando que está em causa o crime de desobediência.
José Sócrates, por sua vez, anunciou que vai constituir-se assistente no inquérito aberto pelo Ministério Público por causa da divulgação, pela SIC e pela CMTV, dos vídeos dos interrogatórios dos arguidos da Operação Marquês.
O antigo primeiro-ministro está acusado de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada. A acusação sustenta que Sócrates recebeu cerca de 34 milhões de euros, entre 2006 e 2015, a troco de favorecimentos de interesses do ex-banqueiro Ricardo Salgado no GES e na PT, bem como por ter garantido a concessão de financiamento da Caixa Geral de Depósitos (CGD) ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve, e por ter favorecido negócios do Grupo Lena.
Além de Sócrates, estão acusados o empresário Carlos Santos Silva, amigo de longa data e alegado testa-de-ferro do antigo primeiro-ministro; o ex-presidente do BES Ricardo Salgado; os antigos administradores da PT Henrique Granadeiro e Zeinal Bava; e o ex-ministro e antigo administrador da CGD Armando Vara, entre outros. A acusação deduziu também um pedido de indemnização cível a favor do Estado, de 58 milhões de euros, a pagar por José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva, Armando Vara, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e outros arguidos.
Isto não é jornalismo
Vicente Jorge Silva - Público de 22Abr.2018
Fui apanhado de surpresa e fiquei, depois, estupefacto, com a divulgação de vídeos de interrogatórios judiciais ou escutas telefónicas a José Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e outras personagens da chamada Operação Marquês, num longo folhetim apresentado ao longo da semana pela SIC e SIC-Notícias. É certo que o conteúdo de alguns desses interrogatórios e escutas já fora tornado público por certos órgãos de informação, essencialmente ligados ao grupo Correio da Manhã, mas terá sido a primeira vez que isso aconteceu através de media considerados de referência – e, sobretudo, com uma amplitude e um tratamento dramático verdadeiramente inéditos, sob a responsabilidade editorial de jornalistas prestigiados como Ricardo Costa e Cândida Pinto.
O folhetim da SIC e SIC-Notícias não é uma telenovela – embora alguns dos seus efeitos pareçam inspirados na respectiva fórmula – e pretende apresentar-se como uma Grande Reportagem, que os dois canais gémeos exploraram até à exaustão, na íntegra ou em excertos. Ora, o que vimos só remotamente poderia inserir-se num género jornalístico, a não ser que o jornalismo se tivesse tornado um género subsidiário do Ministério Público ou instrumento da acusação num processo ultra-mediatizado, convertendo-se numa telenovela triunfal nas guerras de audiências.
A partir do momento em que o telespectador percebe que tem acesso directo às inconfidências involuntárias de arguidos e testemunhas, montadas de forma apelativa e servidas paralelamente por uma bateria de efeitos especiais (gráficos, maquetas, pacotes de dinheiro a deslizar num tapete rolante, fuminhos a simular as cortinas de fumo dos actos de dissimulação dos acusados, filmagens com drones, figurantes e tutti quanti…), é quase impossível resistir aos apelos ao voyeurismo – numa palavra, à encenação. Porque é de uma encenação que verdadeiramente se trata – de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si. Em contrapartida, estamos perante um exemplo acabado da promiscuidade entre o poder judicial e o jornalismo populista, de sarjeta, embora servido com aparências sofisticadas e imaginativas de mise-en-scène.
Evidentemente, não faltará quem argumente que se trata de um serviço público, necessário para desmascarar os malandrins que agem na sombra e em estreita cumplicidade através das malhas secretas da corrupção entre os poderes político e económico. Que se trata de um exercício de higiene cívica para dissuadir os malfeitores, os megalómanos, os incuráveis narcisistas que são incapazes de resistir aos seus impulsos e paixões primárias. Só que não vale tudo. Se os julgamentos na praça pública substituírem os julgamentos nos tribunais – e isto com a cumplicidade culposa dos magistrados que temem pela solidez das suas investigações e dos seus libelos – estaremos a caminhar na direcção do populismo, não da justiça democrática. E, contrariamente às aparências, esta deriva aproveita aos alegados malfeitores para reclamarem o seu estatuto de vítimas de uma conspiração insidiosa e infamante contra o seu direito de defesa ou a sua honra e dignidade.
