Paulo Rangel começou por citar O Fim da História e o Último Homem, de Fukuyama, “um livro que começa com a revolução do 25 de Abril”, para corrigir o conceito declarado neste título, afirmando:

 

“A Guerra Fria é que é a excepção, ela é que ‘congelou’ a História, portanto é exactamente o contrário  - quando acaba a Guerra Fria, a História ‘descongela’ e volta outra vez.” (...)

 

Com a Guerra Fria  - prosseguiu -  “a Europa foi ‘invadida’ por duas superpotências, uma atlântica, a outra euroasiática, e foi repartida ao meio. (...) Nunca tinha acontecido na Europa ficar dividida por dois Impérios, nunca a Europa tinha vivido sob esta ideia de potências externas… Napoleão, ou Hitler, tentaram uma hegemonia interna, mas duas potências externas dividirem a Europa a meio, isto é que foi excepcional. Por isso, a História não acabou; pelo contrário, recomeçou, retomou o seu curso a partir da queda do Muro de Berlim.”

 

O segundo ponto de Paulo Rangel foi uma reflexão sobre o Estado, “esta entidade que é quase divina”, porque “está em todo o lado mas não está em lado nenhum, é omnipresente como Deus”, é transcendente e ninguém o vê. Mas “é essencial, imprescindível ao Estado a dimensão territorial, de um território em princípio impermeável, no qual os outros Estados, ou outras entidades, não mandam.”

Aquilo a que assistimos hoje é “uma desterritorialização do Poder”:

 

“Quanto mais novas tecnologias temos à nossa mão, menos o território é importante. … De repente, a ideia do Território impermeável, que era essencial à ideia de Estado, e até à ideia de Estado nacional, está em crise. Podem construir os muros que quiserem, que não há muros que sejam capazes de parar isto.” (...)

 

“As novas tecnologias têm uma capacidade de nos transportar para uma dimensão não territorial. O Poder hoje não é territorial, e é isto que está na origem da grande crise que vivemos. É uma crise não só europeia, mas é em primeiro lugar ocidental, porque foi o Ocidente que construíu o Estado nacional, e que o fez nessa lógica de territorialização.”

 

Mesmo as democracias  - adiantou Paulo Rangel -  “foram construídas numa base territorial”. Votamos em Portugal para os assuntos serem decididos em Portugal, mas “hoje sabemos que as circunscrições territoriais em que votamos não correspondem aos círculos de decisão; elegemos a Assembleia da República para escolher um Governo e ele decidir em nossa representação, e na verdade os Governos não são a sede onde as decisões são tomadas.” (...)  

 

Muita gente pensou que a solução seria aumentar a escala, com as decisões a serem tomadas, “não já em Lisboa mas em Bruxelas, a uma escala de 500 milhões, com outro território”:

“Mas isto também não resolve o problema. Podemos aumentar a escala territorial, mas os poderes que decidem não são poderes territoriais. O primeiro exemplo são os mercados, que têm hoje uma influência decisiva na condução da vida política e económica das sociedades humanas, e no entanto sabemos que não estão em lado nenhum, são outros poderes invisíveis…”  (...)  

 

E Paulo Rangel acrescentou outros exemplos, como os da FIFA, da UEFA, do próprio Comité Olímpico, que “reclamam para si o privilégio do foro, isto é, querem poder judicial”. Entendem que em matéria desportiva “quem devia decidir eram eles e, portanto, subtrair-se à esfera dos Estados”.

 

O grande momento em que “sentimos que qualquer coisa estava a mudar estruturalmente à nossa frente foi no 11 de Setembro de 2001”:

 

“O que mudou aqui foi que houve um ataque desferido contra um Estado, por sinal o mais poderoso de todos, por uma organização que não era estatal e tinha um projecto não estatal. Percebemos aí que, de repente, já não estamos numa guerra entre Estados, a própria guerra mudou. A Guerra dos Trinta Anos criou essa ideia da guerra entre Estados. Mas os ataques do 11 de Setembro transportaram-nos para um outro paradigma.” (...)

