Joana Marques Vidal defende independência de Tribunais e MP
Sobre os poderes que tem um Procurador-Geral, Joana Marques Vidal declarou que não está na sua mão “perseguir ou deixar de perseguir criminalmente uma pessoa”, ao contrário do que pode circular por vezes na opinião pública.
“O poder de um Procurador-Geral é um poder-dever, ou seja, é o poder que decorre da própria Lei, dos quadros legais que ele tem de cumprir. E, no fundo, o seu poder é o modo como cumpre ou não cumpre, ou consegue ou não consegue cumprir, mas não decorre de nenhum critério de discricionariedade do próprio.” (...)
Sobre o seu próprio desempenho, afirmou:
“Quando às vezes me perguntam o que eu acho que fiz, enquanto Procuradora-Geral, foi pôr a máquina a funcionar com os recursos que tinha, da melhor maneira que consegui. Isto tirando um bocadinho algum romantismo e alguma relevância com que se fala destas questões.” (...)
E mais adiante:
“Um Procurador-Geral responde politicamente pela sua acção perante quem o nomeou, mas não responde, não recebe ordens, não tem de dar especificações nem vai pedir opiniões, seja ao Sr. Presidente da República, seja ao Sr. Primeiro-Ministro ou ao Ministro da Justiça. A legitimação do órgão esgota-se no momento da nomeação. E quando digo que responde politicamente, é no momento do termo dos mandatos que eu acho que esse juízo político se pode e se deve fazer, em termos gerais, como é claro - naquilo que é político, obviamente, não é na partidarização, é no exercício da acção política de todo o próprio Estado.” (...)
Sobre a autonomia do Ministério Público, afirmou ainda:
“Esta autonomia é importante em todas as áreas, e na área criminal é essencial. E a questão da autonomia do Ministério Público está intimamente ligada ao modelo de Processo Penal que temos em Portugal, que eu devo dizer que defendo na sua essência - há sempre possibilidades de melhorar, mas defendo no seu quadro geral o modelo de Processo Penal que nós temos, penso que é dos mais equilibrados que conheço, mesmo ao nível europeu. E o modelo de arquitectura constitucional do Ministério Público é também ele mesmo, em ligação com o modelo do Processo Penal que temos, um dos mais equilibrados.” (...)
_______________
Joana Marques Vidal iniciou a sua palestra com uma reflexão sobre o facto de, quando em Portugal se fala de crise da Justiça, se tratar principalmente do Ministério Público. Considerou esta atitude “redutora”, afirmando que “há muito mais Justiça para além do Ministério Público”, e acrescentou:
“Mas talvez esta centralidade do Ministério Público no espaço mediático-social tenha a ver com a essência das funções que o Ministério Público tem, e o modo como as vem ou não desenvolvendo. E as funções que tem em Portugal também vão muito para além da sua acção na área penal, sendo certo que, como todos nós sabemos, aquilo que aparece efectivamente nos jornais, aquilo que é objecto da atenção da população, é a acção penal, a investigação criminal.”
“E nessa medida, talvez porque a investigação criminal contém em si todos os elementos essenciais da temática do drama e do teatro (há todo um cenário de hipótese que dará muitos bons filmes), ou seja, uma matéria que naturalmente as pessoas gostam de ouvir, sentem-se atraídas e são espaços onde podem tomar parte duma maneira também emotiva… Não mais do que no futebol, já agora, mas às vezes quase tanto como no futebol.” (...)
A Procuradora-Geral da República descreveu então as outras áreas, para além da área penal, em que o Ministério Público tem uma acção menos visível: as que tratam das competências em relação à Família e às Crianças; a da representação dos trabalhadores, em matérias de Tribunal do Trabalho; funções na área do Tribunal Constitucional, podendo requerer a fiscalização de constitucionalidade em diversas matérias; e outras no âmbito da acção pública nos Tribunais Administrativos, que requerem a aquisição de perícias e de conhecimentos muito complexos e especializados - por exemplo, na área do urbanismo.