Na política, na justiça e no jornalismo não vale tudo – e daí a necessidade salutar de não existirem relações promíscuas entre cada um dos campos. A "judicialização" do jornalismo é nefasta quer para o jornalismo quer para a justiça. O jornalismo não pode confundir-se com um contrabando encenado da justiça porque isso, simplesmente, não é jornalismo.
Isto não é não jornalismo.
Ricardo Costa - SIC Notícias de 24Abr.2018
Uma das decisões mais banais e corriqueiras do jornalismo assenta nas escolhas que se fazem no dia a dia. Que temas se abordam, que destaque se dá a este ou aquele assunto, que ângulos de abordagem se usam. São opções condicionadas por uma série de fatores - que vão do interesse e da novidade até questões tão básicas como o haver ou não jornalistas com tempo, meios e conhecimentos para o fazerem -, que estão e estarão na base de qualquer dia de trabalho numa redação.
Essa é a questão de partida para o atual discussão sobre os trabalhos que a SIC fez sobre a Operação Marquês, com a acusação concluída e, portanto, fora do âmbito do segredo de justiça. Perante a divulgação da acusação mais grave da nossa democracia, que cruza a maior falência bancária do pós-25 de Abril e o colapso da joia da coroa da bolsa portuguesa, o que devem os jornalistas fazer?
Não estou a perguntar o que deve a Justiça fazer nem o que devem os políticos fazer. A justiça deve correr o seu tempo, assente em várias fases processuais e em recursos fundamentais. A política, essa, deve fazer as escolhas que quiser, sendo que uma delas pode ser ignorar que um ex-primeiro-ministro está acusado de uma série de crimes gravíssimos, num processo que envolve o banqueiro privado mais relevante do nosso período democrático e alguns gestores idolatrados.
Se é claro que a justiça não tem de fazer escolhas e que a política se pode escudar nas regras da justiça para justificar as suas omissões, é igualmente claro que os jornalistas têm a obrigação de fazer escolhas. Uma das mais habituais é não fazer nada. Como me ensinaram há muitos anos, editar é escolher. Naturalmente, escolher não fazer nada é sempre uma opção.
Os jornalistas não são juízes nem políticos. Não se devem confundir com eles. Mas não podem usar as limitações ou as hesitações daqueles como argumentos para a sua confortável inação, que, no limite, redunda numa profunda incompetência ou inutilidade
Mas não fazer nada de jeito, nada de relevante, nada de fundo sobre a Operação Marquês é mesmo uma opção jornalística? Deve mesmo tratar-se este caso como todos os outros ou como as questões do momento que vão e voltam? Ou, neste caso, é uma profunda e determinada opção de não jornalismo?
É mesmo uma opção editorial dedicar mais recursos e tempo a falar dos dramas do consumo do abacate ou do futuro da mobilidade urbana do que da Operação Marquês? A pergunta é demagógica e capciosa, porque qualquer jornal, site, rádio ou televisão fazem dezenas de escolhas diárias em paralelo e umas não anulam as outras. Mas a resposta não é demagógica nem capciosa: não, não deve ser opção editorial não dedicar um esforço sério a este caso. Infelizmente foi a de muitos jornalistas e redações, que se esconderam na confortável sombra de um manto que explica tanto o tempo da justiça como o silêncio tático da política.
Os jornalistas não são juízes nem políticos. Não se devem confundir com eles. Mas não podem usar as limitações ou as hesitações daqueles como argumentos para a sua confortável inação, que, no limite, redunda numa profunda incompetência ou inutilidade.
Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes (...) é um erro gravíssimo considerar que este caso é apenas um assunto judicial. É judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo.
Quando, no final do ano passado, a acusação deste processo saiu tive necessidade de a ler. São quatro mil páginas, que todos os jornalistas das áreas de política, economia ou nacional deviam obrigatoriamente ler. Felizmente trabalho numa redação onde vários jornalistas se deram ao trabalho de a ler. Os que acompanham a Operação Marquês há anos e anos fizeram-no de forma sistemática e profissional. No fim dessa leitura, decidimos, em conjunto, que se deviam fazer várias reportagens que enquadrassem jornalisticamente o que ali estava, tal é a gravidade e dimensão daquele documento. Podia ser feito de várias maneiras, mas escolhemos três ângulos: as entregas de dinheiro, a casa de Paris e o saco azul do GES.