 

O terrorismo que a Europa conhecia dos anos 60, 70, princípio dos 80, ainda se passava dentro de Estados:

“O IRA e a ETA queriam formar Estados, o Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas queriam fazer a revolução dentro do Estado, mudar o regime do Estado pela força. Por isso é que este terrorismo que temos hoje nos parece uma coisa totalmente diferente.”

 

Paulo Rangel citou, a seguir, a outra tese concorrente do Fim da História, a de Samuel Huntington, com O Choque de Civilizações, começando por dizer que teve à partida “uma grande discordância” dela, mas que hoje, olhando para os mapas políticos que temos na frente, admite que talvez a intuição do autor não estivesse errada. De qualquer modo  - afirmou -  “quando falamos em choque de civilizações já não estamos a falar de Estados, estamos a falar noutras coisas”.

 

Referiu-se à ideia, hoje muito corrente, segundo a qual “o que está a acontecer neste momento é um regresso ao paradigma estatal”, mas discorda dela. E citou Montesquieu, afirmando que, “ele, perante o absolutismo que estava instalado em França, queria regressar à Idade Média; por isso é que falava na separação dos poderes e olhava para a Constituição inglesa, porque a Inglaterra nunca saíu da Idade Média, continua, embora não tenha dado conta disso. (...) O poder estava repartido, o Rei tinha um certo poder, chefiava um Governo, nomeava um primeiro-ministro que ia ao Parlamento, pela primeira vez, e depois tinha um Parlamento com uma Câmara dos Comuns e uma Câmara dos Lordes, e isto era o regime ideal: porque a aristocracia, o povo e o Rei, harmonizavam os seus poderes”. (...) 

“Althusser diz que aconteceu a Montesquieu o mesmo que a Cristóvão Colombo, que, julgando que estava a regressar ao passado, descobriu o futuro; ele julgava que estava no caminho marítimo para a Índia e acabou por descobrir a América, e Montesquieu estava a escrever para regressar ao velho paradigma e a verdade é que trouxe um novo, completamente diferente.”

 

E Paulo Rangel afirma:

“Isto é o que vai acontecer com esta deriva, que muitos julgam que é um regresso ao nacionalismo. Não se consegue parar o vento com as mãos. Não podemos parar a tecnologia, não vamos parar a mobilidade humana… Não há muro, por mais muros que se construam, que consiga parar a mobilidade humana. Aliás, há um dado absolutamente essencial, que é a demografia. Alguém dizia, com muita graça e toda a razão: a única ciência social exacta é a demografia.”

 

O autor reconhece que tudo isto nos põe “um problema muito grave, em termos de democracia: como podemos garantir que o poder é reconduzível ao povo, se não temos uma dimensão territorial? (...) A insatisfação das pessoas com os Governos não é da má-vontade dos Governos, é da sua absoluta incapacidade para, neste momento do mundo, poderem resolver, no seu quadro territorial, os problemas que têm”…

 

“Quando nós culpamos a Europa de tudo e mais alguma coisa, estamos a esquecer que as verdadeiras razões infra-estruturais da crise não estão ligadas à crise do projecto europeu. E talvez o projecto europeu esteja mais preparado para resonder aos desafios não territoriais que se põem hoje do que os projectos estritamente estatais e nacionais.”  (...)

 

E, tendo referido a “medievalização do Poder” como sendo a “substituição das relações territoriais pelas relações pessoais”, Paulo Rangel concluiu:

 

“Aquilo a que eu acho que estamos a assistir é a uma mudança da cultura do Poder, do território, e, portanto, a aproximarmo-nos desse modelo medieval. Atenção, não é para regressar a ele, eu apenas invoco a Idade Média porque é a única experiência histórica que nós temos do Poder sem Estado, portanto é um laboratório interessante para nós percebermos como é que, provavelmente, viveremos nos próximos 20, 30, ou 40 anos”…