Sobre este ponto concreto, comentou com ironia:
“É uma área onde, realmente, nós precisaríamos de trabalhar muito, mais e melhor. Estou a dizer isto e a sorrir, porque penso que, se fazendo o que nós fazemos, já há muita gente que quer limitar-nos os poderes, se nós realmente começássemos a exercer os poderes que temos na área do Administrativo, não sei bem o que é que iriam reclamar relativamente ao Ministério Público. Mas, falando agora a sério, essa é uma parte importante.” (...)
Voltando à intervenção do Ministério Público na área criminal, Joana Marques Vidal explicou que “nós temos um modelo de investigação criminal que atribui ao Ministério Público a competência exclusiva para a direcção da investigação criminal e para a introdução do facto em juízo, como nós dizemos, levar as acusações a julgamento”.
“Há uma característica do Ministério Público, que é uma magistratura de iniciativa. Quem julga são os Juízes, são os Tribunais, em todas estas competências, nas diversas áreas, mas, se pensarmos um pouco, o Ministério Público é sempre uma magistratura de iniciativa. O Ministério Público propõe, apresenta, requer, em nome de representação ou promoção de direitos, ou de interesses que são legalmente protegidos.”
“Na investigação criminal, temos essa função. Há países onde a investigação criminal e a iniciativa da investigação é também da competência de outras entidades, designadamente de órgãos de polícia criminal, onde a própria polícia pode iniciar essa investigação e só depois comunica ao Ministério Público.” (...)
Como explicou Joana Marques Vidal, “há muitos países onde [vigora] o princípio da oportunidade - ou seja, nem todos os casos e participações relativas a crimes são obrigatoriamente investigadas e levadas ou não a tribunal”. Citou o caso da França, onde “há um conjunto de critérios que são seguidos, mas que podem ser alterados, ou o Parquet pode decidir – estes casos nem sequer os investigam, são todos imediatamente arquivados, se acham que têm pouca importância, estes vamos investigar, aquele não vamos”:
Mas em Portugal - como disse - “não é assim”, porque “o princípio é o da legalidade”:
“A essência do modelo é de legalidade, todas as queixas e todas as participações-crime têm que ser investigadas - o que nos leva, às vezes, a reflectir um pouco sobre como é que se estabelecem prioridades, quando é necessário estabelecê-las, ou quando os recursos não são suficientemente amplos e profundos para podermos responder a tudo ao mesmo tempo, da mesma maneira.” (...)
Sobre a natureza do modelo seguido em Portugal, a Procuradora-Geral da República afirmou ainda:
“Este modelo de Processo Penal foi construído muito na perspectiva dos pesos e contra-pesos, porque tem uma investigação inicial dirigida por uma magistratura, que depois, no final dessa investigação, ou acusa e leva a julgamento, ou arquiva por não haver provas, ou por se considerar que não existe crime; havendo uma fase seguinte, a instrução, que é só uma primeira comprovação, mas depois uma fase de julgamento por um magistrado, num tribunal completamente independente e no qual, obviamente, o Ministério Público tem uma posição de ir sustentar a acusação que fez. Esta defesa clara é uma garantia do essencial para o funcionamento do Estado de Direito.”
“E eu gostaria aqui de fazer notar que este modelo de Processo Penal está intimamente ligado à aquitectura constitucional do Ministério Público enquanto magistratura autónoma. E quando se fala da autonomia do Ministério Público, também convém reflectir sobre o que isto significa. E quem defende outros modelos também deve reflectir sobre qual é a consequência dos modelos que se defendem.” (...)
A concluir, a Procuradora-Geral da República referiu-se à alteração do Estatuto do Ministério Público, como um projecto que “está numa fase ainda inicial”, de “recolha de pareceres”, devendo depois voltar ao Ministério da Justiça, seguir para Conselho de Ministros e chegar mais tarde à Assembleia da República.
Falou, por fim, dos desafios que se põem ao Ministério Público, sublinhando as questões da globalização - porque “os fenómenos criminais são cada vez menos localizados e mais globalizados” -, o que “implica uma forte capacidade na área da cooperação judiciária internacional, e na área da aplicação do Direito internacional”.