Acho estranho que muitos tenham preferido a não-escolha. Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes, reduziram este caso a um assunto judicial. Ora este é um erro gravíssimo, porque este caso é judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo. Não dedicar tempo e recursos a este caso é uma omissão jornalística que, na minha opinião, não tem perdão nem justificação.
Não dar aos leitores, espectadores ou ouvintes trabalhos de fundo sobre a Operação Marquês é anular o papel dos jornalistas numa democracia. É decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado. Nessa altura levantam o cordão sanitário e fazem um ar de espanto com o que esteve sempre à frente dos seus olhos
Há um tempo para a justiça, há um tempo para a política (?) e há um tempo para o jornalismo. O tempo do jornalismo, neste caso, está a correr há alguns anos, e corre de forma urgente desde que a acusação foi produzida. Não dar aos leitores, espectadores ou ouvintes trabalhos de fundo sobre a Operação Marquês é anular o papel dos jornalistas numa democracia. É decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado. Nessa altura levantam o cordão sanitário e fazem um ar de espanto com o que esteve sempre à frente dos seus olhos. Talvez, então, batam com a mão no peito e se encham de coragem para fazer de carro vassoura da 25ª hora. Boa sorte.
O trabalho da SIC levou quatro meses a fazer. A meio desse trabalho, um dos jornalistas envolvidos - e os três (Sara Antunes de Oliveira, Amélia Moura Ramos e Luís Garriapa) acompanham a Operação Marquês desde o início - teve acesso a material dos interrogatórios. Para quem não saiba, os interrogatórios são gravados em áudio há muitos anos e, entretanto, começaram a ser gravados em vídeo. Todos os advogados sabem isso; os que não sabem são incompetentes. Este argumento só não é inútil porque, espantosamente, alguns colegas meus resolveram desenterrar o argumento de que os acusados da Operação Marquês e os seus advogados não sabiam que estavam a ser filmados. Sabiam, mas isso é irrelevante para a questão de fundo.
O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante
Perante aquele material - que está nas mãos de dezenas e dezenas de pessoas ligadas ao processo -, tivemos várias discussões sobre se devíamos ou não usar alguma coisa e, em caso afirmativo, que critérios devíamos ter em conta. Convém explicar que a esmagadora maioria das frases relevantes - sejam as obtidas através de escuta, sejam as dos interrogatórios - já tinham sido divulgadas na acusação, que não está em segredo de justiça, ou em vários trabalhos de jornais e até da SIC. A questão que se colocava era, do ponto de vista jornalístico, a do uso da imagem e, consequentemente, do direito à imagem dos acusados num ambiente negativo, perante juízes de instrução, procuradores ou inspetores tributários.
O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante. Como o interesse não justifica tudo, decidimos que só devíamos usar frases fundamentais para a compreensão da investigação, expurgadas de qualquer coisa que fosse da esfera privada ou íntima, gratuita, jocosa ou acessória. As reportagens foram editadas e reeditadas tendo isso em conta, cruzando a opinião de várias pessoas. Além disso, decidimos usar apenas imagens de acusados (e não de arguidos ou testemunhas), exatamente porque este caso já tem uma acusação pública. Abrimos uma única exceção para Francisco Machado da Cruz, o contabilista que geria o saco azul do BES/GES, por considerarmos o seu testemunho fundamental à explicação da maior falência dos nossos tempos.
A mim, a Operação Marquês fez-me corar quando li, quando ouvi e quando vi. Corei de vergonha da nossa democracia, da política que finge que não se passa nada e do jornalismo ao retardador ou que não faz o seu trabalho para não atrapalhar a justiça
Já sabia que o peso da imagem é desproporcionado no nosso espaço público, sobretudo junto das elites. Mas é estranho ver um jurista como João Taborda da Gama defender que ver pequenos excertos de interrogatórios é pornografia judicial, quando aquelas declarações já foram publicadas por escrito ou recriadas (com outras vozes ) em vários órgãos de comunicação social e não o fizeram corar. Ou seja, a pornografia é, aos seus olhos, um conceito que assenta na imagem - e não no conteúdo. Livros pornográficos, agora, só sem bonecos. Filmes pornográficos, tudo bem desde que sejam dobrados num espanhol lúbrico; no original é que não. Lido, até passa. Visto e a cores, faz corar. Pois, a mim, a Operação Marquês fez-me corar quando li, quando ouvi e quando vi. Corei de vergonha da nossa democracia, da política que finge que não se passa nada e do jornalismo ao retardador ou que não faz o seu trabalho para não atrapalhar a justiça.
Isto não é jornalismo, escreveu Vicente Jorge Silva. É sim, Vicente. Isto é um reality show, sublinhou Vicente. Tem razão, mas o reality show não é o jornalismo, é a vida de José Sócrates. E é sobre esse reality show (que só não digo ser pornográfico para não acordar o Taborda da Gama que talvez tenha dentro de mim) que a SIC fez um trabalho jornalístico. É nesse equívoco profundo que assenta a análise de Vicente Jorge Silva. O objeto do trabalho, esse sim, era um reality show.
(...) só conhecer a história da Operação Marquês no fim? É uma opção, mas não para jornalistas. Isso é para historiadores e arqueólogos
Este jornalismo, Vicente, não é um reality show, como não é um pedaço de “cinéma verité” nem uma versão uncut. É jornalismo por estar editado, enquadrado e escolhido, expurgado do acessório, gratuito ou privado. Por ser feito por pessoas que acompanham o caso desde o início, jornalistas altamente especializados, que leram tudo o que existe no processo, que já falaram com os envolvidos, que sabem distinguir o trigo do joio, que fazem escolhas, que editam e enquadram. Que fazem reportagem na rua, que fizeram dezenas e dezenas de trabalhos sobre este caso, que têm fontes, que contam histórias. Esta história só é maior e mais feia do que as que o jornalismo hoje nos contam. O não jornalismo é o que muitos (não) fazem sobre um caso que conheces mal e devias conhecer melhor. Porque foste jornalista e porque, episodicamente, foste deputado. Preferes só conhecer a história da Operação Marquês no fim? É uma opção, mas não para jornalistas. Isso é para historiadores e arqueólogos.
A luta pela liberdade de imprensa e pelo direito à informação nunca acaba. E cruza-se, sempre, com outros direitos, num difícil equilíbrio que está na base de qualquer democracia. O jornalismo não pode abusar das suas prerrogativas, mas tem que ter sempre presente a sua missão principal, que é a de informar. A SIC fê-lo, preservando totalmente as testemunhas e arguidos irrelevantes (exceto o contabilista do GES/BES), focando-se nos acusados e usando apenas excertos que são centrais ao processo. Tudo isto num caso que foi (é) a maior ameaça à nossa democracia. Um primeiro-ministro acusado de corrupção passiva? Sim, é um caso extremo de defesa da democracia.
A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os nossos deveres
António Barreto não valoriza este ponto, achando que a justiça ou a política podem ser condicionadas por um trabalho destes, com traços excecionais. Não pode, a justiça seguirá o seu rumo, a política o seu ziguezague encadeado. António Barreto venceu um dos casos mais relevantes de direito à liberdade de expressão, contra o tenebroso Manuel Maria Carrilho. Fez bem em pisar o risco naquele artigo de opinião porque, ao ganhar o caso na justiça, mostrou o valor da liberdade da opinião. A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os nossos deveres.
Não é preciso ir à “Aeropagitica”, de Milton, nem a Stuart Mill para aprofundar este ponto. António Barreto conhece-os de cor. Podíamos ir a casos célebres ou antigos para ver onde se mexeu a fronteira entre o direito à imagem e à privacidade vs. liberdade de informação. Fico só nos mais recentes. Wikileaks, Snowden, Panama Papers, Malta Papers, Football Leaks. Algum documento foi obtido de forma legal? Quantos violavam sigilo fiscal, bancário ou mails privados? O wikileaks estava pejado de piadas de salão de diplomatas americanos sobre os países onde estavam colocados. Os casos recentes de pessoas pagas pelo saco azul do GES violam quantos direitos? Vários, mas em todos estes casos o direito à informação se sobrepôs e os jornalistas souberam usá-los com cuidado e rigor.
O meu amigo Pedro Marques Lopes resolveu, num arroubo adjetivo, dizer que o trabalho da SIC era nojento. Não, Pedro, não é nojento. Nojento é uma palavra que deve ser usada com cuidado. E neste processo todo já há protagonistas de sobra à altura do adjetivo que agora lanças ao vento. Uns pelo que fizeram, outros pelo que calaram, outros ainda pelo não jornalismo que deliberadamente fazem.
Isto não é não jornalismo. Como ex-gestor, Pedro, sabes seguramente que uma dupla negativa resulta num valor positivo. Como nunca foste jornalista, não percebes isso, muito menos as dúvidas que nos assolam ou o que nos move. Quando o caso fechar, juntar-te-ás aos arqueólogos, historiadores e jornalistas de última hora, vais ler os livros que se vão lançar e assistir aos colóquios que se vão fazer em todo o país sobre o caso do século. Eu estarei numa fila lá atrás, ao lado dos meus colegas que assinaram estes trabalhos enquanto esbracejavas indignado. Nessa hora deixaremos a pista aos outros, aos que só pisam terreno confortável. Terás lá o teu lugar e, estou certo, encontrarás um adjetivo à altura.
Este artigo é escrito na qualidade de diretor de informação da SIC
Falemos, então, das imagens da SIC
João Miguel Tavares - Público de 24Abr.18
Pode uma sociedade ser em simultâneo profundamente dependente do Estado e profundamente desconfiada do Estado? Pode, claro – a sociedade portuguesa não é outra coisa senão isso. Uma das consequências dessa postura é esta: num país onde toda a gente sente que a corrupção é um mal muito entranhado e muitíssimo mal combatido, são realmente poucos os que estão dispostos a assumir as consequências do seu combate, para além das indignações episódicas em conversas de café e nas redes sociais.
Sim, a corrupção é terrível, mas o enriquecimento ilícito inverte o ónus da prova. Sim, a corrupção é horrível, mas a delação premiada é uma deriva pidesca. Sim, a corrupção é detestável, mas prender alguém antes do trânsito em julgado da sentença é uma barbaridade. Sim, a corrupção é lamentável, mas onde é que já se viu expor interrogatórios de arguidos na televisão? Sim, a corrupção é a pior coisa do mundo – excepto quando tentamos encontrar formas eficazes de a combater, porque todas elas ainda são piores do que a corrupção.
Esta atitude deriva de uma profunda incapacidade em colocar o interesse colectivo acima do interesse individual. Sei bem os perigos que este argumento encerra: a PIDE queria proteger os interesses da nação e a Inquisição jurava proteger o bem comum da fé – e olhem no que deu. Certo. Mas a balança tem de estar minimamente equilibrada, senão caímos na absoluta impunidade: um país incapaz de condenar corruptos, ou sequer de prendê-los em tempo útil já depois de condenados, de tal forma é garantista o nosso sistema judicial.
Quando olhamos para as reportagens da SIC, onde são expostas pessoas a serem interrogadas, eu não tenho dúvidas de que essa opção atenta contra os interesses daqueles indivíduos. A questão está em saber se o interesse colectivo o justifica. Que aquelas reportagens acrescentaram muito à informação disponível na sociedade portuguesa não me parece que haja dúvidas. É verdade que pessoas extremamente bem informadas conheciam tudo aquilo. Mas sejamos sérios: quem é que em Portugal lê diariamente o PÚBLICO, o Correio da Manhã, o i, o Observador, a Sábado, a Visão, o Expresso e o Sol, para ter a informação completa sobre a Operação Marquês? Eu digo-vos quem: pessoas como eu, que fazem disso profissão.
O trabalho da SIC teve, pois, o mérito de unir todas as pontas, de uma forma muito compreensível para o grande público. Mais: a voz e postura corporal dos arguidos são elementos fundamentais para a formação de uma convicção. Tenho dúvidas sobre certas opções tomadas – penso, em particular, que testemunhas e arguidos não deveriam ser tratados da mesma forma, e acho essencial todos serem informados de que estão a ser filmados –, mas não alinho no desprezo acerca da importância que aquelas imagens têm para o esclarecimento da opinião pública quando estão em causa crimes de corrupção.
E deixem-me voltar a repetir estas três palavras: crimes de corrupção. A lei permite que qualquer pessoa seja constituída assistente em processos envolvendo crimes cometidos no exercício de funções públicas – e permite muito bem, na medida em que todos nós somos vítimas. Infelizmente, nós próprios, as vítimas, tendemo-nos a esquecer disso. A corrupção não é uma coisa lá deles – é connosco. Se interiorizássemos que cada um daqueles homens é suspeito de ter roubado não o Estado, mas cada um de nós, seríamos certamente muito mais tolerantes em relação àquelas reportagens e muito menos tolerantes em relação à corrupção.